segunda-feira, 28 de novembro de 2016


O livro Ecótono Paradoxo, é um romance de ficção científica que conta a aventura de um capitão de marinha mercante que participa de uma experiência misteriosa e secreta. A estória inicia no futuro que um dia foi o Estado de Pernambuco no  ano de 2514. Aspectos bem regionais e da memória coletiva, trazem o avanço do mar, tubarões, manguezais, barcos, religiosidade e outras peculiaridades do povo nordestino como cenário. O personagem é levado também a viajar no tempo e conhecer dimensões coadjuvantes, cujos propósitos estão diretamente ligados às vivências e memórias humanas.

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Boa leitura


Capítulo 1

Efeito mirante

     Uma suave voz feminina anuncia que o trem bala se aproxima da Estação Amaraji, que é o último ponto de parada leste da Megalópole Atlântica Recife.
     Indiferente ao chamado, um passageiro dorme tranquilamente em confortável poltrona, enquanto o veículo começa a diminuir a velocidade e finalmente parar. A voz mais uma vez se manifesta:
“Senhores passageiros, são 17 horas e 15 minutos, o tempo está bom e com poucas nuvens no céu. Previsão de lua cheia às 22 horas e 22 minutos com maré baixa no período. Hoje haverá o fenômeno da chuva de meteoros geminídeas que vai iluminar o céu, para maiores informações consulte nossos terminais. O desembarque acontecerá em 10 minutos. Pedimos para que colaborem com os procedimentos e orientações de exame de saúde. Os visitantes que estão chegando pela primeira vez sejam bem-vindos à Megalópole Atlântica Recife e aproveitem as opções de entretenimento também disponíveis em nossos terminais de consultas. O Expresso Columba Asa Branca 2514, retornará para Megalópole Araripe em 15 minutos. O Tempo estimado de viagem é de 1 hora.”
     A mensagem é repetida nos idiomas dos estrangeiros que embarcaram no trem, onde alguns estão em cabines individuais.
- Capitão Dante Avaré! Capitão Dante Avaré! – insiste a voz que ecoa na cabine.
     Um homem de 38 anos abre preguiçosamente o olho esquerdo e responde com voz grave e baixa:
- Sim! Sou eu...Chegamos?
- Informo que o desembarque se dará em 5 minutos. Sua bagagem de mão será transferida imediatamente para o endereço indicado. Seja bem-vindo à Estação Amaraji, esperamos que sua viagem tenha sido confortável.
     O homem inclina lentamente a poltrona deixando-a ereta. Ele passa a mão no rosto tentando despertar e observa pela janela que o dia se finda. Ainda se espreguiçando, ensaia uma resposta:
- Ótima viagem...Muito confortável...Senhora...Desculpa. Esqueci seu nome.
- Suze. Comissária Suze – responde o holograma em forma de mulher.
- Ah sim! Comissária Suze...Nossa! Eu apaguei. Faz tempo que não tenho um sono tão pesado.
     A imagem se movimenta e faz outra pergunta:
- O senhor está bem?
- Estou ótimo, só que dormi muito e perdi o melhor da paisagem.
- Preciso que abra novamente os olhos senhor, faremos uma análise final de rotina de saúde em sua íris.
     O homem colabora e um pequeno foco de luz ilumina rapidamente seus olhos e apaga.
- Então?
- Acusou uma pequena deficiência de cálcio e ômega 3 em seu organismo senhor. Uma marca estranha apareceu em suas íris, em nosso primeiro exame ela não existia. O senhor machucou o olho, coçou ou sente alguma coisa nessa região?
- Não, sinto-me ótimo. Talvez precise voltar a comer peixes.
- O senhor passou recentemente por alguma situação de estresse? As pálpebras tremem?
- Nenhuma situação, tudo normal. Por quê?
- Detectei uma leve tensão em seu globo ocular. A informação já foi enviada para o médico padrão. Estimo recuperação.
- Obrigado Suze. Bom trabalho.
- Obrigada senhor.
     Quando todos os passageiros e tripulação descem do trem, as portas são fechadas e uma fumaça branca misturada com uma luz ultravioleta enche os compartimentos desinfetando-os. Em seguida, os passageiros entram em cabines individuais, retiram toda a roupa e passam também por um procedimento de descontaminação. Uma nova roupa é servida, um tipo de bata, de cor imaculadamente branca e sem peças íntimas. Essas profilaxias são comuns e obrigatórias, acontecem todas as vezes que um cidadão sai de uma megalópole para outra. No saguão que mais parece um tipo de shopping center, uma outra voz, dessa vez masculina e aparentando muita simpatia, indica as lojas onde se pode adquirir acessórios e adornos gratuitamente para combinar com as roupas oferecidas.
     Um animado grupo de holandeses passa por Dante Avaré, o cumprimenta e se dirigem para uma loja cuja fachada está escrito Welkom. Ele sabe que não é uma cena incomum encontrar holandeses em megalópoles litorâneas no Brasil, mas pensa na curiosidade de uma preferência histórica deles em apreciar, viver e trabalhar na Nação Pernambuco.  Já na região sudeste, a concentração de japoneses é cada vez maior.
     Dante observa vários ambientes decorados e agora segue para outra loja onde está escrito Bienvenido.
- Capitão Dante! Que bom revê-lo! – diz outra imagem holográfica masculina, um tipo latino americano com sotaque espanhol, de bigode expressivo e voz grave.
- Como vai Orlando! Meu chapéu El Fino está disponível?
- Qual cor prefere?
- Dessa vez quero o branco.
- Excelente escolha capitão. O senhor está muito elegante para uma noite de sexta-feira.
- Obrigado Orlando!
- Estarei presente num show dançante às 20 horas no Clube Salsa Cubana e ficaria muito honrado com sua presença capitão. Vou cantar músicas românticas.
- Tentador! Mas tenho um encontro com a Lua Cheia no Mirante Balneário do Ipojuca.
     O holograma de Orlando se aproxima do seu rosto e pisca uma luz em seus olhos.
- Notei uma expressão romântica e um pouco tensa em sua íris capitão. O Mirante Balneário é um ambiente perfeito. Os ventos frios se dissiparam e a brisa agora é leve e reconfortante.
- É isso que espero amigo Orlando. Uma noite perfeita - comenta Dante enquanto experimenta o chapéu e observa num espelho.
- É o que desejo senhor! E quanto às recomendações...
- Já sei Orlando! Procurar o médico padrão. Mas se a noite for boa como planejo, eu terei de ceder na segunda-feira a uma junta médica com muitos especialistas.
- Então sua noite de domingo vai terminar como previsto? Clube Salsa Cubana? Os efeitos terapêuticos das nossas bebidas são as mais recomendadas!
- Vou lembrar disso! Buenas noches Orlando!
- Buenas noches capitão! – O holograma observa o cliente saindo da loja. Limpa o bigode com os dedos e com alguma desconfiança diz:
- Tem algo errado com ele.
     Dante caminha a passos largos para a plataforma de embarque urbano, e no caminho observa os painéis luminosos e mapas digitais de instruções de saídas das diversas conduções. Ele para e assisti por alguns segundos os vídeos interativos dos trens expressos que integram as megalópoles, inclusive o que ele veio: O Columba Asa Branca 2514. Essas categorias de trem possuem as mesmas aerodinâmicas, no entanto as cores e os emblemas são diferentes e todo ano sempre tem pelo menos um item atualizado em seus sistemas ou formatos.
     Existem dois Mirantes Balneários, o do Carpina e do Ipojuca e são necessários utilizar pequenas embarcações ou voos em helidrones e dirigíveis para alcança-los e,  são os únicos meios de transportes disponíveis e autorizados. Os balneários são resorts que podem ser visitados turisticamente mediante reservas, onde a permanência é no máximo de 72 horas. Vários centros de lazer e esportivos são oferecidos, mas os platôs dos mirantes são os preferidos do público. Eles ficam mais ao leste e são formados por grandes e reforçadas muralhas que estão a 100 metros acima do nível do mar e com quilômetros de extensão ao logo do litoral. É extremamente proibido transpor essa barreira e essa recomendação é repetida e divulgada constantemente, pois o risco de vida em algumas situações de maré alta é de iminente perigo. Apenas técnicos autorizados e militares podem circular nessas zonas.
      A geografia litorânea da costa brasileira havia se transformado. A população que vivia nas capitais, cidades e povoados próximas ao Oceano Atlântico foram transferidas. Centenas de municípios ficaram parcial ou completamente inundadas. Os prognósticos pessimistas já haviam sido anunciados há muitas décadas e sempre indicaram que esse fenômeno ira acontecer. Foi mais rápido do que se imaginava. Os esforços de contenção nas praias surtiam resultados paliativos, de altos custos e o tempo era o pior inimigo.
     Durante o plano de deslocamento que foi minuciosamente estudado, foi possível salvaguardar um inestimável acervo histórico cultural móvel, o que infelizmente não foi possível com os bens imóveis como as construções religiosas, museus e outros conjuntos arquitetônicos importantes. Muitas réplicas foram construídas posteriormente em parques temáticos.
     Mas para tudo isso acontecer, foi necessário a execução de um projeto grandioso, ousado e socialmente arriscado, que durou décadas e muitos investimentos em tecnologia e mão de obra: As Megalópoles.
    Na União Confederada Nordeste (UCN), especificamente na Nação Pernambuco, foram construídas quatro Cidades - Estado: Megalópole Atlântica Recife; Megalópole Agreste; Megalópole Sertão; Megalópole Araripe.
   Diferentemente da Megalópole Atlântica Recife, construída no litoral, onde também se encontra o porto e edificadas em parte sobre altas e sólidas plataformas, situando-se em torno de 100 a 200 metros acima do nível do mar, as demais cidades se formaram em elevações menores.
     O que existia fora desses complexos tinha três objetivos: Prover as necessidades alimentares, energéticas e ambientais. Não era permitida a existência de núcleos humanos urbanos ou rurais além das fronteiras destas cidades e, a única exceção era concedida a raros grupos étnicos em áreas demarcadas e constantemente monitoradas.
     Todo contingente populacional vive exclusivamente nas megalópoles e suas necessidades básicas são satisfatoriamente atendidas. Os cidadãos trabalham, estudam, interagem, se divertem e internamente se locomovem com fluidez tendo a sua disposição diversos modelos e velocidades de trens, metrôs, elevadores, passarelas e teleféricos. Os veículos de solo dentro e fora das cidades são usados para fins operacionais. O transporte de passageiros e cargas se manteve mediante o uso de aviões, helicópteros, helidrones, dirigíveis e embarcações fluviais e marítimas.
     Importantes centros científicos e culturais fornecem valiosos resultados em diversos campos, sempre promovendo o bem estar dos seus habitantes. O uso de combustível fóssil foi definitivamente abolido e as fontes alternativas limpas finalmente resolveram o problema energético. Placas e geradores fotovoltaicos praticamente revestem todas as estruturas e compõem a paisagem de áreas áridas e outras que não estão sendo utilizadas pela agricultura. Enquanto isso, biomas importantes ampliaram suas áreas, tornando-se reservas da vida selvagem, regenerando-se com sucesso e onde a presença humana também não é permitida, mas pode ser observada por vários acessos digitais, virtuais e tecnológicos recentes. Ao longo do litoral e no interior, alguns balneários públicos são utilizados para o turismo.
     A planta urbana das megalópoles é relativamente simples, mas bastante eficiente. O antigo sistema urbano em grade não é mais utilizado. As cidades estende-se por duas linhas retas e paralelas do litoral até o sertão e intercaladas por regiões selvagens. São exatamente onde passam os trens de alta velocidade e expressos, fazendo a ligação exclusiva entre as cidades. Contíguo as laterais das linhas, encontram-se as primeiras faixas de toda a vida urbana e seus respectivos núcleos: Centros comerciais e empresariais, entretenimento e culturais, educacional presencial e esportivo, ciência e pesquisa, hospitalar e habitacional. Acima da plataforma das estações, uma vasta avenida é livre, onde os transeuntes compartilham belas praças e jardins. Cada núcleo possuem centros de alimentações onde a população tem a sua disposição refeições gratuitamente dia e noite. O alimento residencial é de consumo básico é opcional.
     Muitos aspectos curiosos e comportamentais determinam o sucesso na vida das pessoas. A poluição em qualquer circunstância é mínima nas megalópoles. Tudo é reciclável, tratado e reutilizado. A cultura do desperdício e do descarte do lixo é intolerável e aprende-se isso desde criança.
     Nessas cidades, os prédios maiores se concentram nos centros comerciais, já os habitacionais são mais baixos de tamanhos variados e se localizam nos extremos da asa norte ou sul, sempre de frente para a  paisagem natural. A sua utilização é de acordo com estado familiar, ou seja, mora só, em casal, em família, está em trânsito na cidade, a negócios ou a passeio. Os módulos residências são facilmente convertidos e adaptáveis de acordo com as necessidades e são modestamente confortáveis e práticos.
     Dante Avaré consulta o relógio, são 18 horas. Ele aprecia os transportes em barcos, mas sempre que está no período de férias, prefere se locomover nas cidades em dirigíveis, mas a noite já chegou e a paisagem escura já não é tão interessante. Ele tem reserva para um helidrone que transporta apenas cinco passageiros, além da tripulação formada por piloto e copiloto. Um voo tranquilo de aproximadamente 30 minutos é o tempo que vai levar para chegar até o Balneário Ipojuca, onde mais uma vez pretende visitar e relaxar.
     Um súbito ruído de desaceleração de turbina chama atenção de Dante Avaré. Um pouco desorientado ela olha pela janela e percebe que o helidrone desce suavemente sob um ponto de aterrisagem. Um dos passageiros se adianta um pouco mais e observa pela janela.  Por força da profissão, Dante Avaré conhece vários idiomas e apesar de não ser fluente em nihongo, entende o que o casal de uma provável família de turistas japoneses falava:
- Chegamos? – Falou uma mulher para o marido.
- Sim! Tenho certeza que você vai gostar – responde ele entusiasmado – esse balneário é um dos mais famosos da região.
     Duas crianças, uma menina e um menino entre 9 e 12 anos também se levantam para olhar:
- E os tubarões! Quando vamos ver?
- Após o jantar – responde o pai.
     Dante Avaré se recompõe na cadeira e mais uma vez leva as mãos aos olhos. Por um momento ele pensa que a velocidade turística dos helidrones havia aumentado. Ele percebe que se engana em suas conclusões quando olha para o seu relógio e confirma que o tempo de viagem estava certo, 30 minutos. Ele já havia chegado ao Balneário Ipojuca, mas precisamente no telhado da principal torre do complexo hoteleiro.
- Dormi novamente? – pensou ele, se convencendo que a viagem escura e monótona o havia deixado relaxado o suficiente para um breve cochilo.
     A simpática e animada família japonesa desembarcou primeiro. A garotinha correu na frente e sua mãe preocupada a chama atenção:
- Hina! Hina! Não corra! Você pode cair!
     A garotinha obedece e se vira, levanta os braços e abri um belo sorriso. Dante Avaré observa tudo como se estivesse acordando de um encantamento, alimenta em sua imaginação como seria sua vida se tivesse uma filha como ela. O helidrone ainda não tinha desligado suas poderosas hélices e havia muito vento e barulho. Uma mão amiga toca em seu ombro e ele fica alerta, olha para lado esquerdo e ver o piloto da aeronave:
- Capitão Dante?
- Sim!
- Sou o Alonso! Lembra-se de mim? Fiz algumas entregas de cargas para o seu navio o Cidade Maurícia!
- Ah claro! Como vai? E o Sr. Martins?
- Meu pai está muito bem apesar da idade, obrigado por perguntar.
- Não o tinha visto, vocês pilotos ficam um pouco escondidos na cabine e o seu estilo de cavanhaque é único – sorrir Dante Avaré cumprimentando o conhecido com um forte aperto de mãos.
- Também quase não lhe reconheci com esses trajes urbanos! Disfarçado de turista capitão? Alguma missão secreta?
     Dante Avaré acha graça no comentário:
- Se fosse secreta a missão já estava comprometida por que fui reconhecido! Na verdade estou nos meus últimos dias de férias. E você o que faz por aqui? Trabalha com turismo agora?
- Você sabe que os negócios da família são diversificados.
- A família Martins e suas heli companhias. Soube que fabricaram novos modelos?
- Isso mesmo! Só que nesses próximos dias não poderemos fazer embarques! Você sabe, as marés estão muito altas, não é recomendável. Meu primo tem um demorado encontro amoroso e me implorou para substituí-lo e aqui estou eu!
- Foi por uma boa causa. Foi bom revê-lo Alonso até a próxima!
- Até breve capitão! Estarei de volta em alguns dias.
     O piloto acena para o copiloto e este desliga os motores. Não haverá mais voos de transporte turístico naquele horário.
     Antes de entrar no corredor sinalizado para o elevador, Dante Avaré segue para a sacada da cobertura e observa todo balneário iluminado e ruidoso. Ele admira a pulsante animação na área de lazer, repleta de jovens em sua maioria, se divertindo nas piscinas e quadras esportivas ao som de músicas eletrônicas.
- Vai ser bem relaxante – diz ele suspirando e pensando em voz alta.
     Uma mulher se aproxima:
- Falando sozinho capitão?
     Ele olha para trás e seu rosto se ilumina com um sorriso:
- Ana!
- Posso saber dos seus planos relaxantes?
     Eles se beijam e se abraçam.
- Não tenho planos. Estar com você já é muito relaxante para mim.
- Eu lhe conheço bem Dante, você não está muito animado para essa festa no balneário, está? – Ela passa a mão nos cabelos dele.
- Na verdade a festa é bonita, há muita vida aqui. Só estava pensando e comparando com outros balneários que conheci e posso afirmar que esse é um dos mais agitados.
     Ana estica a cabeça e olha para baixo:
- Não vejo muita diferença, é um balneário litorâneo como outro qualquer. Acho que a diferença é que estamos no verão e tudo fica muito mais quente.
- É...pode ser – diz Dante Avaré um pouco disperso.
- Você está bem?
- Estou sim. Apenas venho tendo recorrentes sensações de déjà vu.
- Ter déjà vu com a namorada depois de tantos anos juntos não me parece algo preocupante. Vamos lá! Relaxe, faltam poucos dias para retornar ao trabalho.
- Você conseguiu os dias de folga?
- Como poderia resistir ficar uma semana com meu capitão – Ana o beija novamente – Se você não quiser descer para o balneário podemos ir direto para o hotel.
- O hotel é uma boa ideia, mas hoje é lua cheia e tem chuva de meteoritos. Eu gostaria de caminhar um pouco na muralha se você não se incomodar.
- Lua cheia? É mesmo! Havia esquecido. Isso que dizer que as ondas estarão mais altas?
- Amanhã. Agora estamos na maré baixa e o horizonte está limpo, sem nuvens. Teremos uma bela lua cheia.
     Ana olha para o relógio:
- Então podemos descer e aguardar mais um pouco, aqui mesmo no restaurante do balneário, podemos degustar alguns frutos do mar e depois voltamos. Com essa lua, com certeza haverá outros casais como nós encostados naquela muralha.
     Dante Avaré sorrir animado. Ele cede o braço para Ana e seguem juntos para o elevador. No restaurante, ele comenta como foram seus dias na Megalópole Araripe.
- O sertão continua muito bonito. A riqueza agrícola é extraordinária. Participei também de uma cavalgada e atravessamos lugares muito interessantes.
- Cavalgada? Não experimentei ainda. Então, como foi?
     O capitão olha para ela e diz desconfiado:
- No início foi emocionante. Aqueles cavalos parecem que advinham nossos pensamentos, são adoráveis mas...
- Mas?
- Confesso que não estava em boa forma e no outro dia quase não levantei da cama. Todos os músculos estavam doloridos.
     Ana não resiste e tem uma pequena crise de risos. Ela tenta ser discreta e não consegue. As outras pessoas olham e ficam curiosas.
- Passei na área médica e me deram um relaxante muscular. Fiquei bem, mas não tive mais disposição para sair e fiquei o resto do dia em casa acompanhando a programação interativa.
     Dante olha para Ana e abaixa a cabeça para ver se ela está passando bem. Ele retira os cabelos de sua face e consegue achar seus olhos escondidos e ainda banhados em lágrimas. Ana levanta a cabeça, respira e ser recompõe enxugando os olhos.
- Desculpa, mas não consegui me controlar – disse ela.
- Achou graça? Ficaria igualmente feliz se você me acompanha-se na próxima cavalgada.
     Ana aproxima o rosto dela no ouvido do capitão e fala baixinho:
- Não vai dar, tenho medo de cavalos. Mais um segredo meu em suas mãos.
- Sou bom em guardar segredos – Sorrir.
     Dante abraça a namorada e a convida para ver um pouco o movimento nas piscinas. Ela aceita e eles caminham tranquilamente pegando um atalho de jardins.
- Como vai o laboratório – pergunta ele.
- Progredindo. Uma família que representa investidores japoneses e chineses chegou hoje. Eles receberam autorização do governo e vão executar o projeto de criação de tubarões em cativeiro. Vou prestar assessoria, afinal sou a única na empresa que fala nihongo e mandarim fluentemente.
- Acho que parte dessa família veio comigo no último voo para cá. Pareciam entusiasmados. Mas espero sinceramente que por precaução o viveiro de tubarões fique o mais longe possível do porto e do meu navio.
- O viveiro ficará mais ao norte, não se preocupe. Mas a grande novidade é que essa semana também chegaram alguns cientistas do Canamérica e Nova Eurásia.
- Parece promissor. Sabe do que se trata?
- Severo não adiantou detalhes, mas deve ser algo relacionado com o clima. Uma parte do orçamento das cidades-estados no mundo é voltada para pesquisas e monitoramentos nessa área.
- E a outra parte vai para os investimentos chineses na Lua – completa Dante.
- É verdade. Japoneses e chineses sempre foram povos numerosos, prósperos e trabalhadores, precisam encontrar mais espaços para os negócios.
     O momento da lua cheia se aproxima. Dante e Ana apanham o teleférico que segue para a muralha e que já se encontrava bastante movimentada, pois a maioria que ali estavam queriam contemplar esse belo momento da natureza. O oceano se mantinha calmo e o horizonte como se previa, estava sem nuvens. Uma brisa suavizava o calor daquela noite e as pessoas estavam educadamente silenciosas e concentradas nos melodiosos sons que saíam de uma flauta andina, habilmente tocada por um dos visitantes.
     Dante convidou Ana a se afastar um pouco da multidão, queria ficar mais reservado. Ela aceitou caminhar um pouco mais ao norte, passaram por outros casais com os mesmos objetivos e encontram um local perfeito para contemplar a dois.
     A lua estava plena sob o horizonte, tudo estava perfeito como Dante imaginava e havia planejado. Ele olha o relógio e confirma a hora, 22:22 h Carinhosamente ele envolve Ana em seus braços e a beija, sussurrando em seu ouvido as muitas saudades que teve com sua ausência. Ela retribui com um apaixonado olhar e o abraça com força. Dante retira do bolso uma aliança de ouro cravejadas de cristais e a oferece com um pedido de casamento. Ana sorrir e aceita com todo seu amor.
- Um pedido de casamento à moda antiga? Como adivinhou?
- Acho que foi intuição – sorrir Dante.
- Luíza?
     Dante confirma com mais um sorriso.
- Não acredito que minha irmãzinha caçula, aventureira e independente teve coragem de contar meu segredinho!
- Ela ficou tão feliz quando eu disse que iria lhe pedir em casamento que não resistiu contar o único segredo entre vocês. Disse que você casando ela poderia ficar livre e percorrer o mundo.
- Ela é o que sobrou de minha família.
- E te ama, sabe disso.
- Eu sei. E você fez exatamente como eu sonhei, a lua cheia, o oceano calmo, a aliança de ouro...
- A música da flauta foi coincidência – interrompe Dante, sorrindo.
- É perfeita! Como não pensei nisso – Os dois se abraçam novamente.
     Ana admira o presente que apesar de estar iluminado apenas pela luz da lua não esconde seu brilho.
- É muito bonito – disse ela – Mas como você conseguiu algo assim? É ouro puro?
- Sim. Esse ouro foi encontrado em Parnamirim por um ancestral da família de meu pai e os cristais cravejados foram retirados de um pedaço de meteorito.
- Meteorito?
- Sua história é cercada de mistérios e sofreu adaptações durante as inúmeras gerações. Mas em todas as versões, alguns fatos são unanimes em afirmar que um meteorito, corisco ou estrela cadente como chamavam, havia caído por volta de 1200 anos AC numa região do sertão pernambucano, que no passado localizava-se no município de Santa Cruz da Baixa Verde. No local onde caiu o meteorito chamava-se Poço da Panela e havia uma cratera.
- Uma estória interessante. Conhecemo-nos a um bom tempo e nunca me falou sobre isso – disse Ana com especial interesse.
     Dante olha de lado e encontrou espaços na base da muralha em que permitia sentar, percebeu que o assunto interessou a sua amada.
- É verdade. Falamos de tantas coisas e essa passou despercebida.
     Ele adianta o corpo um pouco. Ana achava que iria abraça-la, mas na verdade ele ainda tinha o que dizer, gostava daquela estória.
- Esse parente distante era um exímio alfaiate e seu pai, na época já falecido, era um ourives ou artífice conceituado e viviam lá – Dante aponta para o oceano – na antiga
 cidade do Recife. 
Ele ofereceu o anel a esposa que é a tetravó dos meus ancestrais. Olha só, tenho uma imagem antiga em papel deles.

- Que interessante. Ainda em preto e branco. Já vi imagens assim, era comum o marido no momento da foto está de pé e a esposa sentada. E que barba estranha ele usava.

     Ana olha para o anel e passa a admirá-lo mais ainda.

- Interessante. Então esse anel nem deveria estar no meu dedo e sim no museu, junto com essa foto. É uma raridade.

- Sim, é uma raridade e uma relíquia de família passada de gerações. E quero que você aceite e guarde para nossos filhos.

     Ana olha com ternura para Dante e acaricia seu rosto. Seus olhos marejados de lágrimas se enchem de emoção.

- Está tudo bem? – pergunta Dante elevando a ponta do queixo dela com os dedos.

- Não é nada. É só alegria – Ela suga rapidamente o nariz – Achava que você nunca queria ter filhos.

- Por que não os teria? Já somos qualificados pelo controle populacional, apesar das nossas profissões não serem compatíveis na criação de filhos.

- Daremos um jeito – Ana abre um sorriso e o beija.

- Sim, podemos planejar um novo futuro.

     Ana olha novamente para anel e fica curiosa:

- Sabemos sobre o ouro, mas você não falou dessas pedras. Do que são feitas?

- É agora a parte de que não sei responder. Acredito que sejam cristais de rochas ou uma mistura deles.

- Vou guardar com carinho – Ela beija o anel.

     Dante pede que Ana olhe para cima. Uma chuva de meteoritos corta o céu:

- A noite está perfeita.

- Mais que perfeita – responde Ana.

     A lua já estava alta quando o casal percebeu que haviam passado mais tempo do que pretendiam. Ficaram mais de duas horas no norte da marulha e bastante afastado das outras pessoas que já haviam partido para o resort. O cheiro e a brisa do oceano traziam o som das ondas e dos bandos de maçaricos que revoavam e circulavam animados e barulhentos no litoral de uma praia quase sem areia. A maré já dava sinais de que começaria a subir. Ao longe, Dante observa as luzes flutuantes das gigantes embarcações que se moviam sobre as águas. Ele pensava em qual das luzes seria o seu navio, o Cidade Maurícia.

     Ana estava sonolenta e já se acomodava nos ombros de Dante.

- Acho que devemos ir.

     Ela resiste a ideia e deita-se com ele, ambos encostados no paredão.

- A noite está linda e ventilada. Podemos ficar aqui? Já vimos a lua e poderíamos esperar o sol.

- Não será muito confortável Ana.
- Eu estou me sentindo muito confortável, você não?
- Nada no mundo é melhor do que está aqui com você.
     Eles se beijam. Ana se aproxima ainda mais do peito de Dante e o abraça. Ela olha para o litoral e percebe uma luz que se movimenta rápido.
- Dante. É helidrone militar?
- É sim. Devem está patrulhando a área.
- Não me parece. Está vindo em linha reta em nossa direção.
- Talvez o resort tenha informado o nosso atraso.
- Não há razão para isso, muitos visitantes dormem aqui, as câmeras de segurança sabem de nossa presença, a não ser que alguém tenha violado o perímetro, existem sensores em toda praia e elas acedem.
     O barulho do aparelho aumenta e cada vez mais se aproxima do casal. A aeronave joga um foco de luz neles, faz uma pequena volta, estaciona no ar e desce lentamente a 100 metros de onde se encontram.
     Ana olha para Dante e pergunta se aquilo também faz parte de alguma surpresa de noivado.
- Não ando tão criativo assim – responde ele.
     Eles ficam imóveis e observa m o pequeno movimento de soldados que se aproximam rapidamente.
- Senhora Ana! Capitão Dante! Boa noite! – O militar faz cumprimento.
- Boa noite sargento. Podemos saber do que se trata? Violamos alguma regra?
- Negativo senhor. Queira nos desculpar pela maneira brusca em que nos aproximamos, mas estamos cumprindo ordens de leva-los imediatamente para a base naval continental.
- Base Naval?
- Positivo senhor.
     Ana se afasta um pouco de Dante.
- Mas a base fica na plataforma.
- Isso mesmo senhora – confirma o militar – o almirante os aguarda.
- O que o almirante quer com a gente essa hora da noite?
- Não sabemos senhora. É confidencial.
     Dante se levanta e ajuda Ana a fazer o mesmo. Outro militar se aproxima oferecendo cobertas leves.
- Não. Obrigado – Ana rejeita a gentileza.
     O sargento aponta para a aeronave indicando para que eles sigam em frente. Dante olha para Ana e a tranquiliza, sussurrando em seu ouvido:
- Não está curiosa?
- Sinceramente. Não – responde ela em voz baixa.
- Vamos lá Ana. Esses homens estão aqui por algum motivo.
- Não deve ser nada bom ter sua noite de noivado interrompida por soldados. Olha só aqueles dois, estão muito atentos vigiando o entorno, o que eles temem?
     Dante já havia percebido a movimentação de cobertura, só não esperava que Ana estivesse prestando atenção a esses detalhes. Eles embarcam.
     A aeronave ergue seus pares de turbo hélice e voa em direção ao leste, direto para o Oceano Atlântico.
Capítulo 2

Projeto Morfeu

     Já havia se passado quase uma hora quando finalmente a Base Naval Continental se aproximava. O casal estava num compartimento reservado do helidrone e nenhum militar fazia companhia para eles. Ana havia relaxado um pouco mais e dormiu toda a viagem encostada nos braços de Dante.
     O pouso foi realizado no hangar interno da plataforma e ao desembarcarem, Dante e Ana abriram a porta de saída da aeronave e novamente não tiveram contato com nenhum soldado ou escolta. O ambiente estava pouco iluminado e ela achou tudo aquilo estranho. A ansiedade do casal estava cada vez maior.
- Não há ninguém para nos recepcionar? – disse ela.
- Acredito que não vai demorar muito.
- Parecem que estão todos dormindo?
     Um eco de porta metálica é ouvido. Um foco de luz sai dela junto com a silhueta de um homem:
- Na verdade sim! Estão quase todos dormindo Ana. Seja bem-vinda.
     Ana se surpreende, reconhece a voz, mas custa a acreditar:
- Severo?
      O homem ao se aproximar, não deixava mais dúvidas, era mesmo o Severo Torquato (46 anos) – Diretor Geral do Centro de Pesquisas Megalópole Atlântica Recife. O chefe de Ana.
- Agora que não entendo mais nada – disse Ana ainda assustada.
- Olá Capitão!
- Espero que tenha uma boa explicação – responde Dante.
- Não tenho todas, mas espero que você possa me ajudar. Eu sinto muito pela maneira em que foram trazidos para cá, mas acreditem, não havia outro jeito – disse Severo, caminhando em direção deles.
     Ana se aproxima:
- Sempre há outro jeito. O que você faz nessa base militar? Pelo que sei ninguém aqui lida com pesquisas com peixes ou melhoramentos genéticos.
- Com peixes não, mas com pesquisas sim.
- Que tipo de pesquisas?
- Do tipo que vocês jamais imaginariam em participar.
     Dante também se aproxima e não gosta muito dos comentários:
- Vamos com calma. Respostas de que? Participar de que? Olha só Severo! Eu não sei que tipo de brincadeira é essa, mas acho que já está passando do limite. Em poucos dias tenho que voltar para o meu navio e tripulação.
- Receio que não seja possível Dante. Conhecendo um pouco de sua história e de sua ficha militar...
- Ex-militar!
- Como queria. Mas como eu estava dizendo, o pouco que conhecemos de você, tenho certeza que vai colaborar espontaneamente.
- Conhecemos? Como assim conhecemos? E como você teve acesso a minha ficha militar?
     Severo aponta o caminho para eles seguirem e diz com um sorriso no canto da boca:
- Tenho alguns privilégios.
     Eles caminham até uma sala e apanham um elevador que vai dar num escritório muito bem decorado e aconchegante.
- Um belo lugar. Foi promovido Severo? – pergunta Ana com ironia.
- Não posso mais ser promovido, acho que cheguei ao limite. Se quiser tem café ali. O melhor café que já experimentou.
- Eu vou aceitar. Não tive uma boa noite de sono sabe? Foi sequestrada.
     Severo sorrir. Está acostumado com Ana quando ela está de mal humor.
     Dante se aproxima da janela e observa a madrugada ficando azulada, um novo dia vai surgindo e outro helidrone se aproxima.
- O que quer de mim Severo?
- Tudo ao seu tempo Dante. Por enquanto quero que vocês descansem. Posso adiantar que estão seguros e o que tenho para revelar vai fazer vocês nos perdoarem.
     A porta do elevador se abre e um sargento pede permissão para entrar. Ele para na frente de Severo e apresenta continência.
- Almirante, os demais convidados chegaram.
- Estou a caminho.
     Ao ouvir isso, Ana que enchia um copo de café quente numa máquina, derrama o mesmo em sua mão. Ela rapidamente apanha um papel descartável e enxuga. Dante vai ajudar.
- Estou bem – diz ela decepcionada.
     Dante olha para Severo com desprezo. Não consegue imaginar que uma pessoa tão próxima a eles e um amigo íntimo, se apresente como um desconhecido. Severo percebe o desconforto do casal, ele também não se sente bem com a situação e deixa a sala.
- O dever me chama. Preciso receber outros convidados.  Vocês não serão mais incomodados. Descansem, o café da manhã será servido às 7 horas. Se precisarem de algo é só pedir.
     O almirante e o sargento entram no elevador e seguem para o hangar. Dante conduz Ana até um confortável sofá.
- Não vamos nos precipitar. Severo não pode ser uma farsa completa. Vi nos seus olhos que ele estava triste.
- Eu sei Dante. É que é difícil imaginar essas coisas.
     Ele olha para uma estante e ver um modelo de porta retrato antigo com uma fotografia deles com Severo. Ele levanta, apanha e mostra para Ana.
- Isso tem algo a dizer. Por que ele teria nossa foto aqui?
- Culpa, talvez.
- Lembra-se dessa manhã. Fizemos uma divertida pescaria. A própria Tereza fez essa foto.
- Será que ela sabia?
- Não importa Ana – Dante volta a sentar no sofá e segura às mãos dela – Ele é um militar, é uma surpresa para nós. Mas fora isso ele sempre foi amigo.
- Era a missão dele? Fico pensando se a sua posição como capitão do Cidade Maurícia e a minha como chefe do Laboratório de Reprodução Marinha  também sejam mentiras.
- Acho que não. Sabemos que somos bons no que fazemos e seja lá o que Severo esteja envolvido, ele precisa de pessoas competentes e que entendam o que fazem e que ele possa confiar.
     Ana se levanta e vai até a janela. No íntimo ela sabe que Dante tem razão, eles precisam dar a Severo uma oportunidade de se explicar.
    Eles resolvem aproveitar o conforto oferecido e dormem.
     Exatamente às 7 horas da manhã, um sinal eletrônico aguarda autorizar uma vídeo chamada.
- Bom dia capitão e senhora. Posso servir o café da manhã.
     Dante autoriza e um copeiro entra no recinto e monta um apetitoso café da manhã para os dois. Ana acessa o vídeo fone e pede para falar com o almirante.
- Posso ajudar Ana?
- Pode sim almirante! Suba e venha tomar café com a gente!
- Pensei que não iria convidar, já estava com fome. Estou indo!
     A situação fez com que o clima ficasse mais descontraído e fez Dante sorrir com a presença de espírito de Ana.
- Lembre-se que ele é seu diretor.
- Não sei mais. Pretendo pedir demissão.
     Não demorou muito e Severo já estava tomando seu café com os amigos. Ninguém falou nada, esperava-se que o próprio almirante, o diretor ou amigo se pronunciasse. Depois de um demorado gole de café, ele finalmente se explica:
- Conheço vocês há muitos anos. Minha finada esposa era sua amiga Ana, ela sempre dizia que você seria a pessoa certa para conduzir o laboratório, mesmo quando não havíamos sido apresentados. Eu conhecia Dante pelas suas façanhas e grandes habilidades na navegação. A Marinha da União Confederada Nordeste temia perder você para os orientais e acredite, foi uma grande honra ter vocês como amigos e digo isso com muita sinceridade.
     Ana é mais passional e se emociona. Severo se compadece e continua a falar:
- Eu sinto muito. Mas nós estamos envolvidos numa situação delicada e de ordem planetária.
     Ana não parece se interessar pelo mistério, apenas com os seus sentimentos:
- Por que mentiu para nós?
- Ordens, apenas ordens. Quando nos conhecemos eu já havia me afastado da marinha para poder ficar mais perto de Tereza e acompanhar seu tratamento de saúde.
- Entendo perfeitamente Severo. Mas você nunca disse que era oficial – comenta Dante.
     Severo suspira e olha para os lados.
- Acreditem. Quando eu fui procurado pelo mais alto escalão do governo nós já éramos amigos fazia pouco tempo. Foi uma grande coincidência quando me revelaram que a minha missão envolvia vocês. Ponderei bastante, fui até aconselhado a indicar outro oficial, mesmo a contragosto do governo, que achava que eu seria a pessoa certa. Pensando melhor resolvi concordar, pois estando perto de vocês havia de protegê-los e entender melhor a situação.
     Dante se levanta e caminha pela sala.
- Muito bem Severo. Ana e eu aceitamos suas desculpas e apesar do susto, nunca deixamos de acreditar na sua amizade. Mas nos diga, de fato, o que está acontecendo.
     Severo se levanta e vai até a estante. Abre um compartimento oculto e retira uma lamina digital e entrega para Dante.
- Leia com atenção. Se tiver alguma dúvida poderei ajudar, tenho informações adicionais. Esses textos foram traduzidos da língua portuguesa brasileira de outras épocas. Não é o documento completo, pois envolve segurança internacional, mas é o suficiente para agora.
     Ana se aproxima de Dante e os dois começam a ler o conteúdo do documento transferindo a imagem do texto para uma grande tela de cristal na parede da sala.
“Não sei exatamente como aconteceu. Eu estava dormindo e de repente me via como num sonho, mas não era um sonho, era real. Eu enxergava pelos olhos de alguém e ao passar por algo espelhado não me reconhecia. Meu rosto estava diferente, meus olhos, minha boca e cabelo. Não era eu. Apesar de ficar assustado, pois não conseguia acordar daquele pesadelo, não poderia deixar de apreciar aquele mundo novo e ao mesmo tempo familiar. Na maioria das vezes sentia pavor daquela situação, não ouvia e não sentia, na verdade nenhum sentido funcionava apenas a visão e mesmo assim não a controlava, eu não olhava para onde queria. Não sei se faz alguma diferença, mas lembro de que antes de tudo isso acontecer eu sentia um cansaço e tinha um sono profundo. Não fazia nada que justificasse o cansaço, mas em vez de dormir a noite ou à tarde depois de um almoço, esse sono se apoderava de mim inesperadamente, me dominava e assumia minha vida sem permissão e eu nada podia fazer. Eu lavava o rosto, tomava várias xícaras de café e energéticos, mas não funcionava. Na primeira vez que tive uma visão, estava numa estação de trem ou metrô, pelo menos eu acho que era, pois o formato era muito diferente do metrô que vejo sempre. Não consegui decorar direito o que estava escrito, mas lembro do nome Asa Branca e do número 2514 que depois sugeri um amigo a jogar no bicho...”
     Dante faz um sinal com a cabeça de que não entendeu essa última parte.
- Que bicho ele se refere?
     Severo sorrir discretamente e explica que era um jogo de azar muito comum no Brasil antigo e que os números correspondiam aos animais.
- Nesse caso, segundo nossos historiadores os números 13,14,15 e 16 estavam associados a grupo da borboleta.
- Borboleta? Interessante! Tenho uma Morpho menelaus tatuada na minha perna direita, acho que resolvemos o mistério – disse Ana.
- Ou parte dele – responde Severo.
     Ana fica ainda mais desconfiada com o comentário e Severo pede para Dante continuar a ler, e dessa vez em voz alta.
“.. As pessoas se vestiam com roupas iguais e quando estava no trem fiquei impressionado com a velocidade com que se movia. Era fim de tarde e a paisagem era de caatinga. Viajei algumas vezes para o sertão à trabalho e sempre via essas paisagens e passávamos por cidades e povoados, mas nesse trem não via essas coisas, até a paisagem parecia mais selvagem. Uma das coisas que me fascinavam eram as cores, todas muito vivas. A impressão que eu tinha é que havia mais cores do que o normal. ”
     Ana interrompe a leitura:
- Conheço esses sintomas. Chama-se tetracromatismo.
     Severo fica satisfeito com o comentário e confirma balançando a cabeça positivamente.
- Do que está falando? – pergunta Dante.
- Alguns peixes possuem distinção de nuances entre cores.
- Só nos peixes?
- Alguns pássaros e mulheres também.
     Severo completa a informação:
- Resumindo. É um ganho na sensibilidade ocular na percepção de cores. É uma condição rara nos humanos. Continue por favor.
    “ Fiquei muito assustando quando um tipo de máquina ou robô jogou luz em meus olhos, parecia que ela sabia que eu estava ali dentro. Pouco tempo depois eu estava sentado abrindo o que parecia um computador portátil. Depois tudo ficou escuro, mas eu sabia que ainda estava lá. Fiquei angustiado demais, parecia que estava preso num quarto escuro. De repente, ainda escuro, tinha a impressão que podia mexer meus dedos, os braços e pernas. Mesmo sem enxergar, conseguir me levantar e um novo desespero se apoderou de mim, pois achava que estava cego. Subitamente a luz entrou, fiquei alegre em saber que não tinha perdido a visão, mais ainda continuava naquele corpo estranho, a diferença agora é que eu podia controlar os movimentos. Conseguir me esquivar e toquei no que poderia ser uma janela fechada e de súbito desmancha mostrando o mundo lá fora. Ainda estava naquele trem veloz. Tentei me acalmar, olhei os detalhes, percebi que era tudo muito moderno e cheguei a pensar que estava no Japão ou China. Tive a impressão que começava a escutar alguma coisa.”
- Trens do Japão? – Surpreende-se Dante.
     Severo mas uma vez auxilia.
- Parece estranho, mas o Japão foi o precursor dos trens velozes no mundo antigo. O México assumiu no futuro a tecnologia na construção de trens velozes muitos séculos depois.
- Bem antigo eu suponho. Não se esqueça dos helidrones mexicanos da Martins Familia y Empresa.
- São mais contemporâneos – responde Severo.
     Dante fica impaciente com a leitura, queria que Severo explicasse melhor o que ele estava lendo, tudo aquilo parecia ridículo e sem sentido.
- A única história que me interessa é a naval. E se você ainda é nosso amigo, e não se importar mande seus homens nos levar de volta ao continente.
     Ana sabia que Dante não voltaria mais a ler e Severo não tinha intenção de fazer Dante passar por ridículo e muito menos tê-los a presença na base contra a sua vontade. Mas ela sabia que havia algo de curioso naquele relato. E vai direto ao assunto:
- De onde você tirou esse texto Severo?
    O almirante se aproxima da tela e com um controle muda a imagem.
- Foi transcrito de uma gravação de vídeo.
- Vídeo? Faz tempo que não escuto essa palavra. De quantos anos atrás estamos falando.
- 2014
- O quê? E por que não olhamos a gravação original?
- Como eu disse, é uma língua português-brasileira antiga, muitas palavras e expressões estão  em desuso na nossa época. Além de que o sotaque era muito expressivo, dificultaria a compreensão. Acredite, não foi tão fácil manter esse texto o mais original possível. Você vai ler?
     Ana olha para Dante e ele concorda. Ela decide então continuar a leitura em voz alta:
“Não sei quanto tempo fiquei apagado, pois acho que dormir e acordei de novo com aquela luz nos meus olhos. Finalmente estava fora do trem, numa estação muito movimentada e iluminada, parecia ser véspera de natal com pessoas ainda usando roupas iguais. Já não consegui entender direito mais nada, ouvia línguas estranhas, era um país estrangeiro, tinha certeza até que li uma tela luminosa escrito em bom português: Estação Amaraji. Às vezes ficava escuro por alguns segundos e eu não conseguia ver nada. Mas acho que estava num tipo de shopping misturado com estação de metrô. Achei um tipo de robô transparente engraçado, usava bigode e oferecia chapéus muito bonitos. Fazia um tipo mexicano e já estava distraído quando ele olhou meus olhos e jogou luz em cima e isso já estava me irritando. Quando retornei de outro intervalo de escuridão, vi telas de TV mostrando os trens. Confesso que era tudo muito bonito e que ninguém acreditaria em mim, por isso faço essa gravação. Eles querem me internar como louco e se alguém ver e puder me ajudar eu agradeço.
Estava mais calmo, aceitava meu destino, apesar de não ser religioso, achei que Deus estava querendo que eu visse alguma coisa, uma visagem quem sabe? Foi quando decorei direitinho o nome do trem que eu estava que se chamava Columba Asa Branca 2514. Tinha outros passando na TV, mas foi muito rápido, pois ali já não controlava mais nada em mim.”
     Ouvindo a narração, Dante começou a se interessar.
“Não posso dizer mais detalhes por que houve muitos buracos no escuro. Mas lembro de voar numa coisa parecida com helicóptero, de uma grande muralha e que se via de muito longe o mar. De um lugar que parecia um parque aquático com muita gente e de uma bela mulher. Meu coração tremia quando seu rosto estava junto do meu. Acho que eram noivos, pois eu ou ele deu um anel de ouro de presente. “Depois tudo ficou escuro e vi poucas imagens de uma luz se aproximando no céu.”
     Dante e Ana ficam atônitos. O que havia naquele texto estava relatando passagens da vida da Dante que só aconteceriam 500 anos depois.
- Entende agora por que deveria ler em voz alta? – disse Severo.
- Quem é esse...esse cidadão? – pergunta Dante apontando para a tela.
     Severo muda a imagem da tela e apresenta o autor da incrível experiência. Um homem branco de cabelos pretos, um pouco calvo e de estatura média.
- Foi difícil localizar arquivos médicos antigos. O caso só possível ser esclarecido por que alguém achou a gravação e entregou para um grupo de pessoas que estudavam casos sobrenaturais.
Na época das primeiras revoluções separatistas no Brasil, muitos vídeos foram recolhidos por forças militares e rebeldes. Infelizmente pouca coisa me foi revelado sobre esse homem, pois sabiam da nossa relação de amizade.
- Quem não revelou? – pergunta Dante.
- Um comitê mundial que reúne cientistas e pesquisadores renomados de todo o planeta. Terá a oportunidade de conhecer seus representantes.
- Não informaram o nome. Mas pelo menos algumas coisas lhe disseram. Certo?
- O nome não foi dito, sabe-se que nasceu na cidade do Recife no final do ano de 1967 e que na época da gravação teria em torno de 36 anos de idade.
     Ana se levanta e vai pegar um pouco de água, mas para no caminho e se vira para Severo:
- De que arquivos médicos você falava?
     O almirante respira fundo:
- A gravação não tinha nada haver com os registros médicos. O nosso amigo aqui guardou o disco com as imagens num assoalho de uma casa antiga. Parecia que tinha receios de alguém interna-lo como louco. Afinal de contas foi apenas um sonho estranho e espetacular do futuro. Muitos anos depois, ele já não morava mais na casa, havia vendido para um grupo de arquitetos que tentavam salvar casas de estilos simples, mas raros. Entre eles, havia um rapaz que estava investigando casos paranormais em casas antigas e curiosamente seu aparelho eletrônico localizou o disco no assoalho. Pelo visto o grupo não deu muita atenção ao caso, pois os vizinhos relatavam que o antigo morador tinha comportamentos estranhos e que todos da vizinhança achavam que ele precisava de cuidados médicos apesar de nuca ter havido problemas com ele. Semanas depois o equipamento foi confiscado e com ele o disco.
- E os arquivos médicos – pergunta Ana novamente, abrindo as mãos.
     Severo continua:
- Sim, claro. De alguma forma, por um motivo que não conhecemos, nosso amigo fez alguns exames na época que aparentemente deram normais.
- Aparentemente – repete Dante.
- Sim. Se não fosse um caso oftalmológico curioso.
- Oftalmológico?
- Na íris do seu olho direito foi detectado a presença de manchas psóricas. Naquela época foi assim identificado, mas os estudos comparativos recentes, de um fenômeno mundial que vem sendo estudado há muitos anos, revelou algo mais interessante. Não eram manchas e sim possíveis coordenadas no tempo espaço. Depois, descobrimos que em todos os casos semelhantes no mundo e em várias épocas havia em seus portadores uma deficiência nos níveis de cálcio e ômega 3. No exame realizado em Dante quando estava no trem, confirmamos uma nova informação, acrescentamos uma leve tensão em seu globo ocular quando o mesmo encontra-se em fase de mirante.
     Dante caminha pela sala tentado assimilar as informações que Severo dizia.
- Você sabe de muita coisa Severo! Mas não está conseguindo nos explicar de um jeito fácil. Sou um capitão de navio mercante e militar reformado, não sou um cientista. Minha missão é transportar alimentos, remédios e ajuda humanitária nas horas vagas. O que você está tentando nos fazer acreditar é algo absurdo, totalmente fora da realidade.
     Ana concorda:
- Eu lido com reprodução de peixes, com genética. Sou mais cientista do que Dante consegue perceber. Meu trabalho é evitar que espécies entrem em extinção devido à pesca predatória, reproduzir o máximo em cativeiro e evitar a fome no mundo. Nas horas vagas gosto de ficar a sós com o capitão e de preferência não sendo incomodada por militares e muito menos por voyeurs do passado.
- Não são voyeurs. São observadores – rebate Severo
- Como queira! – responde Ana bastante chateada.
     Severo caminha um pouco e retorna para sua mesa. Ele senta em sua confortável cadeira e olha para os amigos atentamente.
- Acreditem. Não tenho um jeito mais fácil de explicar. A impressão que tenho é que quanto mais acho que entendo, vou ficando mais longe das respostas.
- É meu amigo, parece que você se enrolou numa rede bem grande.
- Preciso da sua ajuda Dante! E da sua também Ana. Sei que extra oficialmente posso confiar em vocês.
     Ana estende uma parte do corpo sobre a mesa aproximando seu rosto do almirante e vai direto ao assunto:
- Se quer a nossa ajuda não vamos lhe negar isso. Mas precisa nos contar a verdade.
- Toda a verdade que você sabe e de preferência de um jeito que eu entenda – completa  Dante, olhando para Ana – Ela é mais esperta e vai saber se o que diz é verdade ou não.
    Ana retribui com um olhar de confirmação.
     Severo concorda com os termos, revelando que sentia um alívio em saber que não havia perdido seus amigos. Pediu que fossem discretos pois são informações sigilosas e ele poderia ser afastado do comando da base. O simples ato de falar e ser ouvido pelas pessoas erradas pode alterar o curso da história.
     Dante e Ana prometem que não vão falar nada com ninguém.
- Por onde devo começar – Severo pensa em voz alta.
- Não se preocupe, Ana e eu vamos lhe ajudar. Que tal começando por esta base naval. Onde exatamente estamos?
     Severo desde antes sabia que cedo ou tarde deveria revelar todos os fatos para os amigos, mas precisa recuperar a sua confiança neles.
- Essa base é a parte física do que chamamos de Projeto Morfeu.
- Quem é Morfeu?
- É o deus grego dos sonhos. Segunda a lenda, podia se fazer presente nos sonhos das pessoas na forma humana.
- Muito bem. O que o deus dos sonhos tem haver com esse projeto? Aqui é um dormitório? – Continua Dante.
- “Estão quase todos dormindo” foi o que você disse quando chegamos – completa Ana.
- Sim. Mas é mais que um dormitório. Esta base localiza-se em uma coordenada específica identificada pelos físicos de reflexo de vórtice temporal – disse Severo.
- A teoria de buracos de minhoca? Viagens no tempo espaço? – pergunta Ana.
- Em princípio acreditava-se que sim. Mas como o próprio nome diz, é um reflexo. Pense numa miragem, uma janela que se abre aos olhos de outra pessoa num futuro distante, só que em condições muito mais especiais.
     Dante ainda está muito curioso como o homem do vídeo relatou seu passado recente.
- E como se dar isso?
- Um fenômeno faz com que você observe o futuro através dos olhos de uma pessoa que vive numa época futura. Por isso chamamos de observador o que está no passado e de mirante a pessoa que está no futuro.
- Simples assim? – pergunta Dante.
- Você queria que fosse simples? Estou me esforçando.
     Ana olha para Dante.
- Podemos complicar um pouco mais, eu aguento. Agora nos diga por que estamos aqui? – pergunta Ana.
- Por que Dante se tornou mirante e em poucos dias vai se tornar observador, é assim que funciona, é isso que as pesquisas indicam. Tanto o observador do passado e mirante do futuro estão ligados pela mesma habilidade.
     Dante se movimenta nervoso e fica andando rápido pela sala, pensando no que vai dizer:
- Eu não vou participar dessa palhaçada! Sinto muito! Se quiser ver o futuro procure um daqueles adivinhos lá do sul.
     Severo entende o nervosismo do amigo e tenta convencê-lo de que estar ali foi a melhor coisa que poderia acontecer.
- Como a melhor coisa?
- Por que você poderia enlouquecer em vislumbrar o futuro. Os efeitos podem ser ruins para a sua mente.
     Severo se levanta e aponta para a imagem congelada no vídeo do observador do passado.
- Aquele homem foi internado e diagnosticado como esquizofrênico! É isso que você quer? E tem mais! Ele assumiu completamente seu corpo por alguns minutos.
- O que?
- Conheço seus sintomas. Você sente sono e dorme sem perceber, tem sensações de déjà vu.
     Severo consegue finalmente chamar atenção de Dante e mostra uma parte do vídeo em que o capitão se move em sua cabine no trem.
- Não me lembro disso!
- Claro que não lembra. Não era você andando, era ele.
     Dante fica em silêncio olhando para Severo. Não consegue coordenar seus pensamentos e dizer algo que faça sentido naquele momento. Se tudo for verdade, ele em breve teria que passar por mais uma experiência da qual não estava preparado e não queria.
     Muito desconfiada com a calmaria da base, Ana pergunta o que existe de mais importante naquele lugar. Severo olha para os amigos:
- O bem mais precioso dessa base são os voluntários para a formação onironautas. O objetivo é se reconhecer e lembrar que está num sonho e ter autonomia em vivenciá-lo.
- Pessoas dormem aqui e participam dessa experiência?
- Sim Ana. Elas literalmente estão dormindo.
- Sedadas ou condicionadas?
- Treinadas para dormir é a palavra certa.
     Dante vai até o bebedouro e pega um copo d’água.
- E você deseja que eu faça parte do projeto dormir com Morfeu? Falando nisso minha tia não está aqui? Está? Ela dorme com muita facilidade.
     Ana se esforça mas não segura o riso que tenta disfarçar pondo rapidamente a mão na boca. Severo percebe que Dante está mais calmo.
- No seu caso não. Seu processo é natural, é um dom adquirido. Vai acontecer em breve e não precisa de treinamento.
- E qual a diferença?
- Há muita diferença Dante. Primeiro que você não vai vivenciar um sonho ou algum tipo de viagem astral como imagina. Você vai de fato olhar o futuro e nós vamos olhar ele com você. Vamos monitora-lo com o que há de mais moderno em tecnologia que foi criada para este momento.
- Vocês sabiam que isso iria acontecer?
- Na verdade pode está acontecendo em algum lugar do planeta, mas sempre perdíamos as pistas das evidências e o observador temeroso ficava em silêncio, o que não foi o caso dele – Severo mais uma vez aponta para o homem misterioso do vídeo.
- Mas apenas Dante, entre nós, tem esse dom?
- Na verdade Ana, muitas pessoas podem ter, mas não sabemos como essa habilidade se desenvolve. Pode ser um traço de evolução, um dom permitido por Deus. Temos muitos registros no mundo de pessoas que no estágio que fica entre o sono e a vigília viu cenas nítidas de pessoas andando pelas ruas, de paisagens, de cenas estranhas e curiosas.
- E não era sonho?
- Não. Para sonhar o ser humano precisa...
     Uma outra voz feminina ecoa na sala e interrompe a explicação do almirante:
- ...de um padrão de ondas cerebrais, passar por estágios.
     Severo se levanta rapidamente e demonstrando muita alegria em ver a mulher:
- Quero lhes apresentar a Dra. Elizabete Iroqouian. Ela é médica neurologista do Instituto Canamérica. Estes são meus amigos Dante e Ana.
- Prazer em conhecê-los pessoalmente. Li a ficha de vocês no voo até aqui.
     Ao ouvir mais uma vez que alguém leu a sua ficha, Dante não resiste em comentar:
- Minha ficha? Interessante. Lembre-me de comprar um exemplar na próxima edição. Gostaria muito de ler também.
     A Dra. Elizabete aparentava ser pelo menos 4 anos mais velha que Ana, mas na verdade tinha 40 anos completados recentemente. Ela nasceu no norte do que um dia foi o Canadá, antes da junção com o Estados Unidos da América, México e Ilhas do Caribe. Falava bem a língua local, mas deixava passar um pouco do sotaque típico. De personalidade forte, não deixava de transmitir certa sensualidade no olhar e na voz. Uma mulher bonita e exótica para o padrão que estavam acostumados a ver dos povos do norte.
     Ana também não gostou muito do comentário de que “Li a ficha de vocês” e da forma curiosa que observou Dante. Ela faz uma cena, disfarçando o ciúme e olhando para os lados procurando algo que havia perdido:
- Nossa! Onde coloquei a ficha da Dra... “Enoque”...adoraria ler também.
- Iroqouian – responde Elizabete, carregando no sotaque da palavra e não aceitando bem a ironia de Ana.
- Como?
- Meu sobrenome é Iroqouian.
- Ah sim! Sobrenome diferente né?
- É indígena. Sou descendente de uma antiga tribo canadense.
- Interessante – responde Ana com desdém – Acho que eu deveria saber se tivesse lido a sua ficha, mas acho que perdi em algum lugar– Ana abre os braços e volta os mesmos batendo ao lado da perna.

     Elizabete ignora a reação de Ana, acha tudo compreensível, mas seu pensamento está focado em Dante. Ela acompanha de perto todos os registros relacionados ao fenômeno e é uma defensora da teoria de que não se trata de sonho e sim de algo muito mais revelador para a humanidade.
     Severo percebe o clima um pouco hostil entre as mulheres e convida Elizabete para sentar e revelar o motivo da sua presença:
- Eu lamento que as circunstâncias não permitam uma melhor apresentação mas...
- Não se preocupe almirante, está tudo bem, posso lhe garantir – disse Elizabete com um leve sorriso no rosto.
     Severo olha para Elizabete e se dar conta de que nunca a viu sorrir, por um instante lembrou-se de Tereza, mas rapidamente conseguiu tirar aquele pensamento.
- A Dra. Elizabete é uma das mais notáveis membros do comitê mundial e está aqui para acompanhar seu desenvolvimento Dante.
- O meu o que?
     Elizabete olha para Dante e Ana e, gentilmente pede para que eles se sentem ao lado dela. Ana resiste um pouco à ideia, mas Dante consegue convencê-la com um olhar.
- Dante, vou ser muito sincera com você. Não estou aqui só por mera curiosidade científica, apesar de achar que estou diante de um fenômeno que já acompanha a humanidade desde os primórdios da existência e que nunca foi percebido. Estou aqui pela a sua saúde e segurança. Ana – continua Elizabete – O que disse para Dante é o mesmo para você.
     Ana baixa a cabeça, meio envergonhada pela cena anterior.
     Dante balança a cabeça positivamente facilitando um diálogo. Ele está mais seguro agora e acha que a cientista será o passaporte que ele precisa para sair da base.
- Diga-me uma coisa doutora...
- Elizabete. Por favor, me chame apenas de Elizabete.
     Ana levanta a cabeça e sente um raspão de ciúme.
- Diga-me: Como chegou tão rápido do Canamérica?
- Quando o seu primeiro caso de mirante aconteceu.
     Dante aparentado bastante calma, olha discretamente para Ana e novamente pergunta para Elizabete.
- E quando aconteceu isso?
- Na Megalópole Araripe, quando você inadvertidamente ultrapassou os limites da cidade. Parecia que não tinha a menor noção de onde estava. Poderia ter sido atacado por uma onça suçuarana sabia?
     Um pouco constrangido, Dante meneou a cabeça negativamente.
- Não me lembro disso.
- Não poderia se lembrar, estava sob o efeito mirante e aquele homem do vídeo experimentava a primeira visão do futuro, mas precisamente 500 anos na frente.
- É sempre assim doutora? O tempo do evento marcado em 500 anos? – pergunta Ana.
- Acreditamos que não. Apesar de que no seu caso temos um padrão muito bem acertado de tempo. Possivelmente o fenômeno marque outras inserções de tempos em pessoas e épocas diferentes. Na aurora da humanidade, nossos ancestrais faziam registros rupestres em pedras e a arqueologia moderna cada vez mais tem evidências de fatos estranhos para determinadas épocas.
- Como, por exemplo?
- São muitos. Desenhos que indicam animais que poderiam até existir, mas não haviam chegado ainda àquela região. Aparelhos voadores como aviões e pessoas usando capacetes e muitos outros casos. Quando as evidências não podiam ser mais ignoradas nos rendemos a acreditar que havia um fenômeno oculto na natureza humana, até o momento, que possibilita vislumbrar o futuro.
- E isso vai acontecer com Dante?
- Sim Ana, vai acontecer em breve. Por isso que é importante que vocês estejam conosco nesse momento.
- Mas por que eu?
- Explicaremos no momento certo. Primeiro queremos deixar bem claro as nossas intenções.
     Já havia se passado algumas horas e o relógio se aproximava do meio-dia. Severo havia sugerido uma pausa para o almoço e já estava mais tranquilo, pois recebeu de Dante e Ana a garantia de que não sairiam da plataforma até está seguros. As evidências eram muito claras, apesar dos fatos serem extraordinários. Durante o almoço, Elizabete contou outros fatos históricos, inclusive sobre o desenvolvimento de foguetes, armas, tipos de arquiteturas, automóveis etc.
     Mas Dante tinha muitas curiosidades, não queria se sentir como uma cobaia diante de um grande laboratório e isso era percebido por todos. Severo conhecia bem o amigo e não poupava esforços para deixar o capitão livre em tomar importante decisão.
- Tem um helidrone no fim desse corredor esperando por vocês. Podem ir se quiserem, não temos o direito de força-los em permitir a nossa participação em testemunhar e estudar esse evento – disse Severo.
     Elizabete suspira demonstrando certa tensão e lembra ao capitão que ainda haverá um último evento de mirante antes de ele, Dante, ser o observador e, faz importantes recomendações para Ana que não se afaste dele.
     Mas Dante já se encontra suficientemente envolvido com tudo e sua curiosidade agora é mais forte do que nunca.
- Severo! Tem outros como eu aqui?
- Como você não.
- Pode me explicar?
- Existem apenas 12 voluntários nessa base que colaboram para desenvolver o projeto Morfeu. Eles são de várias partes do planeta e possuem habilidades de premunição, mas não são os elementos mais importantes, você é.
     Elizabete interrompe:
- Dante, você vai dar um salto de 500 anos até o futuro. Essa dimensão de tempo é extremamente rara. A verdade absoluta é que o projeto Morfeu foi criado esperando por você.
     O capitão olha para Ana e ela percebe o quanto de responsabilidade existe na decisão de ir ou ficar. Mas Dante toma uma decisão de ficar na condição imposta por ele e sem interferências.
- Que tipo de condição? – pergunta Severo.
- Doutora! Em quantos dias vou ser mirante de novo?
- Seguindo os últimos padrões, nos próximos 15 dias aproximadamente.
- Pois bem. Ficaremos aqui na base, dentro do meu alojamento e sozinho...
    Ana fica na frente de Dante em silêncio não aceitando a decisão. Ele segura nas mãos dela e repete carinhosamente que vai ficar sozinho.
- Até o fenômeno acontecer – continua ele – não quero nenhum tipo de tecnologia no quarto, nenhuma câmera de vídeo, de áudio e principalmente monitoramento eletrônico. Não quero absolutamente nada, a não ser alimentos, um cartaz branco e uma caneta porosa de cor preta. Conheço os sintomas pós-mirante e saberei que aconteceu.
- E depois? – pergunta Severo.
- Depois eu respondo se continuo ou fico aqui na base.
     Severo está atento ao que o amigo está pedindo, apesar de não aparentar resistência as suas condições. A doutora Elizabete finalmente mudou o semblante de aflição para o de alívio, seu rosto ficou com traços apreensivos, mas felizes.
     Ficou tudo acertado para o dia seguinte, Dante ficaria isolado até o efeito mirante ocorresse. Passou o resto dia conhecendo as instalações da base, inclusive a sala do sono, onde viu através de uma parede de vidro, os corpos adormecidos dos voluntários do Projeto Morfeu.
     A noite estava especialmente bela. Dante e Ana estavam confortavelmente instalados numa suíte preparada especialmente para eles. Tiveram um jantar delicioso e receberam presentes de noivados de Elizabete e Severo.
- Tem um cartão? – pergunta Dante
- Sim. É de Severo e Elizabete. Aqui diz: Para os noivos mais simpáticos do Oceano Atlântico, oferecemos presentes simples, mas vindos do coração.
- O que será que tem nessa caixinha? – Ana balança levemente perto do ouvido.
- Só tem um jeito de saber.
     Eles ficam surpresos com o presente. Eram dois pares de lentes de contato que projetavam algumas imagens virtuais amorosas deles. O clima ficou divertido e eles riram muito. Ninguém os incomodava, estavam sozinhos numa área reservada da plataforma. Fizeram amor com muita  paixão e depois foram para o deque observar a lua cheia e os meteoritos sob as águas calmas e iluminadas do oceano.
    No dia seguinte, receberam a visita de um soldado trazendo os objetos que Dante havia solicitado. Fizeram a vistoria nos seus aposentos e o próprio Severo lhe garantiu que não havia nenhuma escuta ou câmera de vídeo.
    Dante se despediu de Ana, pediu que ela confiasse nele. E sussurrou em seu ouvido:
- Preciso que você fique de olho naqueles dois. Eles servem os interesses de pessoas poderosas.
     Ana olha para Dante com carinho pondo as duas mãos em sua cabeça e encosta a sua testa na dele.
- Eles não estão à vontade. Tem algo grande por trás disso tudo. Estarei aqui quando voltar – disse ela.
- É bom que esteja.
- Dante! Sei que vai parecer estranho, mas tenha cuidado com o que vai fazer.
- Não se preocupe. Se eu estiver certo, tudo já foi feito.
     Ana faz uma expressão de que não entendeu e põe os dedos nos lábios enviando-lhe um beijo.
     Dante fecha a porta dos aposentos e durante dias fica sem ter contato com o mundo exterior. Ana e os demais se encontram do outro lado da plataforma, observando o sinal que Dante lhe havia orientado de que ela poderia se aproximar.
      Alguns dias depois, numa manhã chuvosa, finalmente Ana ver o sinal de Dante. Ele abriu a porta e acenou com uma bandeira pequena. Ela imediatamente correu debaixo do temporal e entrou no seu quarto abraçando-o.
- Então! Como você está?
- Estou bem, eu acho.
- Aconteceu?
- Sim. Despertei faz poucos minutos – Dante aponta para o espelho grande que ele havia pedido. Estava escrito uma frase que ele entendeu como: “Farei hoje mesmo o que está pedindo”
- Aquela letra não é sua?
- Não, não é.
- O que foi que você pediu?
- Você vai ver.
     Nesse instante, Severo, Elizabete e outro soldado entram no quarto.
- Espero que você tenha novidades?
    Dante sorrir para o almirante bastante entusiasmado.
- Precisamos de um helidrone o mais rápido possível.
     Severo olha para o soldado e esse imediatamente compreende a ordem e sai correndo na chuva para providenciar o transporte.
- Mas agora? Precisamos fazer exames – disse Elizabete.
- Estou bem doutora.
     Ana segura na mão de Dante e pergunta aonde ele quer ir.
- Ilha da Nossa Senhora da Conceição – responde o capitão Dante.
     Pouco tempo depois, o piloto do helidrone seguiu por muitas milhas até chegar a um pequeno arquipélago. Severo e Elizabete como era de se esperar, foram acompanhando Dante e Ana. A ilha em que se dirigiam pertencia a um antigo bairro que fica na parte norte da antiga cidade do Recife submerso e ficava próxima de outra pequena ilha conhecida como Dois Irmãos.
- Essa nave pousa na água? – pergunta a Dra. Elizabete.
- Podemos pousar na água e na terra. Nossos helidrones são anfíbios – responde Severo.
     Dante se aproxima do piloto e indica a área em que deseja pousar.
- Não podemos senhor. O ponto em que deseja está coberto pela vegetação, não existe espaço seguro para pouso – responde o piloto.
- O que foi que você perdeu lá embaixo Dante? Pode nos explicar?
- Não perdi almirante, alguém colocou lá para mim.
     O almirante ordena para o piloto dar outra volta na ilha e escolher um local adequado para pouso.
- Não encontramos senhor! Nossa única opção é pousar na água e nos aproximarmos da margem, não existe praia nessas ilhas.
     Severo concorda e o piloto faz nova manobra e pousa do lado oeste da ilha onde as águas estão mais calmas.
     Passado a chuva, um belo raio de sol sai por trás das nuvens que descortina um céu azul. O helidrone se aproxima da margem e estabiliza próximo a uma barreira. Ao descerem, os pés logo afundam no barro e eles andam com dificuldades até chegarem à base do barranco onde uma pequena mata fechada dificulta o acesso.
     Severo está conduzindo um facão de fio de laser e algumas cordas. Ele vai à frente abrindo caminho. O piloto faz a leitura do terreno.
- Para onde exatamente deseja ir capitão?
- Para o topo da ilha!
     O piloto meneia a cabeça positivamente e traça uma rota evitando os maiores obstáculos e envia para o dispositivo do almirante.
- Espero que nessas férias você tenha se mantido em forma capitão.
     Dante olha para Severo curioso.
- Por que diz isso almirante?
- São 230 metros de subida por entre pedras e mata fechada. Será um esforço físico muito grande até lá. Tem certeza disso?
- Absoluta! Lá em cima vamos acabar com o mistério e teremos a sua resposta se vou ou não participar do projeto Morfeu. E quanto à subida, não tem problema, sempre sonhei em pagar uma promessa nesse morro?
     Ana se apoia em Dante para transpor o último passo de lama.
- Minhas botas estão muito sujas, precisamos limpar ou vamos escorregar bastante.
     Severo estende a mão para Elizabete que tem mais dificuldades em vencer a curta caminhada e ainda se assusta com um caranguejo.
- Esse é dos grandes! Vamos doutora! Só mais um pouco! Esse manguezal é muito espesso.
- Obrigado almirante! Confesso que não estou acostumada a caminhar em solos assim e não fico a vontade com esses animais. Mas Dante, diga-me! Que tipo de promessa você está falando?
- O nome da minha mãe é Maria da Conceição, o mesmo nome da minha bisavó. É uma homenagem a Nossa Senhora da Conceição, mãe do Jesus cristão do catolicismo. Lá no alto existia uma imagem da santa e tudo isso aqui ao redor era uma pequena cidade. No fim de cada ano os fiéis realizavam procissões e comemorações. Existia uma grande escadaria e centenas de pessoas “pagavam promessas”.
- Pagavam promessas?
- É uma maneira de falar daquela época – continua Dante - Você fazia um pedido para a divindade, poderia ser conseguir um emprego, a cura de um problema de saúde ou uma realização pessoal. As pessoas prometiam alguma coisa em troca, algo que exigisse um sacrifício ou esforço.
- Sacrifício de animais?
- Não. Minha mãe dizia que poderia ser muitas coisas que para a pessoa realizar teria que se superar, mas na maioria das vezes subiam as escadarias do morro, acendiam velas e assistiam as cerimônias.
- Parecia algo bem importante para a época – disse Elizabete.
- Sim. Na verdade era um evento religioso muito interessante, assim como os esforços de algumas pessoas que subiam as escadarias de costas, de joelhos ou se arrastando pelo chão.
- Realmente é um grande sacrifício.
- Essa história foi passada de geração em geração. Sempre tive vontade de vir por aqui, mas como a imagem original da santa não está mais aqui, perdi o interesse. Meu navio às vezes passa nessas águas e de longe observo o velho Morro da Conceição e lembro-me das histórias e da minha doce mãe.

- É muito comovente Dante, mas espero que agora tenha um bom motivo para subir esse morro. E não se preocupe, no meu país não existe “pagamento de promessas”, mas posso imaginar que são secretos e certamente deve ser indelicado perguntar o motivo.
Ainda fazendo os primeiros esforços seguindo os passos de Severo que vai rápido subindo e abrindo caminho com o facão laser, Dante acha engraçado o comentário da Dra. Elizabete que não consegue disfarçar o sotaque quando perde o fôlego. Ele olha para Ana, que mesmo sem entender o motivo sorrir para ele. Se tivesse de pagar a promessa, ele já estaria fazendo, pois seu sonho estava ali, bem perto dele e se chamava Ana Wolf.
- O almirante é bem disposto para idade dele – comenta Ana.
- Os militares sempre estão em forma – responde Dante.
     Severo mesmo bastante adiantado responde:
- E também tenho boa audição. Obrigado pelo elogio.
     Não foi fácil transpor a subida até o topo do morro. E quase duas horas depois, finalmente chegaram. A Dra. Elizabete reconhece a base onde deveria ter existido a imagem da santa que Dante havia comentado. Ela respira fundo e olha por entre as árvores a paisagem ao redor e só encontra água e pequenas ilhotas também rodeadas de mangues e com dezenas de garças voando entre elas. Ficava imaginando que no passado existia uma bela cidade com muitos bairros e uma grande população.
     Severo avisa ao piloto que conseguiram chegar ao topo e que de fato não existe nenhum local seguro para pouso.
     Sem perder tempo, Dante segue com Ana e Elizabete para trás da base de concreto onde ficava a santa. Ele calcula alguns centímetros no chão, refaz novamente e pensa com cuidado.
- O que está procurando? – pergunta Ana.
- O local exato.
     Severo se aproxima curioso.
- Posso ajudar?
- Sim! Preciso cavar exatamente nesse ponto.
- O que tem aí dentro?
- Um cilindro, uma caixa ou algo assim. Na verdade é uma cápsula do tempo.
     O almirante olha para Dante com desconfiança.
- O que você está aprontando?
- Veja com seus próprios olhos.
     Eles cavaram abaixo da base de cimento e encontraram um objeto bastante desgastado.
- O que será isso? – pergunta Severo
     Dante estava tão ansioso e emocionado que continuava cavando com cuidado, retirando o objeto e pondo-o no chão. Severo insiste em perguntar do que se tratava. Dante olha para o almirante sorrindo e responde:
- É uma mensagem para nós.
     Ana e Elizabete se aproximam e observam curiosas.
- Está me parecendo um tipo de garrafa – disse Elizabete.
- Uma garrafa que foi enterrada aqui há 500 anos – revela Dante.
- Como pode ter certeza disso?
- Pois fui eu que pedi para o meu observador enterrar.
- Você o que?
- Vamos Elizabete! Abra! É uma garrafa térmica antiga e dentro deve ter outra pequena garrafa feita com um tipo de plástico diferente.
     Um pouco desconfiada, a doutora tenta abrir com cuidado a garrafa e para a sua surpresa encontra outra garrafa pequena como Dante havia anunciado.
- É um plástico do tipo PET – afirma Dante – Foi o terror de poluição no passado, é raro de se achar hoje em dia na superfície, mas se cavarmos em antigos lixões ainda encontraremos. Foi o que pensei de melhor que poderia durar tantos séculos.
- Uma garrafa desse plástico pode durar centenas de anos – confirma Ana.
     A doutora Elizabete retira a pequena garrafa e observa seu conteúdo.
- Parece algum tipo de lasca de pedra. Não dar pra ver direito, o plástico ficou escuro e a tampa endureceu.
- Pode cortar – sugeriu Dante.
- Tem certeza?
- Dentro tem uma placa de argila com uma mensagem para o almirante.
     Com muito cuidado, Elizabete consegue tirar o objeto que está coberto e o entrega a Severo que desconfiado e olhando para Dante, limpa e ler o que está escrito: “ Prezado ST, diante dos fatos, aceito participar do PM. Grato, DA.”
     O almirante fica alguns segundos em estado de êxtase.
- Severo? O que está escrito? – pergunta Elizabete.
- Acabei de ler uma mensagem enviada do nosso futuro pelo passado.
- O que?
     Severo entrega a placa para Elizabete e Ana se aproxima para ver.
- Mas como?
- Precisava de uma prova – disse Dante – Não tinha certeza se poderia colaborar com algo tão extraordinário. Se de fato o fenômeno do mirante fosse realmente acontecer, o observador mais uma vez ficaria confuso. Então ao ficar confinado esperando acontecer, tomei as providências.
- O que você fez? – pergunta Ana.
- Lembra-se daquele espelho grande? Escrevi uma mensagem com a sua escrita da época para o observador. Pedi entre outras coisas, que ele enterrasse essa mensagem à 40 cm da base leste da imagem da santa do Morro da Conceição nas condições que vocês encontraram.
- O que você quer dizer “entre outras coisas”? – pergunta Severo.
- Não se preocupem. Não revelei nada do futuro, apenas tranquilizei o observador dizendo que se ele fizesse o que havia pedido aquilo iria passar.
- Mas alguma coisa?
- Que ele daquele dia em diante não falasse mais a ninguém o que havia acontecido.
- Foi a partir desse período que o perdemos – comentou Elizabete – Nenhum rastro de passagem por médicos ou hospitais.
- Acho que ele ficou curado – disse Ana sorrindo e abraçando Dante.
    Severo recolhe a placa das mãos de Elizabete.
- Desculpa doutora, mas isso é propriedade militar. E você Dante, foi muito irresponsável de fazer isto, não sabemos que tipo de dano ocorreu no espaço tempo.
- Estou disposto em correr o risco Severo. Agora que comecei vou até o fim.
- Muito bem! Vamos descer e retornar para a nave. Sua casa agora é na plataforma, quer dizer, a casa de vocês – disse Severo, olhando para o casal.
     A Doutora Elizabete estava muito feliz com tudo o que acontecia e também surpresa com a inteligência e astúcia de Dante. Mas ela tinha um pressentimento que em algum momento ele poderia tomar as rédeas da situação como fez, confiando em si mesmo para provar a verdade e agora essa verdade entrou em sua mente. Severo também ficou surpreso e preocupado, ele sabe o que o amigo é capaz e como um bom capitão que é, gosta de manejar o leme do seu navio, assumir o comando da situação. Mas ele sabe que um capitão sozinho não faz o navio navegar e que precisa de uma tripulação e uma rota a ser seguida.
     Ao chegarem à plataforma, Dante tenta convencer o almirante que ele e Ana precisavam retornar ao continente e apanhar objetos pessoais.
- Infelizmente não será possível. Diga do que precisa que eu envio uma equipe para buscar. Vocês não podem sair da base até concluirmos a missão. Preciso de toda compreensão e colaboração de vocês.
- Não sei por que estou com aquela sensação de que estou confinada – disse Ana.
     Severo tenta tranquilizar.
- Pelo que entendemos do fenômeno, Dante passará por três momentos de observador e tudo vai acontecer em curto período de tempo. Em breve voltarão para as suas atividades normais.
- Não entendi qual seria a minha participação nesse projeto.
- A doutora Elizabete poderá explicar melhor.
     Ana olha para Elizabete esperando respostas.
- Precisamos que você seja o espelho das imagens que vamos captar no momento em que Dante observar o futuro.
- Eu?
- Vamos ao salão do projeto. Ficará mais fácil explicar para vocês.
     Ao chegarem ao salão onde o Projeto Morfeu é executado, Dante e Ana ficaram deslumbrados. Havia muita tecnologia envolvida, o próprio ambiente era ricamente sofisticado, de pouca luz, limpo e de um ar refrescante que literalmente dava vontade de dormir. Eles entraram em um compartimento e observaram corpos. Ana ficou assustada.
- É isso o que vocês querem fazer comigo?
     A doutora Elizabete sorriu.
- Não se preocupem eles estão bem e no seu caso vai ser diferente. Precisará apenas ficar relaxada e de preferência acordada, não sentirá absolutamente nada, apenas seus olhos deverão está vedados para não interferir com a luz artificial.
- Não entendo.
- Vai entender.
     Eles caminham um pouco mais por outro corredor e se afastam dos corpos que dormem.
- O que está acontecendo com aquelas pessoas? – Pergunta Dante.
- Como falei antes, são voluntários especiais de várias partes do mundo. Ajudam-nos a entender vários fenômenos ligados ao sono, aos sonhos, longevidade e todo tipo de distúrbios.
- Longevidade?
- A imortalidade ainda é o sonho antigo do homem meu amigo. E acredite, durante centenas de anos e inúmeras gerações, recebemos incalculáveis recursos e exorbitantes somas de valores para desenvolver e aplicar pesquisas seguras para conservar corpos doentes e ressuscitá-los no futuro quando a cura for descoberta. Graças a eles que o projeto Morfeu existe.
- E esses corpos estão aqui?
- Não, encontra-se em local desconhecido até para nós. As pessoas que aqui estão, colaboram apenas com o projeto. E tivemos excelentes resultados.
- Como assim?
- Descartamos o que poderia nos confundir em relação ao verdadeiro fenômeno que estamos trabalhando.
- E qual o nome desse fenômeno?
- Chamamos de Ecótono Paradoxo ou EP.
- Que nome mais estranho! – disse Ana.
     Sem perder o foco, Dante não deixa de rir quando observa Ana falar. Rapidamente passa em sua mente tudo que nela existe de bom e que fez ele se apaixonar.
- Mas apropriado – responde Elizabete.
- Poderia explicar para simples leigos?
- Claro Dante, afinal você é agora será o observador.
- E um incauto cidadão do futuro será uma janela – comenta Ana.
- Um mirante Ana e uma janela para o futuro – continua Elizabete – a palavra ecótono é utilizada em ciências ecológicas para definir a fronteira ou limite entre duas comunidades biológicas distintas. Uma transição que mesmo assim possui harmoniosamente representantes de ambos os lados.
     Dante parece que entendeu a primeira etapa da explicação:
- Seria como o manguezal que fica entre o rio e mata?
- É um bom exemplo.
- Tem muito disso por aqui.
     Ana discretamente e bastante curiosa olha e meneia positivamente a cabeça em direção à Elizabete e pergunta desconfiada:
- E o paradoxo? Não sei por que, mas acho que esse nome me preocupa.
- Resumindo, é o tempo. Vamos estacionar na fronteira da quarta dimensão.
- E isso é perigoso? – insiste Ana – Tipo entrar num buraco negro, no mundo dos espíritos ou coisa assim?
- Em nossos termos técnicos não. O projeto foi pensado basicamente para proteger o viajante. Não estamos trabalhando com buracos negros, brancos e demais singularidades. Estou muito surpresa com o alcance da sua imaginação, parabéns! Mas já consideramos essa remota possibilidade do EP acontecer num momento assim. Quanto ao mundo dos espíritos... Bom, meus ancestrais sempre diziam que “o espírito é livre e feliz desde que não perceba ou se sinta preso”, ou seja, que o seu mundo não seja menor que sua liberdade. A ciência moderna de nossa época já considera o mundo astral e, sinceramente, podemos concordar até no fato de que esse projeto possa ser obra dos dois mundos.
- Sabia que alguma coisa de espírito iria me preocupar – indaga Ana.
     Havia muito tempo que Dante não ouvia a palavra espírito e não ficou muito confortável:
- A Dra. Elizabete se apoia com muito entusiasmo nas implicações do pensamento tradicional de suas raízes familiares. Mas se o observador não tiver preparado em vislumbrar o futuro sentirá os efeitos psicológicos, que secundariamente afetará sua condição física. Eu sei o que passei! O risco de enlouquecer nesse caso soa mais tenebroso do que morrer.
- Entendo perfeitamente Dante. Mas sei que você vai conseguir.
- E como é que sabe que estou preparado? E não me diga que foi em minha ficha!
     Severo se adianta na conversa sem rodeios:
- Você reúne muitas condições favoráveis como por exemplo: é um ex-militar que já teve experiências em muitos conflitos, é um capitão mercante que sabe lidar com pessoas e culturas diferentes, tem boa saúde e genética, ou seja, reúne todas as condições.
     Elizabete completa a resposta:
- Além de que, você passou ileso pelo efeito mirante e até soube manipula-lo com sérios riscos de alterar a linha do tempo. Você participará da segunda fase na condição de observador e com plena consciência do fenômeno. É preciso que você entenda do perigo em manipular a linha de tempo e os eventos. Isso tudo é muito sério capitão, seja qual for a sua motivação não interfira.
- Quanto a mim, fico quase dormindo – disse Ana.
- Estaremos com vocês o tempo todo – tranquiliza Elizabete – Serão monitorados e ficarão confortavelmente em suspensão numa das mais modernas câmaras de sono imaginadas pelo homem.
     Nesse momento, Elizabete passa a mão sob uma faixa de luz no painel e um compartimento se abre elevando duas grandes câmaras interligadas.
- Nossa! – disse Ana com espanto – É lindo!
- Tem jeito de sarcófagos gêmeos – comenta Dante.
     A Dra. Elizabete concorda:
- Também pode ser considerado um sarcófago, mas muito sofisticado.
- Uma vez ativado temos pleno controle dessa maravilha tecnológica.
- E se houver problemas?
     Severo assume o controle da situação:
- Não tem como haver problemas Dante.
- Tenho certeza que todas as medidas de segurança foram adotadas – argumenta Dante - mas mesmo assim gostaria e tenho o direito de saber. Digamos que mesmo de forma improvável se não haver ninguém controlando essa coisa o que acontece com quem está dentro?
     Elizabete olha para Severo dando entender que responderá a pergunta.
- Achei que vocês não iriam perguntar. Esse equipamento foi projetado para ser autossuficiente em casos assim. Dependendo da situação em que você pensou, ele poderá seguir duas rotinas estabelecidas: A primeira é que a câmara inicia o modo despertar e abrirá automaticamente e, minutos depois, a pessoa se levantará tranquilamente. A segunda dependerá do ambiente externo.
- Como assim?
- Se estiver acontecendo um incêndio ou exposto numa fumaça de gases tóxicos, por exemplo, a câmara ativará o modo hibernação e utilizará de fato, de todos os recursos tecnológicos que tanto admiramos nela.
- Hibernação?
- Sim, pelo menos até o equipamento conferir as leituras externas e certifica-se de que é seguro abrir. Numa situação assim, um sinal será enviado para um satélite do projeto e outras equipes farão o resgate.
- E quanto tempo um ser humano poderá ficar hibernando?
- Indefinidamente. Na verdade nunca saberemos se acontecer.
- E a energia? Não acaba? – pergunta Ana, ainda surpresa.
- Adaptamos na câmara um compartimento de baterias nucleares com energia extra praticamente inesgotável. A câmara retira e aproveita do ambiente externo toda fonte de energia que possa se manter.
- Luz solar? – pergunta Ana.
- Mas do que isso minha amiga. Essa câmara pode retirar energia de moléculas no ambiente externo, de minerais e até captar a vida de seres uni e pluricelulares, seja vegetal ou animal.
     Dante fica impressionado com a explicação da Dra. Elizabete.
- Quer dizer que se alguém for esquecido nesse sarcófago e as baterias acabarem e, por acaso um ser vivo passar por perto ele suga a vida dele?
- Exatamente. Nos mais sensíveis pode ser que se afastem. Se ficar aprisionado pela câmara, ele perderá suas forças vitais de uma forma que chegará a níveis microscópicos, pois até o parasita que nele existir será absorvido.
- E se for uma planta ou algo assim? – pergunta Ana.
- Pode ser que dure mais tempo. A planta se alimenta de luz e nutrientes e se esses componentes existem no ambiente a câmara não vai precisar “sugá-los” como Dante sugeriu.
- Impressionante! – disse Ana – Essa coisa é perigosa.
- Essa coisa é segura – replica Elizabete.
- Tem mais alguma surpresa?
- Tem sim. O tempo não vai existir ali dentro, não haverá envelhecimento e tudo ficará em suspensão, inclusive até o último pensamento.
- Estou realmente sem palavras – disse Ana, enquanto observa as câmaras girando lentamente e se acoplando.
- Essa é a sua Ana. Ficará conectada emocionalmente com Dante, mas não terá influência sobre ele. Você vai apenas relaxar, mas não poderá dormir. Será através de você que as imagens do futuro serão vistas por nós.
- Eu não vou ver?
- Não de imediato. Será gravado e poderemos ver todos juntos durante o jantar – responde Elizabete com humor e Ana sorriu, sentindo-se mais a vontade e confiante.
- E quando começamos? – pergunta Dante, disposto a terminar logo com a sua participação e voltar para casa, ou melhor, para o seu navio.
- Isso depende, mas não vai demorar muito. Como se sente?
- No momento me sinto ótimo, bem melhor do que antes – responde Dante.
- Sente ótimo?
- O que a senhora espera que eu venha sentir?
- Descobrimos que no processo do ecótono paradoxo a pessoa que se encontra na condição de mirante sente muito sono, uma letargia generalizada. Na condição de observador é o contrário, você sente muita ansiedade, falta de sono e muita disposição.
- Eu sempre estou muito disposto – Dante sorrir para Ana e ela entende o sentido erótico das palavras.
     Elizabete observa a cumplicidade do casal e aproveita para ser bem compreendida.
- Muito mais disposição do que você poderia atender Ana.
     O casal fica em silêncio, Ana parece se engasgar com a própria saliva.
- Sério! Nossa!
- Talvez um harém pudesse dar conta se for o caso – continua Elizabete, no que Severo não resiste e deixa escapar um sorriso quando diz que não será possível, não há mulheres suficientes na plataforma.
- Pelo menos acordada – completa Elizabete.
     Em princípio Ana não gostou muito do comentário, mas não conseguiu resistir imaginando Dante alucinado no meio de várias mulheres tentando acalmar a sua disposição. Todos riram bastante e o clima ficou muito agradável. Eles foram almoçar e Elizabete aproveitou para explicar alguns detalhes dos sintomas e o que deveriam fazer ao entrar nas câmaras de sono quando os mesmos surgirem.

Capítulo 3

A partida

     Já havia se passado quase uma semana após o último evento chamado de mirante no qual o capitão Dante havia experimentado intensamente.
     Os sintomas preliminares já estavam se apresentando e era necessário iniciar a fase de confinamento. No laboratório, a Dra. Elizabete monitora a saúde dele e tenta deixa-lo o mais confortável possível:
- Então? Como estou doutora?
- Sua ficha médica é excelente Dante e está você está colaborando muito. A regularidade de sua saúde tem sido até o momento um parâmetro confiável. Seus níveis de cálcio estão normais, houve uma pequena queda de magnésio e também foi corrigido.
- Quando vou entrar na câmara?
- Estaria mentindo se não dissesse que gostaria que você já estivesse dentro dela, mas não quero que você tenha a sensação de que está sendo tratado como uma cobaia de laboratório.
- Encaro isso como um objetivo militar doutora e tenho a obrigação de colaborar ao máximo.
- Fico aliviada em ouvir isso, no entanto, acredito que em breve estará na câmara.
- O que lhe dar tanta certeza?
- Todo o seu corpo está se alterando sistemática e harmoniosamente. Suas taxas químicas, cardíacas e ondas cerebrais estão se ajustando e acelerando. É fato que o fenômeno não mata e para isso ele precisa respeitar os limites do corpo. Sei que tenta disfarçar e o faz muito bem, mas os equipamentos  são muito precisos, você está num alto nível de ansiedade, deveria está agitado e impaciente. Vejo que a sua experiência militar está fazendo a diferença.
- A experiência militar ajuda, mas não é tudo. Passe alguns anos comandando um navio mercante com uma tripulação de cultura mista e vai entender de onde vem minha experiência.
     Nesse momento Ana entra no laboratório:
- Bom dia! Pensei que eu fosse a causa de tanta experiência com paciência!
- Bom dia! Chegou na hora certa Ana – disse Elizabete.
- Ainda não me acostumei com os horários dessa estação. Vocês acordam muito cedo.
- Pode acreditar. Normalmente nunca acordo antes do meio dia.
- Sério doutora? Difícil de acreditar mesmo.
- Na minha região no Canamérica o dia começa tarde e dura pouco. O frio não nos encoraja em sair da cama quente. Acordo cedo aqui por força do trabalho. Seu amado está muito próximo de entrar no estágio de observador e pelos meus cálculos será entre 12 e 24 horas.
- O que faremos então?
- Quando concluir os exames vocês terão um tempo livre até às 18:00 horas quando o jantar será servido. Deite naquela maca, por favor.
     Ana deita para fazer exames enquanto observa Dante se levantando e saindo do laboratório.
- Ei capitão! Para onde vai? – Pergunta Ana.
- Preciso de ar puro. Encontre-me no deque de pouso quando terminar.
     A porta se fecha, Ana tenta se levantar e é impedida gentilmente pela doutora:
- Deixo-o Ana, ele estará bem.
- Ele está um pouco diferente nesses últimos três dias.
- Ele é forte, mas você não tem ideia de como ele está por dentro.
- Está doente?
- Ao contrário tem boa saúde e isso está ajudando. Acontece que a irritabilidade está aumentando devidas inúmeras alterações químicas. Estou impressionada, ele deve está sentindo o dobro que um viciado químico sentiria na fase de abstinência.
- Em que posso ajudar?
- Acho que uma boa corrida pela base ajudaria a aliviar a tensão. Agora fique quieta para eu concluir seus exames.
     A Dra. Elizabete analisa as informações e refaz algumas delas. Seu semblante é sério e quase não presta atenção em Ana que fala sem parar até perceber algo:
- Algum problema?
- Não! Claro que não! – Elizabete esboça um sorriso não convincente.
- Doutora! Não me esconda nada certo?
     Ela respira fundo e olha para Ana:
- Você está bem de saúde apesar de algumas deficiências nutricionais.
- Então por que você fez essa cara de preocupada?
- Por que eu confirmei uma coisa que gostaria em minha vida.
- Do que está falando doutora?
- Você está grávida Ana.
- O que?
- É verdade. Tinha o direito de saber, mas, por favor, não conte nada a Dante agora. Essa nova carga emocional por mais maravilhosa que seja pode tirá-lo do foco da missão e...
     Ana se levanta e fica sentada na maca.
- Estragar tudo? É isso que você quis dizer?
- Resumindo sim, me desculpe. Você agora precisa tomar cuidados e evitar esforço físico.
- É por nós que não vou dizer nada para Dante, pois sei que tanto ele quanto eu queremos ficar livres desse projeto maluco. E agora que vamos ter um filho tudo isso fica para trás.
     Sem avisar, Ana se levanta e sai do laboratório, vai até o deque e encontra Dante absorvido em pensamentos. Aproximando-se devagar e teatralmente fingindo que se aproxima com cuidado, ela consegue fazê-lo sorrir, mesmo que suavemente.
- Está um pouco melhor aqui? Quer ficar sozinho?
- Quero ficar com você. E aqui eu fico em paz.
- Essa coisa de laboratório nos faz mesmo sentir uma cobaia não é?
     Dante percebe algo de diferente no olhar de Ana:
- Está tudo bem com você?
- Estou ótima! – respondeu de embalo. Ela preferia dizer “nós estamos bem”, mas não podia ainda revelar sobre o bebê.
- É uma boa notícia.
     Ana se aproxima e o beija longamente e ele retribui.
- O que passa na cabeça do meu capitão? – diz ela retirando uma mecha de cabelo que o vento passou em seus olhos.
- Alguém poderia pensar o quanto seria arriscado em participar de algo assim tão extraordinário. Quantas pessoas venceriam seus medos por essa oportunidade.
- Você tem medo Dante?
- Não é o medo de vivenciar a experiência e sim do que vou ver. Uma janela para o ano 3014 será aberta e eu estarei debruçado nela. O que será que vou observar? Que mundo iriei encontrar? Vou vislumbrar uma época em que eu, você e nossos descendentes mais próximos já morreram há muito tempo.
     Ana sorrir e pega a mão de Dante.
- Nós vamos vislumbrar também lembra? É por isso que vou está com você.
     O capitão faz uma expressão de que havia esquecido este detalhe.
- Mas você está certo meu amor. Na verdade é você que vai sentir as emoções e quem sabe, muito mais do que isso.
- Não terei o direito de esconder uma informação do futuro e se cair em mãos erradas em nossa época? Poderá mudar o curso da história.
- Mas Elizabete disse que é para isso que existe esse fenômeno, mais do que mudar o curso da história é escrevê-lo. Você acha que a natureza nos dotaria de tal benção se não tivesse um propósito?
     Dante admira-se com os argumentos da sua amada.
- Saber o futuro é perigoso – insiste o capitão.
- Dante, nós estamos falando de 500 anos na frente. Acho que poderemos fazer muito pouco para alterar um futuro tão distante. Digamos que haja um terremoto, maremoto ou coisa pior,  como poderemos evitar isso 500 anos antes? Ficarei feliz em saber que pelo menos a humanidade ainda estará lá e isso inclui nossos descendentes viu?
     O capitão olha para o mar e viaja em seus pensamentos. Ele imagina se fosse possível encontrar um descendente e que para isso, teria primeiro que ter um filho.
     Sem perceberem, o almirante se aproxima:
- Encontrei vocês! Desculpe incomodar.
- Estou me acostumando – respondeu Ana, pouco satisfeita.
- Algum problema?
- Não capitão, estava procurando você para convidar em se divertir um pouco comigo.
- Diversão?
- Ordens médicas Dante. Na verdade havia me preparado para uma corrida aqui na plataforma. Faria muito bem ao meu ego ver vocês dois bufando de cansaço tentando me alcançar.
- Então vamos?
- A Dra. Elizabete voltou atrás e recomendou que eu o levasse para exercícios mais emocionantes.
     Nesse instante, Ana se levanta e bate as mãos para limpá-las:
- Muito bem! Vou junto.
- Infelizmente não. A Dra. Elizabete me pediu para avisá-la que gostaria de lhe mostrar alguns detalhes da câmara. E antes que fale alguma coisa, ela disse também que é importante.
- Para onde vocês vão?
- Vamos primeiro para o salão de tiro ao alvo, quero ver se o amigo ainda tem boa pontaria. Enquanto isso um barco está sendo preparado, detectamos um cardume de atuns se aproximando da plataforma e promete ser uma boa e emocionante pescaria.
- Isso são ordens médicas?
- Sim Ana, ela disse pra eu escolher a atividade, desde que libere adrenalina.
     Dante segue Severo, enquanto Ana curiosa vai até o laboratório. Ela sabe que Elizabete impediu dela correr por conta do excessivo cuidado da gravidez.
     No salão de tiro, Dante se diverte bastante. Severo permitiu que ele experimentasse armas modernas que ele então não conhecia.
- Incrível! Essa metralhadora é muito leve e de muita precisão.
- Sim Dante, é uma das minhas preferidas. Sua tecnologia dispensa o uso de gás na operação.  É totalmente automática com alcance de 500 m e 900 tiros por minuto. Aceita todo tipo de munição abaixo da sua especificação e na ausência dispara cargas ultrassônicas que carrega com energia solar. Mas particularmente gosto dessa pistola. Ela resiste ao tempo e sua munição diferenciada também não.
- Como assim?
- Ao atingir uma vítima o projétil que não é de metal, espalha na corrente sanguínea um tipo de veneno que faz o infeliz derreter. Infelizmente não podemos testá-la novamente. Aqui em baixo do cabo tem um dispositivo que ao apertar faz o mesmo com a arma. Ela simplesmente derrete e evapora.
- Não conhecia essa tecnologia.
- Por que ainda não existe – responde severo calculando a próxima resposta.
- Quer dizer que essa arma...
- Sim - interrompe Severo - essa arma é do futuro. Não foi possível entender toda a tecnologia envolvida nela, mas foi o que um observador conseguiu ver. Nunca foi possível determinar quem ou quando o fenômeno EP aconteceu, sabe-se que o autor era um excelente desenhista, um talentoso desconhecido. Aconteceu em pleno século XVIII. Os desenhos foram encontrados num fundo falso de um barril de carvalho.
     Ainda atordoado e segurando a arma, Dante percebe o quanto perigoso pode ser o fenômeno ecótono paradoxo.
- Esta arma, quantas foram produzidas? – pergunta Dante devolvendo a pistola.
- Apenas essa. Não usamos em nossas forças armadas. Apenas achei que você gostaria de conhecer. E antes que você pergunte, a resposta é sim: temos muita tecnologia EP nessa plataforma.
     Dante abre as mãos gesticulando e dando entender que gostaria de uma explicação ou que Severo demonstrasse alguns exemplos:
- Muitos avanços você já conhece. As tecnologias nunca foram 100% copiadas, foi necessário esperar o progresso natural das ciências para que aos poucos nossas célebres mentes pudessem complementar o quebra cabeças.
- De quanto você se refere que copiamos?
- Em média 40% para as tecnologias além de época atual. Mas nossos ancestrais conseguiram muito mais e tudo isso serviu de inspiração no desenvolvimento de comunicações, engenharia civil, naval, espacial e de medicamentos.
- A invenção da roda foi um surto EP?
- É bem possível que na Suméria alguém tenha melhorado seu conceito e utilidade.
     Severo percebe que Dante compreende bem o poder que possui.
- A humanidade precisa de você Dante. Não somos déspotas e queremos o bem da humanidade hoje e no futuro.
- Existe a possibilidade de cair em mãos erradas?
     O almirante para o olhar no de Dante e deixa traduzir a fraqueza de uma resposta:
- Também é confidencial, desculpe amigo.
- Tudo bem. Eu entendo – suspira Dante.
     Um jovem soldado se aproxima e avisa que o barco de pesca está pronto. Eles seguem até o desembarque.
     No laboratório, Elizabete mostra para Ana como é a câmara por dentro.
- É aqui que vocês vão ficar.
     Ana gostou quando Elizabete usou o plural. Notou também uma rápida mudança em seu humor. A médica está mais atenciosa, mais calma e sorridente com se fosse ela que esperasse um filho.
- Parece confortável.
- É muito confortável e anatômico. Tudo nessa câmara foi pensado e projetado para o bem estar. Alguns momentos você sentirá o corpo flutuando como se estivesse no espaço. Depois de algumas horas, que não será o caso, a câmara inclina seu corpo em várias etapas ativando circulação, músculos e proporcionando regeneração celular.
- Regeneração celular é novidade para mim. – disse Ana.
     A médica atalha por um senso de humor:
- Qual mulher não gostaria de se manter jovem e bonita?
- Então esse vai ser o momento em que você vai revelar sua verdadeira idade? – pergunta Ana já sorrindo do próprio sarcasmo.
- Se for necessário. Já considero você uma amiga confiável.
     O sorriso de Ana começa a esmaecer. Ela sabe que aquela plataforma esconde muitos segredos.
- Então. Pode começar a falar – estimula Ana em tom de brincadeira.
- Tenho exatamente 40 anos.
- Parece ter 30 – falou Ana demonstrando admiração.
- Obrigada.
     Ana começa andar ao redor da câmara e passa suavemente a mão na estrutura.
- O material é bonito de que é feito?
- Madrepérola.
- Incrível! É tipo uma concha marinha?
- Poderia ser.
- E esta coisa que faz a gente dormir deve ser uma invenção de uma tecnologia...
     Elizabete ergue as sobrancelhas aguardando Ana concluir o raciocínio lógico.
     Ana limpa a garganta:
- Tecnologia...Alienígena! Acertei?
- Sim.
- E você é uma ET! Certo?
     Elizabete relaxa os ombros desanimada.
- Não.
- Que pena, achei que você era uma ET.
- Eu pareço uma ET?
- Sem ofensas doutora, uma ET bonitinha e bem conservada.
- Achei que você fosse mais esperta Ana.
- Nunca me achei esperta o suficiente – Ana se abaixa e olha a estrutura do equipamento – Não tem marca de fabricação, nem números série, origem.
- É único – responde Elizabete - Não reproduzimos a mesma tecnologia EP duas vezes apesar de não ser o caso aqui.
     Ana levanta rapidamente a cabeça e tira uma mecha de cabelo dos olhos.
- Não brinca! Essa...essa... Você sabe o que eu quero dizer...É do futuro?
- Chegamos à conclusão que não.
- Agora que não entendeu fui eu.
- Eu explico. A tecnologia é futurista se levarmos em consideração a nossa época temporal. Encontramos um desenho que achávamos que foi de um observador, mas concordamos que o nível de detalhes era muito preciso, a linguagem muito acessível ao que seria a utilidade da câmara. Esses detalhes não são possíveis a não ser que fosse realizado pelo próprio criador.
- Então não foi um EP como vocês chamam?
- Não Ana, não foi. Seja lá que desenhou se descuidou num detalhe, caso ele não quisesse ter a câmara encontrada por estranhos.
- E o que foi?
- Vestígios de solos raros que são encontrados apenas na Grécia. Isto nos levou a uma sigilosa e desgastante investigação até que o encontramos.
- E onde estava?
     Elizabete faz uma expressão de que não pode revelar e que já havia passado da conta.
- Já sei! É confidencial. Mas vamos lá! Então vocês não sabiam para que servisse a tal câmara e como esse mistério foi desvendado? Somos amigas não somos? Dante e eu estamos envolvidos até o pescoço e até segredos sou obrigada a guardar dele.
- Somos amigas sim. Queira me desculpar. O que estamos fazendo requer um nível de confiança que só os amigos possuem.
- Estou grávida e não posso sofrer de curiosidade viu? – disse Ana sussurrando e arrancando um leve sorriso de Elizabete.
- O que aconteceu foi um desmoronamento numa caverna, tudo começou a ruir, alguns amigos de equipe foram cobertos por toneladas de rochas. Não fui atingida, mas fiquei isolada naquele ambiente escuro e sufocante. Estava próxima a câmara. Ela acendeu e inexplicavelmente abriu e, pensando em me proteger entrei nela. Para minha surpresa a câmara fechou e me fez dormir. Ao recuperar os sentidos, abrir os olhos vi Severo olhando para mim com uma expressão de felicidade que nunca esquecerei.
- E então?
- Já havia se passado 35 dias, quando um grupo de resgate finalmente conseguiu me localizar.
- Isso é incrível. A câmara te manteve todo esse tempo viva?
- Sim e passei os últimos 10 anos me dedicando em estuda-la e sei do que ela é capaz. Durante o tempo em que estive dormindo, lembro-me de alguns sonhos e uma voz que me ensinava algumas coisas de como ela funcionava. Aos poucos e intuitivamente lembrava esses ensinamentos.
- Fazer a gente dormir e encontrado na Grécia? Então foi de lá que surgiu o sugestivo nome de Morfeu?
- Exatamente.
- Mas me diga doutora, de onde veio isso afinal?
- Tudo indica para uma resposta: Um módulo de fuga e sobrevivência. Certamente de algum visitante de outro planeta ou coisa assim, mas definitivamente não é da Terra.
- Não são muito grandes a julgar pelo tamanho da câmara – Insinua Ana – Mas se não são humanos, onde estão? Não me diga que essas criaturas estão soltas por aí?
- Nunca saberemos. Nenhum EP evidenciou convivência extraterrestre ou algo parecido com essa câmara. Ela se perdeu no passado e no futuro. As câmaras só abrem se o ambiente for propício ao tipo de vida que está em casulo.
- Eu achava que não me surpreenderia mais nessa vida – suspira Ana – Diga-me, Severo sabe que está apaixonado por você?
    Elizabete muda a expressão do rosto e fica rubra:
- Sabe sim. Mas enquanto não concluirmos nossa missão, não será possível tratar desse assunto. Nem eu nem ele devemos mudar o nosso foco.
- Lamento por vocês – comenta Ana – eu acha que estavam bem resolvidos.
- Ele é um bom homem. Mas no momento em que fui resgatada – Elizabete faz um silêncio – Meu namorado estava na equipe de salvamento e um acidente ocorreu quando tentou abrir a cápsula e morreu.
     Ana se compadece e abraça:
- Desculpe-me eu sinto muito.
- Está tudo bem – Elizabete enxuga as lágrimas que tenta esconder.
     No barco de pesca, a pescaria e o forte balanço provocado pelas águas, consegue fazer Dante se esquecer da vida. Ele fisgou um atum de mais de 400 kg e 3 metros. Estava há mais de 1 hora tentando traze-lo para a embarcação.
- Esse é dos grandes! – disse Severo.
- Eu sabia! No momento em que a isca caiu na água que tinha pegado algo grande! Juro a você que achei que fosse uma baleia!
- É um belo peixe com certeza. Nosso cozinheiro vai ter trabalho extra hoje.
     Severo olha para o relógio.
- Precisamos voltar amigo. Mas digo logo! Assim que a nossa missão for concluída quero uma revanche.
- Será um prazer almirante!
     Para Dante, o resto do dia passa lento. A pescaria e a descontração no refeitório com a pequena tripulação ajudou muito em conter a ansiedade. Ana também estava tranquila lendo notícias projetadas por um aparelho portátil.
- O que temos de bom? – pergunta Dante, sentando-se ao lado dela.
- Acho melhor você não saber.
     Dante olha com atenção.
- Não pode ser! Vão construir o viveiro de tubarões no caminho de minha rota predileta.
- Pois é. Alguém achou algum lugar favorável naquele ponto.
- Vou reclamar a Severo. Não posso aceitar isso!        Quem é a empresa?
- Também não vai gostar – responde Ana – É a mesma empresa que financia nossas pesquisas.
- Mostre o projeto do viveiro.
     Ana mexendo suavemente a mão procura o item de imagens.
- Aqui está. Nossa! É bem moderno, um belo projeto.
     Dante se concentra na escrita:
- Tem um nome e sei que não é chinês.
- Não. É japonês. Significa “A senhora dos tubarões” – explica Ana.
- “A Senhora dos Tubarões” – repete Dante, confirmando.
- Que nome pomposo. Seja lá quem for essa “senhora” e pelo tamanho do investimento será mais rica do que imagina.
- Que seja – Dante suspira e se levanta.
- Para onde vai? Não está bom pertinho de mim?
- Não saia daqui. Volto logo. É que quando estávamos pescando as águas ficaram em torvelinho. Severo disse que havia uma pequena atividade vulcânica perto de onde estamos.
- Uma preocupação a mais para nós?
- Não. Nenhuma. Apenas quero saber onde fica exatamente, assim evito passar com meu navio, o que seria improvável, pois é rota migratória de baleias jubarte.
- É então?
- Pode causar problemas se não constar nas cartas náuticas. Erupções marinhas produzem atóis e ilhas. É sempre bom se precaver.
     Quando o relógio marcou 18:00 horas, Dante se despedia de Ana com um longo abraço.
- Até daqui a pouco minha querida.
- Vai dar tudo certo meu capitão, vou está com você – Ana o beija.
     A Doutora Elizabete inicia os procedimentos e o par de câmaras se fecha lentamente, provocando um agradável bem estar para os dois. Elizabete está todo o tempo conversando com Ana que de início se esforçou para não relaxar e dormir.
- Nunca imaginei que fosse tão bom está aqui dentro – disse Ana – É difícil explicar. É uma mistura de bem estar, segurança e paz.
- Eu sei disso Ana, mas preciso que você fique com a gente. A câmara já ativou o EP com Dante e estamos entrando na fase observador em poucos segundos e...
     Ana perde o contato com a voz de Elizabete. Escuta tiros e uma explosão. A luz interna da câmara que é azul passa a ficar vermelha. Ana tenta abrir os olhos e não consegue, pensa em se desesperar e não consegue. Escuta uma voz suave que lembra a de Elizabete que diz para ela que está tudo bem e que agora pode dormir. Ela sente como se boiasse no mar, tinha a impressão de perceber as ondas e aos poucos estava afundando.
     Alheio aos fatos, Ana e Dante não presenciaram o violento ataque que a plataforma havia sofrido minutos depois que as câmaras fecharam. Foi uma ação silenciosa e precisa de um grupo terrorista que procuravam armas e munição para abastecer movimentos revolucionários. Um grupo entrou no laboratório e trocou tiros com guardas. Seus rostos estavam de máscaras e um deles segurou Elizabete por trás e ameaçou atirar em sua cabeça obrigando Severo em dar ordens para rendição e fornecer o que ele queria. O almirante se desespera e pede para largar Elizabete e o terrorista obedece, mas antes dispara friamente na médica, matando-a. Impotente, Severo perde todas as esperanças de salvar a sua amada e é obrigando a cumprir o protocolo de segurança, um pesadelo que todos que participam do Projeto Morfeu conhecem: A autodestruição da plataforma.
     Uma voz computadoriza ecoa por toda a estação, solicitando ao almirante o comando de voz para detonação. O terrorista atira em Severo para que ele não fale a senha, mas não consegue atingi-lo. O almirante se protege atrás da câmara onde Dante se encontra. As balas da metralhadora ricocheteiam na concha de madrepérola, protegendo-o suficiente para pronunciar o nome da sua ex-mulher. A voz digital confirma a senha e inicia a contagem de autodestruição e, em 10 segundos toda plataforma explode levando para o alto uma grande quantidade de água e escombros matando todos.
     A cápsula de sono onde Dante e Ana se encontram deslocam-se do conjunto da câmara e caia nas águas frias e afunda lentamente, desaparecendo no fundo do oceano atlântico.
Capítulo 4

O observador

    O som de gaivotas, cheiro de maresia e peixe. Dante percebe tudo isso, mas não consegue abrir os olhos. Alguns longos minutos depois, ele ver o céu azul de poucas nuvens e um par de mãos se aproximando e tapando tudo para abrir novamente. Ele se ver sentado no deque de um barco de madeira. As mãos estão sujas de um tipo de óleo e depois ver os pés descalços e mal tratados. Uma calça suja e velha mal combinava com uma camisa de manga cumprida arregaçada. Sua sombra denuncia que usa um chapéu. De repente a vista se eleva, como se alguém ficasse de pé e então, ele pode ver completamente o oceano a sua frente e todo o barco de madeira, artesanal e bem desgastado, que tem o tamanho em torno de 7 metros.
- Estou no campo de observador do Ecótono Paradoxo! – Pensa Dante bastante eufórico e lembrando-se de Ana – Ela deve está vendo e eles gravando tudo.
     A experiência é bastante incômoda, pois não possuir domínio em seus movimentos e ações é algo que pode ser terrível. Mas Dante se lembra de todas as orientações e de como deve ser manter calmo e se concentrar em tudo.
     O tempo passa, ele mentalmente se utiliza de suas experiências da marinha e calcula pela luz do sol que desde o momento em que entrou em EP em torno do meio dia, que estava a mais de 4 horas naquele barco que com certeza era de pesca. Então começa a descrever mentalmente, até como uma forma de passar o tempo e não enlouquecer enquanto compartilha os sentidos com aquele ser humano desconhecido. Alguns detalhes da pesquisa do fenômeno relatado por Severo e Elizabete não estavam totalmente corretos, como por exemplo, ele podia escutar o som da natureza, no entanto, não ouvia nenhum som interno do pescador, como ele passou a chamar aquele homem.
- Uma vida tão solitária leva pelo menos a pessoa falar sozinha, cantar ou expressar qualquer som – pensava Dante.
     De fato, não havia como Dante ouvir o pescador, sabia que essa habilidade estava indisponível. Percebia que em algum momento ele espirrava e mexia a boca. Havia imagem, som externo e cheiro. Mas não tinha sensações de tato e voz. Não sentia frio nem o sol escaldante, o vento e absolutamente nada, além da própria e imaginária voz. Pensou com fazia falta senti-los.
     Ele ver que outras embarcações se aproximam e esses são bem maiores e com estruturas arrojadas para enfrentar longas viagens, no entanto não eram modernos e tecnologicamente avançados como o da sua época. A impressão que tinha era que retornara ao passado e não seguiu para o futuro. Um dos barcos se aproxima e quatro homens são vistos jogando cordas para atracar.
     Não pareciam pescadores e o curioso é que todos eram japoneses. Apesar de uma forte variação na linguagem deles, Dante confirmou que seria de fato nihongo assim que eles começaram a falar.  O pescador sobe no outro barco por uma escada e é recebido com desconfiança. Enquanto isso, dois homens descem em seu barco e vai ao porão, retirando uma carga de algumas caixas que pareciam conter peixes congelados, sendo suspensos e descarregando na embarcação maior com a ajuda de uma pequena grua.
     O pescador recebe uma recompensa ou algum tipo de pagamento e ver a movimentação lá em baixo, é quando Dante tem outra confirmação quando reconhece a escrita hiragana que indicava o nome do barco: Issunboshi.
     Ao concluir o trabalho, dois homens retornam ao seu pequeno barco e o abastece com galões de um tipo de óleo combustível. O pescador agradece e retorna a sua embarcação, liga o motor e segue para o oeste. Os outros barcos ficam para trás. Durante toda a operação, quase não ouve diálogo entre eles, o que pode se compreendido eram palavras muito comuns ao que faziam.  No retorno Dante se incomoda com a luz do sol em seu campo de visão EP, estava indo em direção ao por do sol. Ele também observa um bando de aves marinhas indo na mesma direção e já perto de anoitecer vislumbra um litoral e um rústico cais entre um rico manguezal.
     O EP se dissolve e tudo fica escuro. Dante aguarda pacientemente que algo aconteça. Seu senso de tempo é bem aguçado e após 2 horas de espera e já se entregando ao desespero retorna a visualizar. Dessa vez encontra-se de roupas limpas, brincando com uma menina, enquanto uma jovem mulher trata um peixe e tempera comida em uma panela de barro em fogo produzido por lenha. Um pouco distante de onde está, observa um varal com roupas e lençóis e outros casebres tipo palafitas sob as águas de um rio, também expelindo alguma fumaça. Pareciam ser uma comunidade pobre e desfavorecida. Posteriormente por fresta na parede, consegue ver algumas mulheres colhendo frutos e outras peneirando sementes. Dante demorou muito para poder estudar a luz do ambiente e novamente calcular que o EP ocorreu ao meio dia.
- Tem algo errado – pensa ele – eu deveria ter acordado antes de passar pelo segundo EP. E este mundo? Será que avancei 500 anos? Ainda estou no Brasil e em Nação Pernambuco? Onde está Ana? Por que não desligam a câmara e me acordam?
     Uma senhora, em torno de 60 anos e aparentando está muito assustada, chega às pressas e chama a jovem mulher pelo nome de Hina. Imediatamente Dante se lembra de uma criança com o mesmo nome.
- A filhinha de um casal de japoneses que estava no helidrone, quando fui ao balneário.
     Hina corre em direção ao campo de visão de Dante e fala algo com o pescador se referindo a ele como Russas Jon e segura a criança pelos braços. Pessoas começam a correr e ao som de muitos tiros, gritos e um incessante sino que toca em alarme.
     O pescador corre em direção ao cais para ver de perto o que está acontecendo e volta o olhar para Hina que o pergunta o que Dante entende como: “Aonde você vai?”
- Dokoe ikimasuka!
     O pescador deve ter respondido algo e gesticula com a mão apontando para algum lugar que elas deveriam ir.
     Enquanto o homem desce um barranco, visivelmente desesperado, pela primeira vez Dante consegue ouvir o som da respiração ofegante do pescador. Ele alcança o cais e entra na água chegando ao barco e dar um impulso no mesmo para vencer as partes rasas. Dante já consegue sentir a frieza e umidade em seus pés, as mãos trêmulas do pescador e quando abre um compartimento no barco, pega uma arma do tipo submetralhadora.
     Dante não consegue descrever o seu desespero e impotência naquela situação. O cheiro de fumaça e pólvora de algumas explosões são cada vez mais intensos assim como, a dor lancinante que sente nas costas, seguido do gosto de metal em sua boca.
     O campo de visão fica obscuro e sem foco. O som ambiente diminui. O pescador havia sido baleado nas costas e cai no deque com seus olhos abertos, fixos no triste cenário. Dante sente um sono incontrolável e percebe que vai sair do EP, quando ver homens armados se aproximando em outro barco. Um deles estica a arma com o braço e balança o corpo do pescador ferido e confere dizendo que está morto. Em seguida puxa com força algo do seu pescoço.
     De volta à escuridão. Dante dessa vez aceita o fato como certo alívio. Nas circunstâncias em que ele estava vivenciando o deixou angustiado. Apenas sua mente é que tudo projeta e comanda, enquanto os demais sentidos estão novamente ausentes.
- Só falta mais um – pensa o capitão no fenômeno EP – Não deve demorar muito.
     Após aproveitar o silencio mental e se recompor, Dante mais uma vez duvida de que esteja em Nação Pernambuco. Tudo o que viu, com exceção da vegetação, típica de manguezais que ele conhecia bem, indicava que estava em território japonês. Ele pensa nos detalhes e acha tudo muito estranho, encontrar um mundo que não era o que esperava, um mundo futurístico e tecnológico.
- Quem eram aqueles homens? E por que atacaram uma colônia de pessoas inocentes? A arma que ele segurou não era como a que Severo o havia mostrado, era de tecnologia inferior, o que faz pensar que alguém atingiu um EP muito além de 500 anos de onde ele estava.
     Dante começou a ter dificuldade de raciocinar, notava que o sono retornava mesmo estando fora do EP. Seu corpo pesava e aos poucos sentia uma angústia, um pouco de dor e perdeu os sentidos.
     Ao abrir os olhos, viu Hina com uma compressa de água enxugando a sua testa. Sentia a água fria, percebia o suor e a febre no corpo. Dante estava vivenciando o terceiro episódio do fenômeno.
- Tenha calma João! Você vai viver.
- Hina.
- Sim sou eu.
    Dante olha de lado, respira um pouco, levanta as mãos e percebe que tem absoluto controle sobre o corpo do pescador. Isso o deixou bastante aliviado. Respirou mais forte e sentiu dor.
- Respire devagar – disse a mulher.
     Ele perceber que está se comunicando normalmente com Hina e que seu sotaque está diferente de sua língua natal. Pensava em português, mas falava em japonês.
- O que aconteceu?
- Os homens de Itani foram embora. Conseguimos sobreviver entrando no manguezal.
- E os outros?
- A maioria dos homens morrerão tentando proteger a colônia. Tivemos muita sorte.
- Onde está a menina?
- Aiko?
- Sim – disfarça Dante.
- Sua filha está lá fora brincando.
- Há quanto tempo estou apagado?
- Quase uma semana.
- E os homens...de...
- Itani?
- Sim.
- Após saquearem a colônia, foram emboscados na saída do rio pelos revolucionários. Foi o médico deles que socorreu você. Ele disse que foi um milagre, pois tinha certeza que você estava morto.
     Hina dar um sorriso e beija suavemente o marido. Dante sente todo o seu amor e calor dos seus lábios, mas fica constrangido em corresponder. Ele se lembra de Ana.
     Ele ver Hina se levantando e saindo do lugar, admira a silhueta delicada do seu corpo. Ela devia ter uns 27 anos no máximo, pensa ele.
- Descanse. Você vai ficar bem. Volto logo.
     A casa era muito simples e rústica, uma palafita feita com madeiras de manguezal onde se ver a luz entrando pelas frestas e sempre o cheiro de alguma fumaça que se misturava com algum ensopado de peixe ou crustáceos. Dante sentia dores no corpo e não entendia absolutamente nada do que acontecia com ele e apenas um pensamento martelava a sua cabeça:
- Algo deu muito errado nessa experiência EP. Esse é o terceiro e último e quase nada tenho a contribuir – pensa Dante enquanto passa a mão no rosto, sentindo uma barba grossa e espessa.
     Uma menina entra correndo feliz na direção de Dante. A mãe pede para ela ter cuidado, pois o pai ainda não está curado. Ele olha para ela com curiosidade e a menina acha a reação dele estranha.
- Aiko? – Dante tenta uma comunicação.
     A garotinha perde o interesse em se aproximar do pai, não o reconhece. A mãe estimula a filha a se aproximar e ela se vira rápido escondendo-se atrás dela.
- Aiko! Não faça isso! É seu papai!
     Mesmo Dante tendo estendido a mão e mais uma vez chamado à criança ela não cedeu.
- Não é o papai.
     Uma voz poderosa e grave é ouvida e vem do lado de fora. A menina aproveita e sai correndo gritando o nome Tatsuo. Sem demoras, Hina também vai lá fora atrás da filha. Após alguns minutos, um homem de barbas, aparentando ser idoso e também japonês, entra no cômodo e vai sem rodeios falar com ele, demonstrando intimidade:
- João de Russas! Como está o ferimento?
     Dante não podia vacilar em demonstrar que estava diferente. Já estava bastante preocupado com a menina que rapidamente desconfiou dele. Aquele povo tinha hábitos estranhos, cultura diferente e nada indicava onde ele estava.
- Tatsuo – responde Dante.
- Não acreditei quando contaram que você havia ressuscitado. Você levou um tiro fatal nas costas, perdeu muito sangue e demoramos muito para encontra-lo e cuidar do seu ferimento.
- O que aconteceu?
- Itani queria mata-lo e pelo visto conseguiu. Mas graças ao carregamento de armas que você trouxe, conseguimos chegar a tempo e pegar muitos deles.
- Muitos?
- Sim. Deixamos apenas um fugir com a certeza de que havia lhe matado...e
- Por que queriam me matar?
     Tatsuo olha para o enfermo demoradamente.
- Você não sabe?
     - Não    responde Dante, pensando onde acharia um espelho e conhecer o rosto do homem que ele possuiu.
     O velho homem acha graça do que escuta e bate de leve na perna do enfermo elogiando o censo de humor:
- Esse é meu rapaz!
     Dante sorrir disfarçando e sem querer, foi no caminho certo da personalidade do João de Russas. Um nome de origem portuguesa, mas o sobrenome lhe é apenas conhecido devido a Serra das Russas, uma região escarpada no planalto da Borborema.
     O velho se levanta e vai até a porta se certificar de que estão sozinhos. Por uma brecha larga na parede feita de finos troncos, ele ver Hina conversado com uma expressão séria e gesticulando para Aiko. Retorna e senta-se novamente num pedaço de tronco que serve de cadeira.
- Você sabe que Itani não aceita traição...ele descobriu que você era um espião e que trazia armas do seu governo corrupto para nós e também abastecia piratas que atacam suas embarcações luxuosas.
- Os revolucionários.
- Isso mesmo – Tatsuo vez ou outra quer se convencer de que João não está bem.
     Mas Dante é rápido e tenta se levantar. Sua cabeça gira e fica tonto.
- O que vamos fazer agora? Não posso mais trazer as armas.
- Calma amigo. Está tudo bem.
- Se ele descobre que estou vivo, vai matar a minha família!
- Não vai descobrir. O soberano está reunindo todas as forças dos governos aliados para reforçar as fronteiras. As últimas informações dizem que os chineses já dominam toda costa Oeste e algumas ilhas ao leste. Em breve, o nosso povo terá apenas o litoral para sobreviver.
- Qual parte da costa leste?
- Trouxe o mapa. Vou lhe mostrar.
     Tatsuo desdobra um papel grosseiro e mostra para Dante as possíveis localizações dos chineses. Ela ainda não conseguia entender o que há de errado naquele mundo e principalmente com aquela experiência que era para ser razoavelmente simples e controlada por Elizabete e Severo. Ao observar o mapa com cuidado, ele consegue algumas respostas.
- Ainda estou em Nação Pernambuco, mas a geografia mudou – Pensa Dante – O oceano invadiu muitos quilômetros.
     O velho pergunta:
- Então? Viu?
- Sim. Sim – responde Dante de qualquer jeito enquanto reconhece a área de alguns arquipélagos como Pesqueira e Arcoverde.
- Esse lado de cá está cheio de chineses – Tatsuo aponta com o dedo.
     Após confirmar que se encontrava numa região geográfica muito distante da plataforma de onde havia partido, Dante observa que quase todo o continente havia sido envolvido pelas águas oceânicas que invadiu rios e inundou regiões inteiras. Um evento desastroso, mesmo para um tempo que geologicamente seria curto para tantas transformações. Não havia naquele mapa nenhuma referência que indicasse a existência das megalópoles. Estava claro para ele que pelo menos naquela região, forças de governos lutavam contra insurgentes e ao mesmo tempo com um inimigo que avançava seus territórios. O nome das nações até poderiam ser os mesmos, mas com certeza a situação geopolítica no mundo estava diferente do que ele conhecia. As duas nações de povos pacatos, trabalhadores, sonhadores e perseverantes pareciam ser inimigas. Tudo o que era de fato japonês e chinês que Dante observava naquele pequeno lugar havia ficado para trás, com algumas exceções de nomes, características e pequenos hábitos.
     O tempo foi mais que suficiente para observar o mapa. Tatsuo achava que João de Russas procurava algo.
- O que foi? Se estiver pensado voltar para o Arquipélago das Russas com a sua família era exatamente nisso que eu queria lhe mandar fazer. Se estivesse me escutado não tinha se ferido e arriscado tanto a sua vida.
     Sem perder tempo, Dante localiza onde possivelmente estaria a plataforma. Ficava longe, em algum ponto após o Arquipélago das Russas.
- Aceito. Pela proteção de minha família.
     Não era isso que Tatsuo esperava de João de Russas. Ele aceitou rápido demais. O verdadeiro revolucionário jamais abandonaria a causa, principalmente um membro considerado tão valioso na comunidade, onde a família são todos. Mas Dante tem o dom de conhecer as reações na face das pessoas. Sua vivência como capitão lhe deu muitas oportunidades de como lidar com determinadas reações.
- Assim que tiver certeza que ela estará segura, vou retornar para terminar o que comecei e dessa vez quero a cabeça de Itani!
     De súbito a expressão de Tatsuo mudou da água para o vinho. Seu peito se encheu de orgulho deixando lhe correr um sorriso de que uma doce e justa vingança estava a caminho.
- Muito bem! É assim que se fala. Do que precisa?
- Ainda não sei. Quando me recuperar vou olhar tudo e lhe digo.
- Tudo bem. Se recupere e faça isso o quanto antes. Não tenho todo tempo do mundo, sabe disso. Deixarei um dos meus homens aqui como proteção extra. Ele me encontrará trazendo suas exigências.
     Dante pensou em dizer obrigado, mas pensou que gentilezas assim só levantariam mais suspeitas e se limitou apenas a balançar a cabeça. O velho Tatsuo se levantou da cadeira e foi saindo. Dante falou de imediato:
- Sim! Preciso que deixe o mapa.
- Mas é claro? Ele é seu, você me emprestou – Tatsuo volta e deixa o mapa sob o peito de Dante.
- Obrigado pela sua ajuda. Você é um homem bom João de Russas.
     Dante percebe que havia julgado errado a questão das gentilezas.
- Você também! Você também – responde Dante.
     Assim que Tatsuo saiu, Dante pegou logo o mapa e começou a estuda-lo com calma. Mas não foi muito longe, pois Aiko entrou na casa parecendo um furacão e caiu sobre ele assustando-o.
- Desculpe papai.
     Ele abraçou a menina enquanto olhava para Hina que chorava no canto da porta.
- Está tudo bem Aiko. Eu vou melhorar – Dante beija a cabeça da criança e ela sai aos saltos levando na mão o que parecia uma garça-branca pequena semimorta ou empalhada que ela fazia de brinquedo. Aquela cena o deixou confuso. Posteriormente ele pode observar que o lugar é ricamente povoado de aves de várias espécies.
     Quando a menina saiu, Hina baixou um cabo de madeira e cipó fechando a porta. Sem falar nada, pegou um espelho de aproximadamente um palmo e entregou para Dante. Desconfiado, ele se olha, e sua reação o denuncia. Ele finalmente conhece a face do João de Russas e, ao contrário do que pensava, não era japonês. Suas feições eram europeias, mas precisamente de um tipo que ele conhecia bem: A holandesa.
     Hina leva a mão à boca querendo chorar de novo. Dante pede para ela ter calma e que ele vai explicar tudo. Mas de súbito. Tudo volta a ficar escuro e Dante mais uma vez, retorna sua consciência para a mesma situação que antes, retornando a fase EP.
     Já haviam se passado muitas horas. Hina estava perturbada e com medo. Achava que um espírito ancestral havia possuído seu marido. João de Russas não era um homem de falar muito, não gosta de receber visitas quando está doente e muito menos de gestos carinhosos com ela, com a filha e com ninguém. Sua história de vida é repleta de tristezas. A sua família vivia numa das raras colônias descendentes de raças estrangeiras localizado no Arquipélago das Russas, que também era um ponto estratégico de defesa militar. Todas as ilhas tinham algum tipo de fortaleza em seu entorno e as vilas ficavam quase no interior delas, cercado de manguezais e a maioria só tinham acessos fáceis pelos rios.
     Uma chacina jamais esquecida naquela época acirrou mais ainda o ódio de povos descendentes de japoneses e chineses. Toda a defesa militar da ilha foi dizimado e seus habitantes assassinados cruelmente. A ação foi atribuída aos chineses, mas na verdade foi o grupo político militar do Itani. Esse déspota tinha ousados planos de assumir toda a região nordeste do continente sul e se tornar soberano absoluto.
     No momento da chacina, João de Russas estava com seu pai, preparando o barco para ir pescar ostras, uma profissão perigosa que dependia da habilidade de prender a respiração e passar o máximo de tempo embaixo d’água. Quando o barco foi atacado ele estava submerso e viu os destroços do barco explodindo e afundando sobre ele. Nadou o máximo que pode para longe dali e quase morreu afogado.
     Ao retornar a superfície, exausto, se apoiou e escondeu-se num amontoado de plantas aquáticas e testemunhou que não foram os chineses que o atacaram e sim o próprio Itani, que comandava tudo como muito prazer e excitação.
     Na época João de Russas tinha 28 anos. Com muito sacrifício retornou a sua vila usando uma parte dos destroços que encontrava como boia.
     Ele não encontrou ninguém vivo, todos estavam mortos ou desaparecidos. Um amontoado de corpos largados de crianças, mulheres e idosos. Toda a sua família foi assassinada e, não menos dolorosa, a sua amada e idolatrada noiva. Ele chorou tudo o que podia, por ela e pelo outros, enquanto estava com a mulher em seus braços.
     Como se esperava, Itani não tinha intenção de saquear o arquipélago, era muito arriscado permanecer lá e ser identificado, por isso tinha que matar suas defesas e todas as testemunhas rapidamente. João de Russas escapou com muita sorte. Durante algumas semanas sobreviveu com o que tinha. Trabalhou muito e consertou um pequeno barco com as sobras dos outros e o deixou abastecido e pronto para navegar. Procurou minuciosamente todas as riquezas do seu povo e foi até as outras colônias do arquipélago. Suportando com dificuldade o terrível odor dos cadáveres, recolheu mais produtos das dispensas, armas e munições nos fortes. O único sobrevivente e testemunha do massacre, sairia do arquipélago como um homem rico.
      Em sua viagem para o oeste, encontrou um barco que naufragava e que também havia sido atacado pelos assassinos de Itani. Nele só havia um homem milagrosamente vivo, era Tatsuo. João de Russas cuidou dos seus ferimentos o levou para a casa dele que ficava numa pobre vila entre os manguezais no litoral.  Foi recebido como herói pela população local.
     Hina era a filha mais nova e mais bela de Tatsuo e ainda não tinha casado. João de Russas quebrou a tradição racial e ofereceu seus serviços e suas riquezas recolhidas no arquipélago como dote e pediu a mão de Hina em casamento. Ele queria recomeçar a sua vida e precisava fazer parte novamente de uma grande família. Sem hesitar, Tatsuo aprovou a união e todos comemoraram. Tempos depois, João de Russas confessou o segredo mais temido de Itani para Tatsuo. Indignado e percebendo que poderia usar aquilo e as habilidades do genro para reforçar um grupo de revolucionários que já estavam sendo formado, o patriarca resolveu investir toda a riqueza do dote para infiltrar João de Russas nos melhores círculos de convivência. E foi assim que aos poucos, vendendo pérolas e pescados raros para os nobres da corte de Itani, que não demorou muito para João de Russas circular entre o seleto grupo de comerciantes ricos e bem sucedidos.
     Na verdade, ele espionava e memorizava todos os pontos fracos da fortaleza de Itani, até o momento em que foi reconhecido casualmente por um traficante de armas que no passado havia sido um dos soldados do forte no Arquipélago das Russas e que havia sido banido por indisciplina. Revoltado, se passou para o lado de Itani, e em tronca de sua lealdade, revelou tudo o que sabia do arquipélago no que resultou no sucesso do ataque surpresa e coordenado.
     O fato de achar que havia sido traído e que João de Russas era a única testemunha viva do massacre e que arruinaria seus planos de poder, Itani ofereceu alta recompensa para quem o matasse. E o suposto assassino deve ter recebido a sua recompensa após mostrar um colar de ouro que o próprio Itani havia dado a João de Russas e que ele não tirava do pescoço por nada.
    Ao aproximar-se das ilhas do leste, uma frota naval de chineses encontrou o Arquipélago das Russas abandonado e sem defesas. Era uma área importante que muito favoreciam eles na guerra contra os japoneses e assumiram o local. Ao saberem do massacre e pilhagem que foi divulgado de boca em boca pelos aliados de Itani, foi declarado oficialmente que foram os chineses os responsáveis pelo assassinato de inocentes. Houve uma indignação geral. Os chineses não podiam provar ao contrário e assim, o plano de Itani deu certo.
     Os revolucionários, mesmo sendo japoneses, sabiam que poderiam ter o apoio dos chineses em derrotar Itani e mais do que isso, por fim a uma guerra que foi desde o início articulada por ele e um grupo de homens inescrupulosos que só pensavam no poder e na luxuria. João de Russas era a testemunha viva de que não havia sido os chineses os responsáveis pelo massacre e essa revelação mudaria toda a história política e social daquele mundo.
    A vida doméstica e rotina familiar de João de Russas praticamente não existia. Seu objetivo oculto era matar Itani e sua família. Queria que ele pagasse na mesma moeda toda a dor e desespero que havia sentido.
     Ele nunca se esquecera da noiva e não amava Hina, apesar de sempre acha-la bonita, atraente e sexualmente desejável. Teve uma filha com ela, mas quase não lhe dar atenção. Esse e outros comportamentos eram tolerados pela comunidade, pois o próprio Tatsuo sempre dizia num tom de profecia, que João de Russas era a maior esperança do seu povo e disso ele tinha razão.
     Por isso que Tatsuo disse que João de Russas deveria seguir para o seu arquipélago natal. Deveria contatar os chineses, língua que ele falava bem, e contar tudo o que sabe, começando pelo fatídico dia em que todos foram mortos, do sofrimento do seu povo, dos revolucionários e dos detalhes que envolvem a vida de Itani e como captura-lo.
      No entanto, a situação ficaria complicada, um único corpo para dois objetivos distintos. João de Russas queria vingança e Dante apenas retornar para a sua vida com Ana.
     Havia se passado quase três dias e João de Russas não acordava. Hina percebia que seus ferimentos haviam cicatrizados rápidos e que ele dormia sereno e tranquilo. Num fim de tarde ela estava apanhando água doce numa cacimba distante e escutou de uma amiga e vizinha que João de Russas havia acordado. Hina soltou o pote, entrou numa canoa e foi remando rápido para casa. Mal se aproximou das palafitas e já observa as pessoas na sua casa rodeando o marido. Hina estava ansiosa e feliz, mas de repente bateu uma tristeza, pois lembrou que o homem que estava lá não era aquele espírito gentil que aceitou seu beijo e foi carinhoso com a sua filha. Tirou rapidamente aquele pensamento e rejeitou admitir que estivesse apaixonada por algo que não existia mais.
- Hina! – grita João de Russas
- João!
- Onde estava mulher! Todos estão aqui menos você!
- Fui buscar água fresca e algumas ervas – responde Hina submissa.
- Estou subindo. Vou preparar a sua comida.
     A esposa dedicada amarra a canoa e sobe até sua humildade casa entre as árvores pantanosas e encontra o marido comendo algo não foi cozinhado por ela. Ele estava segurando um pedaço de uma carcaça de ave numa mão e uma colher de pau na outra com pirão, fez gestos para que ela se aproximasse.
- Tá vendo! Você não fica em casa! Ela fez minha comida – João de Russas faz uma expressão com o nariz de que a comida é deliciosa.
     Hina olha sua prima Sora trazendo mais comida e agrados para o seu marido. Não era primeira vez que ela faz isso. Todos querem agradar João de Russas, mas ela quer muito mais e, pelo jeito encantado que ele olha para ela, não vai demorar muito para que ele a possua. A sua prima saiu a poucos meses da adolescência e tinha uma beleza imoral. A sua sensualidade, olhar maroto e desejo de ascender socialmente, faz dela uma oponente difícil de vencer.
- Tudo volta ao normal – pensa Hina, que num gesto instintivo de coragem e vergonha, vira-se e caminha em direção a Aiko.
- Ei! Para onde vai?
- Vejo que você está bem servido, meu marido. Vou aquecer água para o seu banho.
     João de Russas nem escuta direito o que a mulher disse, desviando mais uma vez os olhos para Sora. Ela coloca a filha no braço e vai para outro local.
- Para onde vamos mamãe?
- Apanhar gravetos para o fogo.
- Não é isso.
- Então o que é?
- Escutei meu pai dizer que vai para a ilha de seus pais.
     Hina desce a filha e a põe no chão:
- Você escutou ele dizer isso?
- Ele disse. Falou com o amigo de vovô. Ele quer o barco pronto em dois dias.
- Dois dias?
- Nos vamos embora mamãe?
- Vamos sim filha. A ilha do seu pai é muito bonita, tem muitos lugares para brincar.
     A menina sorrir e abraça a mãe. Hina faz um olhar triste. Algo a preocupa, mas não sabe o que é. Talvez o ciúme da prima ou a indiferença do marido. Mas no fundo, ela sabe que não é nada disso. Mas uma vez tira o pensamento da cabeça e se concentra em coletar gravetos e voltar ao seu mundo real.

    Capítulo 5

O atol da morte

     No luxuoso aposento do cinquentenário e poderoso Itani Koji, um vassalo deixa chegar à entrada da porta e aos cuidados de dois guardas, um homem mal vestido e sujo. Os odores que exalam do visitante entram nas narinas das jovens amantes do nobre e as deixam nauseadas.
- Quem é esse peixe podre? Quem o mandou entrar?
- Este homem disse que matou João de Russas meu senhor. Veio receber a recompensa.
- A prova! Quero a prova!
     O homem se anima e dar um passo a frente e é impedido pelos truculentos guardas.
- Para aí mesmo!
- Meu senhor Itani, nobre dos nobres. O João de Russas está morto, eu mesmo atesto e lhe trago esse colar – Estica o braço com a cabeça abaixada.
     Itani faz um gesto no olhar para os guardas que o libera.
As mulheres correm fugindo do fedor e isso diverte seu amo.
     O vassalo anda rápido, ajoelha-se e entrega o objeto para Itani que não o reconhece de imediato:
- O que é isto?
- O colar do pescoço dele meu senhor. Estava morto quando puxei. O tiro foi nas costas e o sangue lhe jorrava da boca. Seus olhos estavam parados contemplando a sombra da morte – diz esticando as mãos acima da cabeça.
     Itani olha para o colar e depois para o homem e faz um sinal para que ele se levante.
- Venha meu fiel soldado. Aproxime-se mais.
     O homem anda desconfiado admirando a beleza daquele lugar luxuoso que para ele só a lembrança pagaria metade da recompensa. Ao chegar bem perto, Itani lhe põe a mão sobre os ombros e olha bem nos olhos do homem:
- Por acaso o pescoço dele veio junto?
- Não meu senhor. Os revolucionários nos emboscaram. Não havia como trazer o corpo, nem tempo para cortar a cabeça. Mas ouvi os gritos que ele tinha morrido. Estava morto meu senhor!
- Não é esse o colar que dei para aquele traidor. Isso aqui é falso!
- Mas meu senhor eu..
- João de Russas ama aquele colar e é muito supersticioso. Nada o faria tirar e quebrar uma promessa.
- Então meu senhor....ele tirou e colocou outro no lugar.
     Itani num ímpeto de fúria, bate no rosto do homem fazendo-o cair sem nenhuma reação.
- Quero o corpo! Quero a prova!
    O homem não responde e começa a tremer e choramingar como criança.
- Tirem esse pedaço de fezes da minha frente e jogue aos tubarões!
     Os guardas levantam o homem do chão que estava banhando de urina e suspirando de pavor. Ele não reage aos guardas, que estrema brutalidade joga o infeliz numa grande piscina de água do mar com tubarões dentro. A cena de horror que vem a seguir com os gritos de dor e desespero do homem sendo devorado pelos animas, só se equivale à demonstração de insanidade e maldade de Itani. Discretamente um dos guardas cerra os olhos evitando presenciar tamanha atrocidade.
     Uma jovem mulher leva uma jarra com cachaça e serve Itani que bebe o líquido de um só gole, enquanto aprecia o turbilhão de sangue:
- Quero que junte meus melhores soldados e capturem todos naquele manguezal maldito onde João de Russas se esconde. Se ele ainda estiver vivo tragam a cabeça dele. Pagarei a cada um o dobro que prometi para aquele infeliz. Quem reagir, mate sem piedade!
- Imediatamente meu senhor! – disse um dos guardas se retirando.
- Espere!
- Meu senhor?
- Prepare meu barco e minhas armas! Dessa vez eu vou junto! Avisem a guarda barreira, revistem e queimem todos os barcos que seguirem para o Arquipélago das Russas.
- Meu senhor – O guarda abaixa a cabeça reverenciando e indo cumprir as ordens.
     Itani se volta para a janela e ver o grande oceano e o rico império que construiu, cercado de belas casas e um cais repleto de barcos.
- Vou terminar o que comecei – diz ele em voz baixa cerrando os punhos.
    Na comunidade do manguezal tudo segue a passos rápidos. Tatsuo acabara de chegar ao cais e fiscaliza o barco com muito cuidado. João de Russas está pronto para partir. A embarcação está carregada com água, comida e combustível. Seguirá por uma rota direta para ao extremo leste sem passar próximos as várias ilhas, evitando encontrar piratas e mercenários de Itani.  É uma rota não comercial e nessas regiões esses marginais podem se deparar com frotas militares que navegam em linha.
     Próximo à proa, Hina e Aiko se acomodam para uma viagem de três dias e duas noites. Uma pequena aglomeração de pessoas veio se despedir e acenar a partida, alguns trazem presentes e outros agrados para a menina.
- Faça uma boa viagem e lembre-se de tudo que combinamos – disse Tatsuo.
- Não queria ir agora, preferia saber mais de Itani. Poderia criar um disfarce – comentou João de Russas enquanto enrolava uma corda – Mas você havia dito para preparar o barco.
     Tatsuo fica confuso:
- Você quer o não levar a sua família?
     João de Russas olha para a filha e esposa e balança a cabeça em silêncio afirmando a decisão e, num vacilo de Tatsuo, olha discretamente para Sora, a prima de Hina, que escondida entre as pessoas, sorrir lasciva e sensual beijando discretamente um colar de ouro que está no seu pescoço e que ganhou dele de presente. Hina estava atenta e viu toda a cena. Não sentiu ciúmes, sabia que a intenção do marido é viver no arquipélago e visitar a prima de tempos em tempos ou ter duas famílias, e isso era tolerado para um homem na posição dele.
- Está bem Tatsuo! Vou com eles.
- Lembre-se. Siga pela rota combinada. Kazuo e seus amigos os esperam e vão ajudar na sua proteção no restante da viagem até o arquipélago.
- Bom saber. Até a volta!
     Durante o primeiro dia o barco segue tranquilo, beneficiado por uma corrente oceânica e ventos favoráveis, economizando assim combustível e suprimentos.
     A noite chega serena e com ela um pouco de frio. João de Russas se recusa a acender qualquer tipo de luz temendo chamar atenção dos inimigos.
- Mamãe estou com frio – reclama a jovem Aiko.
- Vem mais perto filha – diz Hina que não consegue dormir com o ronco do marido e achando que o barulho chamaria mais atenção dos piratas do que uma pequena chama.
     Minutos depois o ronco cessa. Hina respira aliviada. Ela olha para João de Russas e apesar da pouca luz de uma noite sem lua, consegue percebe que o marido lhe olha fixamente.
- Tentando ser simpático ele sorrir.
     Instintivamente Hina retribui uma rara gentileza do marido, que continua olhando para ela sem fazer movimento algum.
- Olá Hina – Arrisca Dante, que retorna de num novo e inédito EP.
     A mulher se assusta e se afasta para traz, mas é impedida pela madeira do barco. A menina se mexe um pouco e logo volta a dormir profundamente.
- Não tenha medo. Meu nome é Dante.
- Dante? – Ela sorrir e ele retribui.
- O que foi? – pergunta curioso.
- Nome engraçado. É de homem? – responde ela, que na verdade tinha medo que o espírito gentil fosse feminino.
- É sim. Também acho meu nome engraçado, foi minha mãe que o colocou. Por que seu marido não acende alguma chama? Está frio aqui. Não vai incendiar o barco, tem espaço.
- Os piratas de Itani.
- Ah sim! Claro! Itani. – Dante não faz a menor ideia de quem seja.
- De onde você vem Danté – Ela não pronuncia o nome dele direito.
- Sou um homem que dorme num lugar e quando sonha acorda aqui.
- Que lugar?
- Um lugar do passado. Muitos anos para o passado.
      Hina faz uma expressão que não entende e o olha para a filha.
- Posso fazer um fogo pequeno?
- João pode acordar?
     Dante evita criar problemas para Hina. Mas sente-se feliz em está com eles mais uma vez. Está no quarto evento do EP e reflete sobre os muitos erros dos seus amigos quanto ao fenômeno.
- Tá bem. Posso aguentar o frio.
      A mãe de Aiko deixa Dante entender que pode acender e quando o faz tudo fica mais confortável e menina sonolenta fica entre os dois e bem aquecida.
- Mudou de ideia?
- Não deveria falar com você, não é certo.
- Eu sei Hina. Mas preciso de sua ajuda – diz ele enquanto acende um pequeno forno.
- O que você quer?
- Preciso acordar e não voltar mais aqui. Quero dizer, aqui, dentro do seu marido.
     Hina faz uma expressão que Dante capta na hora:
- Você não quer que eu vá embora?
     Ela balança rapidamente a cabeça dizendo não:
- Desculpa. Eu não quis dizer isso.
- Eu sei – Dante põe a mão sob a dela e sente seu corpo tremer.
- Desculpe.
- Não sabia que era você que eu beijava.
- Você não deve se preocupar com isso. Eu entendo.
- Não entende – disse Hina, com os olhos brilhando de emoção.
     Aiko desperta:
- Mamãe. Canta uma música.
- Está tarde filha e seu pai quer dormir.
- Ele não é o papai – Aiko se vira rapidinho, sorrir para Dante e volta à cabeça envergonhada.
- Papai adoraria ver mamãe cantar – disse Dante com ternura e elas entendem o bom humor de Dante, sorrindo baixinho.
     O barco deslizava suavemente em uma calmaria marítima. Uma brisa leve vez ou outra soprava a vela dando a impressão que ela respirava. Hina começou a cantar uma música suave, de uma melodia inebriante. Dante por um momento se deixou esquecer de Ana e se permitiu admirar aquela mulher com os olhos do seu marido que pouco ou nada lhe dava atenção. Dante percebia que algo a fazia sentir-se triste e que estava apaixonada pelo “espírito”, mesmo sem conhecer seu rosto, sem entender por que aquilo acontecia.
- Como é linda – Dante se deixou envolver pela admiração e deixou escapar essa frase. Hina sorriu levemente, não se abalou e se deixou levar também pela música e o momento. A música era linda e a cantora também, mas ela achou que ele havia se referido à melodia e não a ela.
- Pobre mulher – pensou Dante. Sua ingenuidade a torna ainda mais bela.
     Ao terminar a canção. Ele pediu para ela descansar um pouco e sua resposta foi que enquanto ele estiver ali, ela nunca descansará.
- Então posso lhe pedir algo muito importante para mim?
- Sim. Por favor.
- Quero que me conte tudo o que se lembrar desse mundo que estou. Sua vida com sua filha e marido. Quem é aquele senhor que foi me visitar. Quero saber quem é esse Itani.
     Hina achou graça o jeito que Dante falou, parecia que um leve sotaque nordestino havia conseguido atravessar pelo Ecótono Paradoxo.
- Eu conto, se você contar um pouco do mundo que você veio. Quero conhecer esse passado – disse ela pondo a mão suavemente no rosto dele.
- Tudo bem. Aceito – Dante teve a prova de que Hina não só era linda, era também esperta e inteligente. “Talvez um legado que fez a nossa raça sobreviver até aqui”, pensou ele. Aiko é surpreendida pelo sono e dorme quietinha ao lado da perna da mãe.
     O barco continuava deslizando no oceano calmo. O céu estava claro e a Via láctea parecia querer desabar sobre eles. Dante observa atentamente as estrelas, olha o mapa que estava no bolso de João de Russas. Tinha muitas dúvidas, mas precisava explorar os detalhes daquele mundo o mais rápido possível. Ele sabia que aquele EP, em tese, era diferente e que poderia ser último. Depois, retornaria a plataforma e para casa. Em breve, seria a vez de João de Russas se tornar observador de um futuro além daqueles tempos.
- Quem deu seu nome de Hina?
- É um nome de família. Toda menina recebe o nome da avó. A filha de Aiko também será Hina.
- E por que esse nome se repete?
- É uma tradição. Uma história antiga dizia que a primeira Hina era uma mulher nobre e muito rica, tinha muitas águas e terras. Chamavam-na de Senhora dos tubarões.
     Nesse instante Dante ficou com a respiração ofegante e emocionado. Agora ele tinha uma pista onde estava, tinha certeza que a plataforma, se ainda existisse, estava naquela região náutica. Voltou a olhar o mapa e depois se lembrou de que já ouvira aquele termo “Senhora dos Tubarões”. Ficou um tempo com o olhar distante.
- Mas é claro! A empresa japonesa! Conheci uma Hina criança e seus pais quando foram ao balneário – Dante pensa alto - Eles estavam iniciando o negócio com tubarões em Nação Pernambuco.
- Do que está falando?
- Ah! Desculpe Hina.
- Está tudo bem? Parecia diferente.
- Estou bem obrigado – Dante se esforça para se acalmar – Seu marido lhe falou algo sobre um lugar flutuante por aqui?
- João é muito experiente nessas águas. Desculpe, eu não sei ler e não entendo de mapas de águas.
- Entendo.
     Hina percebe que Dante ficou triste e tenta animá-lo com qualquer informação:
- Mas...
- Mas! – Dante quase se levanta.
- Meu pai me dizia que depois do Arquipélago das Russas tem uma ilha pequena e rasa.
- O que tem essa ilha? – Dante olha no mapa.
- Não sei. Mais uma lenda diz que ao chegar lá e caminhar por ela a pessoa morre.
- E por que morrem?
- Não sei – responde ela ingenuamente e achando que não está agradando.
     Dante se aproxima de Hina. Ele segura suas mãos com ternura, beija-as e diz olhando bem fundo em seus olhos:
- Não fique com vergonha com o que vou lhe dizer. Você é uma das mulheres mais lindas que conheci Hina. Estou muito feliz de ter lhe conhecido. Mas o que preciso saber pode até salvar minha vida um dia.
     Hina se assustou com as palavras de Dante. Ela humildemente balança a cabeça em completa submissão automática. Dante toca em seu queixo e levanta seu rosto.
- Preciso de você.
- Peço desculpas se não estou ajudando.
- Claro que você está e...
     Dante é fisgado por um rápido e apaixonado beijo na boca dado por Hina. Ele pensa em resistir, mas a suavidade da mão de Hina em seu pescoço lhe deixa vulnerável. Ao terminar ela olha pra ele feliz.
- Hina eu...
- Eu sei. De onde você vem existe um amor que lhe espera.
- E por que o beijo?
     Hina sorrir. Não com desdém, mas com uma sensualidade que mascara a maturidade já em formação.
- Você estava nervoso. Precisava lhe acalmar.
     Dante acha graça na desculpa improvisada e como num passe de mágica tudo fica bem. Ele ama Ana mais do que tudo no mundo. Fica eufórico só imaginando que ela está vendo aquela cena e dizendo “Mas que safado!” e pior, Severo e Elizabete estão se divertindo as suas custas. Mas se compadece dos sentimentos de Hina e se concentra na missão.
- Nessa ilha – continua Hina – não tem peixes nem aves e as baleias passam longe. Tudo que se aproxima morre. Até os barcos ficam longe.
     Sem perder tempo, Dante aproxima o mapa da pouca luz das chamas e percorrendo com o dedo encontra um nome bem pequeno: Atol da Morte.
- Então é verdade? E as baleias? Sabe o nome das baleias?
- Baleias – responde ela erguendo os ombros.
- Não tem outro nome? Seria Jubarte?
    Ela diz que não sabe e Dante respira fundo se esforçando para não demonstrar ansiedade.
- Mas elas têm algo parecidas comigo.
- É? E o que seria?
- Elas cantam.
    Os olhos de Dante se arregalam e ele quase dar saltos no ar:
- Jubartes! São jubartes.
     Hina dessa vez está feliz ao ver Dante animado. Ela se afasta da filha com cuidado, levanta-se e pega uma garrafa com água e prepara um chá. Ele se acalma e pergunta para ela o destino daquele barco. Hina explica tudo o que sabe. Conta o que aconteceu na sua vida pessoal, no passado de João de Russas, a tirania e poder de Itani.
- Então os chineses do arquipélago vão ajudar vocês a deter Itani.
- Sim – diz ela com o olhar triste.
- O que foi então?
- João quer vingança. Ele mesmo quer matar Itani.
- Hina. Tudo o que falou é muito importante, mas diga-me, quando eu vou embora seu marido lembra-se de alguma coisa?
- Não diz nada. Parece que tudo que aconteceu com você ele não sabe. Apenas fica estranho e sonolento.
- Você sabe como Itani fala com as pessoas quando estão longe?
- Sei sim. Pelo rádio.
     Dante quase sorri de si mesmo. Por instante achava que o rádio também havia deixado de existir ou que Hina não conhecia. Pensou em perguntar por que o mundo está daquele jeito, mas não quis forçar. Apesar das muitas qualidades, Hina é de origem humilde e provavelmente não teve acesso a muita informação. Ele pensa no que leu uma vez sobre as antigas sociedades em que as mulheres eram preparadas para servir os maridos, pois cantavam, cozinhavam e eram prendadas em muitas artes, inclusive as do sexo. Dante joga de súbito a cabeça de lado e tira rapidamente um pensamento machista e erótico que lhe atiça a curiosidade.
- Vocês tem rádio aqui?
- Não temos. Apenas Itani e os militares.
     As horas se passaram rápidas e já é madrugada. Quanto mais conversava com Hina, mais ele sabia sobre aquela estranha época. Procurava entender mediante as limitações dela, que o planeta entrou em colapso devido às alterações climáticas. As águas dos oceanos continuaram a avançar sobre os continentes trazendo grandes impactos na economia. Dante conhecia bem essas histórias, lembrou-se da antiga e quase lendária cidade do Recife, apesar de que nem havia nascido quando tudo aconteceu e, mais uma vez se depara com seus efeitos 500 anos depois. A bela japonesa estava convenientemente bem abraçada ao corpo do marido. E Dante absorvido em seus pensamentos e curioso com o tempo de exposição do evento EP.
- Hina.
- Sim.
- Você sabe dizer que ano nós estamos?
- Ano do tigre.
     Dante se sentiu impotente com aquela resposta. Não sabia o que fazer com aquela informação.
- Dante.
- Sim.
- De que ano você veio? – pergunta Hina um pouco sonolenta.
- Contamos os anos diferentes Hina. Eu vim do ano 2514.
-Então também deve ser Tigre.
     Dante levanta um pouco a cabeça e olha para ela surpreso.
- Como é seu mundo? – pergunta ela virando o rosto.
- Lembra um pouco esse. As águas dos oceanos também invadiram a terra. Tem chineses, japoneses e outros povos.
- Tem holandês?
- Sim. Têm holandeses. Por que pergunta?
- João é filho de holandês.
- Sério?
- Mas Hina é parecida com minha família. Acho que ele queria um filho homem.
     Dante acha graça o jeito como ela falou.
- Por que você diz isso? Sua filha é linda.
- Os homens podem mais coisas que as mulheres.
- No meu mundo as mulheres fazem as mesmas coisas que os homens.
     Agora é a vez de Hina levantar a cabeça e olhar para Dante:
- Verdade?
- Sim. Verdade. Quem sabe vocês possam reivindicar por esse direito novamente.
     Hina não entende nada:
- Você tem esposa e filhos?
- Tenho. Quer dizer, vamos nos casar quando eu voltar. Não temos filhos ainda.
- Ela é bonita?
- Ela é muito bonita.
- Como se chama?
- Ana.
- Gostei do nome.
- Ela canta?
- Não sabe cantar e nem cozinhar.
     Hina mais uma vez levanta a cabeça:
- E você ama assim mesmo?
     Dante tem vontade de estourar em gargalhadas.
- Do que você está falando mulher?
     Hina levanta a cabeça assustada e pelo tipo de olhar já percebe         que Dante havia partido.
- De nada marido – responde submissa.
     João de Russas passa as duas mãos no rosto e se levanta desconfiado. Achava que Hina estava se referindo a Sora.
- Não era para eu dormir tanto! Por que não me acordou?
- Estava cansado marido. Fiquei acordada vigiando o barco, assim terá mais forças e disposição durante o dia. Vou preparar sua comida.
- Chame Aiko. Nesse barco todo mundo trabalha. Quero que ela prepare as iscas! Vamos pescar antes do sol nascer.
     No segundo dia de viagem só foi trabalho. Hina e Aiko só paravam para descansar às 14 horas, levantando-se novamente ao por do sol e quando tudo estava arrumado iriam deitar no escuro. Foi um dia cansativo para Hina, pois ela havia passado a noite e madrugada com Dante, mas ela não se arrependia.
    Na manhã do terceiro dia o vento aumentava e o cheiro do oceano mudara bruscamente. João de Russas sabia que o tempo iria mudar.
- Vem chuva.
     Aiko põe a palma da mão sobre os olhos:
- Não vejo nuvem de chuva papai.
     João de Russas olha indiferente para a menina. Hina sempre estava certa, o marido sonhava com um filho. Queria ensinar tudo o que sabe e torna-lo respeitado em sua comunidade. Mas a esposa não engravidava mais e João de Russas perdeu o interesse sexual por ela, algo que Dante jamais entenderia como isso era possível.
     No terceiro e último dia, o barco seguira bem a viagem. Tanto as correntes marítimas e o vento colaboraram. Em breve avistariam o pico do Arquipélago das Russas.
     Hina e Aiko estavam vigiando na proa do barco. A menina tinha a sensação de que estava sendo seguida, mas não via nada. Olhou novamente para frente e chamou a atenção da mãe apontando.
- Fumaça. Mamãe tem fumaça ali.
- Onde? Estou vendo!
     A esposa corre para chamar o marido que descansava.
- João! Acorde! Fumaça!
     O homem salta os olhos e levanta como se uma catapulta o tivesse lançado! A menina lhe entrega o binóculo.    
- Mas o que é aquilo?
- O que foi João?
- Parece que os barcos de Kazuo foram incendiados! Não consigo ver direito.
     O vento muda e eles escutam os tiros de metralhadoras. João de Russas se equilibra para ver melhor e testemunha vários barcos sendo incendiados e pequenas explosões. Ver homens de Itani, em outros barcos maiores, atirando nas pessoas que caíram no oceano e tentando nadarem ou se apoiar feridas nas embarcações.
- O que foi João?
- A bandeira com a marca do tubarão.
- Itani!
- Sim. Dezenas deles.
     Hina abraça a filha.
- E o povo de Kazuo?
     O marido olha com compaixão para a mulher e ela abraça o marido chorando copiosamente. A menina corre e se esconde na sombra da pequena cabine do barco e fica triste e quieta.
- Também estavam fugindo, indo para o arquipélago! Itani deve ter avisado por rádio para fazer o bloqueio e destruir tudo!
- O que vamos fazer João! – Hina se desespera. Conhece bem qual será o seu destino e da filha se forem capturadas. Geralmente são poupadas as vidas, tornando-se escravas sexuais de Itani ou viveriam nos trabalhos forçados das plantações. Mas a julgar que sejam da família de João de Russas, os destinos delas certamente seriam dolorosos.
- Acho que eles ainda não viram nosso barco! Aiko foi muito rápida em nos avisar. Mudaremos a rota para nordeste, tem muita fumaça e os ventos vão ajudar.
- Vamos desviar do arquipélago?
- Não podemos ir nessa direção. Temos que arriscar e encontrar navios chineses. É a nossa melhor saída.
     Hina concorda com o marido, pois ela sabe que ele conhece como ninguém aquelas águas.
      Com o passar das horas a estratégia de João de Russas parece que deu certo. Os assassinos de Itani não tomaram conhecimento da sua presença a poucas milhas de onde estavam. O vento colaborou ficando mais forte e trazendo a fumaça e uma providencial cortina, dando tempo para eles fugirem.
     O que João de Russas não sabia é, que depois da sua partida da vila do manguezal, Itani chegaria de surpresa e pessoalmente comandava uma chacina. Os poucos homens em desvantagens, viram os barcos inimigos avançarem sobre as palafitas, queimando e capturando mulheres e crianças. Os que reagiram foram mortos sem piedade.
- Nenhum sinal dele meu senhor! – avisa um dos seus guardas.
- Onde foi que esse fedorento se escondeu! – diz Itani em cólera.
- Meu senhor! Capturamos essa aqui! Diz que sabe onde está João de Russas.
     Ao olhar para a jovem mulher, Itani sentiu uma forte atração. Ordenou soltá-la, pois ela era trazida a força e puxada pelos cabelos.
- Mas o que temos aqui? De onde saiu essa pérola? Qual é seu nome menina linda?
- Sora!
- Sora? Mas que belo nome – os soldados acham graça e sorriam diante da ironia do líder que abre os braços teatralmente. Eles tem esperanças de que ele ceda aquela jovem mulher para atender seus caprichos.
     Itani se aproxima. Pega a mão dela e beija. Segura seus cabelos e alisa para trás.
- Realmente! Muito bela.
     Assustada, Sora não reage e Itani aproxima a boca em seu pescoço e começa a dar pequenos e suaves beijos. Até ver o colar que deu a João de Russas de presente.
- Mas o que temos aqui! Quem lhe deu esse colar?
- João de Russas – responde ela secamente.
- Agora entendo! Por você! Quebrar uma promessa faz todo o sentido! – Itani rasga a roupa de Sora e a deixa completamente nua. Os homens ficam ainda mais nervosos e aplaudem.
- O que você é dele?
- Nada! Ainda não tenho dono – reponde a jovem com astúcia e já usando seu dom de sedução.
- Agora você tem! – Itani puxa com força o rosto da jovem e a beija com vigor.
     Os homens gritam como animais enfurecidos numa jaula, mas já sabem que não vão tê-la. O líder percebe o desapontamento e oferece as demais mulheres para eles como prêmio de consolação e um nova gritaria se escuta por todos os lados. Homens brutalizados perseguem as outras mulheres e alguns se nenhum pudor as estupram em público. Outro homem chega avisando:
- Meu senhor! Procuramos em todo lugar. Nenhum sinal do traidor.
Uma coisa era certa, Itani já caiu nos encantos de Sora e não tinha intenção de matá-la. Ele volta o olhar para ela:
- Para onde João de Russas seguiu?
- Para o Arquipélago das Russas. Foi com a família.
- Faz quanto tempo?
- Ao amanhecer.
     Ao saber disso, Itani sorrir e olha para o céu. O sol está quase em zênite, poderia alcança-lo fácil. Intuitivamente já sabia que João de Russas faria isso.
- Quer dizer que ele está com saudades da antiga casa?
- Talvez – responde Sora que olha expressiva e fixamente no fundo dos olhos de Itani como se estivesse completando a sua obra de sedução.
- Só isso! – Itani puxa o quadril de Sora para perto dele – Vamos lá menina, não vou te matar, você será a favorita das minhas criadas.  Ganhará joias e muitos prazeres.
     Sora não confiava nas promessas de Itani, estava com muito medo. Se não falasse algo realmente que conquistasse a gratidão daquele homem mal ele a mataria. Ela faz um gesto que falaria apenas no seu ouvido.
- Vai avisar aos chineses de algo que aconteceu no passado quando ele ainda morava lá com a família. Ele sabe quem foi o responsável pela morte de todos no arquipélago.
     Os olhos de Itani por um momento pareceu querer saltar das órbitas. Suas mãos estremeceram e um suor frio correu em sua testa. Pensou em mata-la naquele instante. Ele sabia que João de Russas tinha parentes naquele arquipélago, mas sempre afirmou que não vivia lá. O próprio descendente de holandês enganou Itani, dizendo que ele e o seu povo viviam em outros lugares e que seriam seus aliados contra os chineses.
- Como é que é? – disse Itani.
- Escutei ele dizer isso a esposa e a filha quando estavam de partida.
     Com a voz entrecortada Itani perguntou:
- Alguém sabe o nome de quem foi esse homem do passado que matou todos?
- Ninguém sabe – disse Sora praticamente soprando no ouvido dele – aqui é proibido falar disso. Mas desconfio que durante a viagem ele vá confessar a mulher e a filha.

     Sora havia se arriscado muito. Uma resposta errada e sua vida e de todos que estavam naquela comunidade seriam ceifada.
     Suavemente, Itane vai largando a jovem mulher. Seus pensamentos estão misturados. Ele olha para aquele povo maltrapilho e retorna o olhar para a bela imagem de Sora.
- Muito bem menina – disse ele em voz baixa, numa falsa tranquilidade.
- Não vou lhe trair nunca – disse ela no mesmo tom – Posso ficar com o colar?
     Itani quase sorriu diante da audácia daquela jovem. Ela definitivamente o havia conquistado.
- Pode sim. E terá muito mais. Prepare-se, na volta passo aqui para lhe apanhar. Esse manguezal não é lugar para você.
     Próximo de onde Itani e seus homens se encontram, Tatsuo usa suas últimas forças para vencer uma luta silenciosa contra um dos inimigos. Ao persegui-lo, mesmo devagar, o assassino fica com suas pesadas botas presas na lama. O velho Tatsuo o conduziu para armadilha natural.
- Não se usa botas na lama seu baiacu de espinhos! – Grita ele.
     O inimigo olha para todos os lados e tentar se livrar, grita para outros ouvirem e nada acontece.
- Não se canse. Ninguém vai escutar.
    Com muita paciência e habilidade, Tatsuo corta uma raiz pontuda do mangue, caminha tranquilo sobre a lama e transpassa com força as costas da vítima e o deixa agonizando.
 - A maré logo subirá e você vai alimentar meus caranguejos e peixes!
    Sem perder tempo, Itani ordena retirar todo peso extra do seu barco, tornando-o ainda mais veloz. Junta quatro dos seus melhores assassinos e segue atrás do seu desafeto de um jeito quase imperceptível.
- Vou alcançar você traidor! Ele é um sobrevivente! Mas como? – Pensa ele.
     Havia se passado algumas horas quando o capitão do barco avisa para Itani:
- Meu senhor! Kazuo e seus homens foram capturados e mortos. Estavam na linha de fronteira para o Arquipélago das Russas.
    Uma coisa que Itani aprendeu foi como pensar como João de Russas. Ele o admirava muito e teve bons momentos com ele, principalmente sobre navegação. Por isso, sabia que João de Russas não retornaria e que não seguiria para o sudeste sem provisões. Tinha certeza que não colocaria a sua família em risco aproximando-se do litoral sul, onde ele tinha muitos aliados.
- Ele mudou o curso! Viu a fumaça!
- Meu senhor?
- Ele desistiu de ir direto para o arquipélago! Vai tentar achar os navios chineses ou dar uma volta longa!
- Não podemos nos aproximar meu senhor e...
- Eu sei! Mas a marinha japonesa pode.
- Meu senhor?
- Passe uma mensagem pelo rádio e avise que os chineses acabaram de atacar barcos próximos da fronteira, matando pessoas inocentes.
- Meu senhor?
- Diga também que um traidor chamado João de Russas matou crianças e mulheres na vila dos manguezais e que estamos perseguindo ele. Quero os barcos a toda velocidade apoiando a frota japonesa e aguardem minhas instruções! Vou com barco caçar ele! Eu vou matar João de Russas! – Grita Itani, que é correspondido com saudações calorosas.
     O terceiro dia chega e o barco de João de Russas e família segue seu curso. O vento aumenta e o tempo esfria.
- Mulher se prepara! Vai balançar.
     A pequena Aiko se aproxima:
- Tá chuviscando papai.
     João de Russas olha para o lado esquerdo e percebe que está na periferia de um ciclone.
- Hina! Precisamos voltar! Não posso arriscar nossas vidas, esse barco não vai aguentar a tempestade.
- Aqueles assassinos vão nos achar!
- Tem outra ideia? Podemos contornar para o arquipélago e se a tempestade nos pegar poderemos não ver os navios e nos destruir.
     A esposa mais uma vez confia em seu marido e balança a cabeça concordando.
- Prepare os coletes! Eu vou separar os mantimentos e água.
     Começa a luta pela sobrevivência no oceano. João de Russas muda as velas e liga o motor a todo vapor. O barco é empurrado na direção certa e os fracos pingos de chuva parecem querer ficar para traz.
- Onde está Aiko? – pergunta João de Russas.
- Ela quer ajudar. Está debaixo da lona com o mapa e observando com o binóculo.
     João de Russas sorrir e fica satisfeito com o trabalho e iniciativa da filha.
- Ela daria uma ótima capitã.
     Hina está feliz com esse raro momento de simpatia do marido. Mas o gesto só faz lembrar-se de Dante e, uma saudade lhe bate no coração.
     As horas passam e tudo parece tranquilo até Aiko gritar para o pai avisando que os barcos inimigos se aproximam.
- Não acredito! Como sabiam disso! – Grita João de Russas.
- E agora marido? – Hina volta a ficar aflita.
     O experiente navegador olha para um lado e para outro.
- Vamos morrer tentando sobreviver e não sangrando aos pés de Itani! Vamos pelo sul, contornando a tempestade.
     A esposa nada diz. Está ciente da crueldade dos assassinos. Morrer pela obra da natureza é mais digno.
     João de Russas vira o barco e dessa vez não tem como desfazer. Mesmo vencendo a tempestade e economizando água e comida, ficariam a alguns dias navegando no imenso oceano azul. Se nesse curto período não forem resgatados pelos chineses, cada dia a mais será uma sentença de morte.
     Começa a chover e os ventos ficam mais fortes. Os raios e trovões já riscam o céu. Apesar de está na metade da tarde a escuridão cai sobre o oceano de águas agitadas e formando elevações de marolas. O barco já enfrenta pequenas ondas na proa e João de Russas pede que Hina e Aiko fiquem perto dele.
     A perseguição continua por mais duas horas. Os barcos inimigos estão cada vez mais próximos e zumbido de tiros é escutado.
- João! Estão atirando! Eles nos alcançaram!
- Não tirem os coletes e se protejam!
    A tempestade e os ventos aumentam dificultando a navegação do barco de João de Russas e os que o persegue.
- Quase não dar para vê-los! Estamos mais leves e ganhamos vantagens!
- Papai olha! Um navio! – aponta Aiko - João de Russas se esforça para ver.
- Não dar pra saber se são chineses! Hina venha aqui segurar o leme! Preciso sinalizar ajuda!
     Enquanto a mulher se esforça para manter a embarcação equilibrada, João de Russas apanha uma lanterna sinalizadora e inicia uma série de sinais em código Morse. Pisca rápido 3 vezes, 3 mais lentos e novamente mais 3 rápidos.
     No tombadilho do navio, um soldado comunica via rádio ao imediato, um pedido de socorro de embarcação de pesca. O navio emite um sinal de que captou a mensagem:
- É isso! Eles nos viram. São chineses! É uma frota chinesa.
     João de Russas comemora e sem perder tempo, se identifica e diz que está sendo perseguido pelos homens do verdadeiro responsável pelo ataque ao Arquipélago das Russas.
     O navio responde com sinal luminoso confirmando que vai resgatá-los e usa artilharia pesada contra os barcos que perseguem João de Russas e sua família. Os inimigos reagem mais são atingidos tentando escapar inutilmente da linha de tiros. Seus barcos explodem.
     Apesar do medo, João de Russas se enche de esperanças. Mas algo inesperado surge do outro lado. Outra frota japonesa dispara contra os navios chineses e uma enlouquecedora batalha naval se inicia em meio de uma forte tempestade.
     Hina percebe que o marido fica mais transtornado e confuso, seu olhar modifica. A pequena Aiko grita ao desespero chamando pelo pai. Ele olha para a menina e sua mãe em meio aquele inferno marítimo de ondas e marolas altas, chuva forte com raios e trovões e disparos entre navios e fogo em pequenas embarcações.
- Danté! Danté! – Hina o reconhece.
- Hina! Meu deus! O que está havendo aqui?
- O navio chinês! Temos que chegar ao navio!
     Outro ecótono paradoxo está acontecendo. Dante agora precisa de toda a sua experiência para localizar e alcançar o navio chinês, a vida de todos está em suas mãos. Uma parte dos destroços de outro barco atinge o deles, quase jogando a menina ao mar, mas sem avarias.
     A pequena e firme embarcação que basicamente é utilizada para pesca, escorrega entre as ondas quase desaparecendo no turbilhão de águas. Dante sabe que não haverá condições de um navio resgatá-los nestas condições e faz de tudo para enfrentar as altas marolas. A pequena Aiko começa a vomitar e passar mal ao lado da mãe que chora copiosamente. O capitão estuda os ventos, mas não consegue se localizar.
- Preciso de um mapa!
     Mesmo sem condições, a valente Aiko chega aos tropeços e desequilíbrios alcançar uma depressão no barco onde guarda o mapa. Ela entrega a Hina que leva para Dante junto com uma bússola.
- Segure o leme assim! – explica Dante, que puxa a pouca luz da lanterna e se abaixa.
     Sempre atenta, a pequena Aiko vai para perto de Dante e o cobre protegendo da chuva.
- Pobre menina – pensa ele – Como ela é corajosa.
- Para onde quer ir Danté?
- Temos que seguir para esse lado!
- Mas é o Atol da Morte?
- Se ficarmos aqui poderemos morrer também. Vejo a sombra de muitos navios e uma frota em guerra com a outra. Se formos atingidos...
- Vamos para o atol! – Grita Hina – Nos tire daqui Danté!
     O capitão olha o compartimento onde fica o motor e o liga novamente. O barco sacode para frente derrubando Dante que por pouco também não caiu no oceano. Uma sombra de um tubarão enorme passa por ele.
- Nossa!
     O barco finalmente encontra seu caminho e vai em direção ao atol. Pouco mais de 50 minutos depois, a tempestade perde força e quando a noite chega às águas balançam menos. Todos estão exaustos. Dante olha ao redor e suspira enquanto segura as duas mãos na cintura.
- Mas que bagunça!
     Hina e Aiko acham graça.
- O que foi? – Dante estende o braço curioso.
- Seu jeito de falar – responde Aiko - o papai não fala assim.
- Ah tá!
     Aiko espirra.
- Precisamos nos aquecer. Acho que não vai chover por enquanto, mas vai ficar frio.
     Dante faz tudo o que é possível naquelas circunstâncias para manter Hina e a filha confortáveis. Consegue fazer um bom fogo com os restos dos destroços de outro barco que ficou preso ao deles.
     Hina sem muitos pudores tira o vestido molhado na frente de Dante e veste outro seco. Faz o mesmo com a filha.
- Essa roupa é de João. Pode usar. Está seca e foi bem guardada. A água não molhou.
- Obrigado.
- Acho que cabe em você – Hina sorriu acompanhada de Aiko que mesma pequena, entendeu a brincadeira da mãe.
- Acho que ficou um pouco folgado – Dante retribui a brincadeira.
- Está magro. Vou preparar um ensopado – avisa Hina.
- Eu vou avaliar o barco e os mantimentos – disse Dante.
     O tempo se acalma e aos poucos as nuvens se dispersam. Depois do delicioso repasto feito por Hina, todos se sentem renovados próximos às pequenas chamas de um fogareiro. A noite já havia chegado.
- Sua comida estava muito boa. Como se chama?
- Obrigada. É pirão de peixe.
     Dante fica meio sem jeito. Ele limpa a boca e muda de assunto:
- Hina. O barco é forte e resistiu bem à tempestade. Não achei nenhum vazamento. A vela está firme e o combustível pela metade. Ainda tem água e comida e se vocês racionarem poderão ter mais alguns dias enquanto algum navio aparecer.
- Vocês?
- Sim Hina. Não voltarei mais. Posso sentir isso.
     Aiko se levanta e abraça Dante com força.
- Não quero que você vá Danté! Vou sentir saudades.
- Eu sei Aiko...eu sei
     Hina enche os olhos de lágrimas e com vergonha os enxuga rapidamente. Dante estica o braço e a chama para perto dele.
- Foi bom conhecer vocês. Nunca vou esquecer. Só não deu para conhecer o João direito.
     Elas sorriem.
- Amanhã se eu ainda estiver aqui vamos para o atol. Lá será mais fácil pescar.
- Não podemos Danté. Não existe vida lá. Tudo morre.
- Deve ser por que o atol é muito rochoso e algum barco tenha afundado?
- Nada que pisa na ilha vive por muito tempo – insiste Hina.
- Deve ser alguma lenda ou estória de pescador?
- Pescador não contam estórias – disse Aiko estranhando o comentário.
- Não?
- Não? – confirma Hina.
- Esse mundo é bem estranho. Já não fazem pescadores como antigamente.
- Como?
- Não é nada Hina. É coisa do meu mundo. Do passado.
     Dante sabia que não haveria a menor possibilidade da plataforma existir, mas estava convencido de que estava na região certa, as baleias jubarte foram um bom indicativo, pois ele cruzava regularmente com elas no passado. Desviar da sua rota migratória seria algo pouco improvável.
- Sabe Danté – continua Hina – Não sei por que uma coisa assim acontece.
- Assim como?
- Uma ilha roubar a vida.
- Hina. Você não sabe se é verdade – disse ele com ternura – Você já foi nessa ilha?
- Não fui. Mas João e meu pai contaram que desde a época dos pais deles e dos pais dos encentrais que ninguém passa por lá. Só tem mortes.
     Dante olha para Aiko.
- Você ainda está com o mapa?
- Sim – a menina o retira de uma bolsa – Está aqui.
     O experiente capitão olha com cuidado. Ele percebe que de fato não existe nenhuma indicação de rota naval no lugar, ao contrário, existia muitas restrições e avisos.
- Mas essa lenda é muito forte. Não vamos encontrar navios.
- Eu disse – comenta Hina – Tudo que passa na ilha morre, ela puxa a vida.
     No átimo. Dante se lembra da fissura que Severo havia lhe mostrado e que certamente poderia muito bem ter se tornado naquele futuro um atol ou uma ilha. Ele fica alguns segundos com os olhos fixos no oceano e levanta-se devagar. Seus pensamentos estão em turbilhão. Ele põe as mãos na cabeça e as deixa escorregar pelos cabelos:
- Meu deus! É a câmara. Não pode ser!
- Do que está falando Danté?
     O home fica circulando pela embarcação. Depois de um tempo para e sopra.
- Se for verdade...
- Danté! Está nos assustando – falou Hina.
- Desculpe.
- Conta pra gente Danté – disse Aiko ansiosa.
     Ele se aproxima das duas e volta a sentar. Hina passa a mão em sua cabeça e lhe beija o rosto. Sua expressão é quase de desespero. Ele começa a falar.
- Não sei se vocês vão entender mas...
- Acho que não – interfere Hina – apenas nos diga como podemos lhe ajudar.
- Não podem...ninguém pode.
- Você sabe por que a ilha mata?
- Sim, eu sei.
     Passaram-se longos dez segundos até Dante tomar coragem:
- Algo deu errado. Eu achava que a experiência estava diferente mais era tudo por que alguém ainda não tinha feito e...
- Danté! O que tem na ilha? – Hina delicadamente trás o rosto de Dante com a palma da mão.
- Eu estou na ilha. Quero dizer, eu e minha...esposa. Nossos corpos de verdade.
- Ana está na ilha? – disse Aiko, no que Dante e Hina se entreolham.
- Como sabe o nome dela?
- Eu escutei você dizer. Não estava dormindo – responde a menina.
- E como você faz pra deixar os corpos? – pergunta Hina.
- Não sou eu nem a Ana é um tipo de concha. Algo parecido com dois mexilhões juntos. Estamos dormindo. Não comemos e não bebemos, a concha faz isso por nós, respira por nós e tira a vida de tudo que passa por ela só para nos manter vivos.
- Podemos lhe acordar? – pergunta Aiko com ingenuidade.
- Nem pense nisso! – disse Dante com firmeza – Ela matará vocês, sugará suas vidas! Meu Deus o que foi que houve!
     Dante abaixa a cabeça. Um tsunami de desesperos inunda a sua mente. Ele pensa em Ana e em tudo que planejaram. Lembra que já era para o fenômeno EP terminar e sua jornada te chegado ao fim.
- Então é por isso que tudo ficava escuro! É por que eu não acordava! Estava na câmara em sono profundo.
     Hina e Aiko cobriram Dante de todo o carinho que foi possível. A noite passou tão rápida e ninguém pregou os olhos com sono. Elas queriam ficar o maior tempo possível com aquele homem que conheciam tão pouco e já o amavam como se da família ele fosse.
     O sol começa a nascer e estava um lindo dia. Aos poucos o calor do astro rei se faz sentir dissipando as brumas e revelando o Atol da Morte.
- Lá está ele – disse Dante conformado e encostado numa escora do barco – Agora vocês já sabem, estarei sempre aqui.
- Eu agora tenho dois pais – disse Aiko com tanta felicidade que chegou a emocionar Dante.
- Sim pequena. Você tem. E toda vez que passar nessas águas lembre-se de mim e eu vou escutar seu coração. Hina, eu queria te agradecer por tudo e principalmente pelo seu amor. Você é uma mulher incrível. Estou feliz de está aqui com vocês e feliz também de saber que apesar da humanidade não ser mais a mesma, alguma coisa de bom ficou e, essa mesma coisa boa é que vai reconstruí-lo.
     Hina e Aiko se aproximam de Dante e cada uma beija suavemente um lado do seu rosto ao mesmo tempo.
     Dante havia partido com aquela doce lembrança. Mas antes mesmo de João de Russas despertar, uma explosão acontece atrás do barco fazendo subir jatos d’água.
- O que foi isso!
- João! – grita Hina.
     Ainda atordoado, João de Russas pega o binóculo e observa o barco:
- Itani!
- Vai afundar a gente! – grita Aiko.
- Foi um tiro de aviso – responde João de Russas – Querem que a gente pare e...para onde estamos indo! Aquilo é o Atol da Morte não é o arquipélago! Não posso ter errado a rota! Acho que estou ficando louco!
     Na verdade, João de Russas estava sentindo os efeitos do EP e muito em breve estará passando pela experiência.
- Temos que voltar!
- João! Não podemos! Ele vai nos matar do mesmo jeito! – Suplica Hina.
- Vou trocar a minha vida pela de vocês! Mas não podemos morrer todos naquela ilha!
- João na faça isso! Vamos ficar o mais próximo da ilha! Ele vai nos deixar em paz!
- Não posso fazer isso Hina! – João de Russas empurra Hina se livrando do seu braço que o agarrava com força. Ele pega dois bastões com pequenas bandeiras nas pontas e sinaliza para o inimigo que está se rendendo.
     A resposta do outro barco é uma saraivada de balas de uma potente metralhadora que atinge o deque do barco ferindo gravemente João de Russas.
- João! Grita Hina. Aiko se esconde chorando.
- Hina!
- João! Por favor, não morra!
     Os olhos do marido estão quase saltando de dor. João de Russas tenta respirar e vômitos de sangue saem de sua boa e nariz. Hina tenta segurar firme o corpo do marido, mas escorrega e tomba várias vezes na poça de sangue que se formou em baixo dele.
     O marido estirado no deque e, num último gesto, acaricia o rosto da esposa e a observa com compaixão até suas pupilas estarem fixas e dilatadas: João de Russas está morto.
     No outro barco, feliz da vida, Itani observa com o binóculo toda a cena e comemora:
- Finalmente matei aquele desgraçado! Preparem o gelo! Quero levar esse petisco para meus bichinhos! Vocês agora são homens ricos!
     A pouca tripulação se exalta em urros e gritarias.
- Meu senhor! E quanto à mulher e menina?
- Não quero testemunhas! Matem elas! Mas antes, agradem com prazer!
     O barulho no barco de Itani era tão grande que Hina e Aiko poderiam escutar.
- Demônios! – Grita Hina, que em fúria e toda suja de sangue, corre e liga o motor a toda velocidade. O barco solta uma grossa fumaça preta como se estivesse tossindo e parte em direção ao atol.
     Itani olha e não acredita:
- Mas que mulher louca!
- Meu senhor! Ela está seguindo para o atol!
- Atire nela!
     Novas rajadas de metralhadoras são lançadas.
- Mamãe! – grita Aiko – o barco tá vazando!
- Fique abaixada! – Hina coloca o barco em automático e esse segue em fuga. O motor está na carga máxima e aquecendo perigosamente.
     O barco de Itani para.
- Quem ordenou parar o barco?
- Meu senhor! Os homens não querem seguir! Elas já estão mortas mesmo.
- Eu disse para seguir! Será que duas meninas são mais corajosas que vocês?
- Meu senhor aquele é o Atol da Morte!
     Itani olha a tripulação e percebe que suas ordens não fazem sentido. Ele balança a cabeça afirmativamente e todos ficam aliviados.
- Muito bem! Deixe-as alimentarem o monstro do atol! Mas vamos ver daqui! E a comemoração é agora! Cachaça pra todos! Bebam tudo que aguentarem! Vocês além de ricos serão donos de águas, rios e terras! Serão meus governadores!
     Não há como descrever a euforia que aquela embarcação ficou. Os sonhos de poder e luxuria daqueles homens estavam se concretizando, se tornariam nobres. Itani ordenou abrir todos os barris de aguardente e de cima tombadilho jogava moedas de ouro e prata anunciando que era só o começo. O tirano desceu, bebeu com a tripulação, dançou, contou piada e abraçou um e outro como se fossem da família.
      Itani sabia que a mulher e filha de João de Russas não iriam longe. Ele escutava o motor e sabia que não iria aguentar e foi o que aconteceu. Uma espessa nuvem de fumaça saia do barco em fuga. A tripulação de Itani gargalhava insana. Hina não poderia montar a vela e a fumaça tóxica a faziam procurar o proa do barco contra o vento. Uma ruptura no compartimento da engrenagem do barco faria a água do mar entrar e afogar o motor e daria algum tempo de Hina içar a vela e se aproximar do atol.
- Pararam, devem está com medo – pensou Hina.
     Em curto tempo, Hina soltou a vela e o barco com dificuldade seguiu em frente. Itani olhava ansioso a manobra daquela mulher insistente e corajosa. Ele só pensava num jeito lento e dolorido de fazê-la morrer.
- Ela sabe de tudo. Dirá aos chineses! – pensou ele, quase falando.
     Horas depois, a tripulação de Itani estava toda no chão, alguns desacordados em coma alcoólico e outros cambaleando de um lado para outro. O tirano estava lúcido, bebeu o suficiente para enganar a todos. Ele apanhou uma arma de grosso calibre e friamente atirava em cada um. Os que estavam resistentes pediam clemência, mas, nada impedia Itani em sua ira descontrolada. Ele assassinou todos os homens que lhe serviam.
     Itani olha o barco e ver que será fácil alcança-lo. Na pressa de ligar o motor ele escorrega e machuca a perna. Grita impropérios, mas consegue se levantar e mancando, chega à casa de máquinas e liga o barco.
     Uma nova perseguição se inicia. Itani envia um sinal de socorro aberto. Ele calcula o tempo de matar Hina e sua filha, queimar o barco delas e retornar para um lugar seguro, longe do atol. Livrar-se-ia dos corpos, acusaria João de Russas e voltaria como herói.
Capítulo 6

Ecos

Bom dia Srivijaya!

     Dante aos poucos despertava de um sono tranquilo. Ele se enrosca preguiçosamente e seminu em uma confortável cama, entre macios lençóis e travesseiros de seda.
     Um cheiro suave de rosas o faz abrir os olhos. Confuso, ele não reconhece o lugar e observa o que seus olhos podem alcançar e sem mexer a cabeça. Ele sente e reconhece o toque de dedos fazendo-lhe carinhos na cabeça e cabelos. Respira profundamente e sente o corpo de uma mulher nua pressionando o seu. Ao virar-se, seu rosto encontra o de Ana. Ela dar um lindo sorriso e um brilho umedece seus olhos.
- Bom dia.
- Bom dia - responde ele, percebendo que o rosto e a pele dela nunca estiveram tão radiantes – Onde estou?
- Não lembra?
- Não. Eu deveria lembrar?
- Seria uma surpresa boa – suspira Ana - Mas lembra de mim?
- Você é inesquecível.
- Gostei da resposta – Ana o beija.
     Dante morde os lábios como se experimentasse o sabor daquele beijo.
- Com certeza, não tenho dúvidas, é a minha Ana – e ela retribui com outro sorriso encantador de dentes imaculadamente brancos.
- Vamos! Levante-se, quero lhe mostrar tudo – Ana estimula Dante a sair da cama puxando seu braço de devagar e depois cobre seu corpo com uma camisola branca de reluzente seda. E ele faz o mesmo com um roupão da mesma cor e tecido.
     Ele olha para o seu reflexo no espelho e quase não se reconhece. Ao tocar em seu rosto, se ver com a mesma idade como se lembra, mas a textura da pele está mais suave, limpa, clara e sem rugas de expressão.
     O quarto era simples mais de uma requintada decoração que misturava artesanato asiático com tendências modernas, rodeado de janelas, amplo e confortável. Havia um amanhecer lá fora e, a julgar pela luz dourada e tênue que transpassava as cortinas esvoaçantes, deveria ser um lindo e maravilhoso dia.
     Dante não gosta de andar descalço, ele acha estranho que os seus pés e os dela estavam exageradamente limpos, assim como as unhas bem aparadas e sem sinais de manchas ou desgastes. Ao pisar no rico e polido assoalho de madeira, tinha dúvidas se o mesmo era macio ou ele flutuava. Sua mente estava confusa, mas inexplicavelmente aceitava aquilo como normal.
     Uma porta de vidro corrediça, que parecia confeccionado de fino cristal, se abre esvoaçando ainda mais as delicadas cortinas que, estalavam incontidas em querer seguir o vento. O cheiro de rosas aumentou e Dante quando olhou se deslumbrou com um cenário encantador. Uma pequena descida em forma de deque, ladeado de rosas, conduzia a um pequeno cais onde se via um mar de azul turquesa que parecia querer rivalizar com um céu azul que quase imperceptível, parecia que se movia entre nuvens de cores ocres. No horizonte, uma faixa dourada de onde um luminoso sol brilha, mas sem ofuscar, anunciando uma manhã jamais vista na terra.
   Do outro lado, o que Dante imaginava ser o oeste, existia uma fonte jorrando uma límpida água e outras seis menores circundando-a. Havia também uma piscina artificial de onde não conseguiu ver o fim, pois a mesma circulava um pequeno bosque de bambus e arbustos tropicais.
   Nada daquilo fazia sentido para Dante, a não ser que estivesse sonhando. Ainda de mãos dadas, Ana o conduz para um mezanino e um mirante que fica sobe o bangalô que estavam. Eles vislumbram no horizonte, silhuetas de prédios elevados, de desenhos pontiagudos, arrojados e reluzentes. Observam que existem centenas de objetos pequenos e de formatos diferentes voando entre eles.
- Srivijaya! certo?
- Sim – responde Ana.
- O nome não é desconhecido para mim – Dante olha tudo ao redor – Diga-me: todos que moram aqui são milionários ou tem gente humilde como nós?
     Ana acha graça na falta de memória de Dante.
- Aqui a beleza e humildade são encontradas em todos os lugares. Já ouviu falar nos arquivos históricos antigos de um lugar chamado Singapura?
- Sim. Lembro-me de ter lido algo com esse nome. Mas ela não existe, foi inundada como a maioria das cidades da Terra.
- Aqui é o espelho dela. Srivijaya foi o primeiro nome do que seria conhecida depois por Singapura. Isso muito séculos antes de termos nascido.
     Dante balança a cabeça convencido da explicação, mas demonstrado um princípio de impaciência:
- Onde estamos Ana? Aqui é um sonho ou um novo ecótono paradoxo?
- Aqui é nossa casa provisória.
     Dante fecha os olhos e sacode rapidamente a cabeça para os lados numa tentativa inútil de acordar.
- Não estamos na plataforma. Onde está Severo e Elizabete?
- A passagem do EP acabou, mas a experiência não saiu como planejávamos – Uma brisa mais forte fez o cabelo de Ana esvoaçar enquanto ela falava.
- Eu sabia que algo deu errado e...espera um pouco! Hina e Aiko estão sozinhas e...
     Ana se vira e fica de frente para Dante. Num gesto rápido e suave põe a palma da mão no peito dele, fazendo sair luzes esfumaçadas de cor esverdeadas e azuis.  Ele sente um efeito relaxante.
- Respire meu amor, tudo vai ficar bem.
- Não consigo me lembrar de nada disso. Esse lugar me parece familiar, mas não me lembro de ter estado aqui.
- Um dia não lembraremos.
     Dante abre os olhos e procura a mão de Ana. As luzes se misturam nas mãos deles.
- Ana. Preciso saber o que ouve. Tudo aqui é maravilhoso, mas não me parece a realidade.
- Srivijaya é uma das muitas e antigas cidades do astral superior. É um plano dimensional bem distante da densa terra que você lembra. Está vendo aqueles pontos luminosos nos céu? Nem todas são estrelas, algumas são cidades como essa, com projeções mentais e culturais diferentes.
- Então nos morremos?
- Não aconteceu ainda.
     Ela o conduz para um banco no jardim. Dante olha para os lados e não ver ninguém.
- A verdade é que ainda estamos dormindo na cápsula. Quando entramos nele, poucos minutos depois a plataforma foi atacada por mercenários. Tudo explodiu e a câmara afundou e precipitou-se numa fissura vulcânica. Não sei quantas centenas de anos estamos desaparecidos. Se eu não estivesse conectado a você, esse nosso encontro não seria possível.
- Mas como você sabe disso?
- Uma parte fiquei sabendo aqui e outra pude acompanhar com você nas passagens dos séculos.
- Comigo?
- Sim meu querido. Quando o último EP foi concluído, sua mente e lembranças retornaram aquele ponto do tempo e ficaram presas. Tudo isso devido à outra coisa inesperada que também aconteceu: a morte de João de Russas.
- Ele morreu?
- Pouco depois de você retornar e assim, toda lembrança dos últimos 500 anos aqui em Srivijaya se perderam, não para sempre, pelo menos até os nossos corpos físicos se desintegrarem no módulo. E isso que vai acontecer se alguém não abrir e nos salvar.
- Então você viu tudo não foi? Ana eu não queria me envolver com Hina e...
     Ana põe gentilmente os dedos sob os lábios de Dante impedindo-o de continuar a falar:
- Eu sei. Já conversamos sobre isso. Está tudo bem eu entendo.
- Sério? Já conversamos?
- Sim. Não pense mais nisso.
- Certo. Mas então! – Dante demora alguns segundos e pensa em outro assunto - Por que Srivijaya? A Nação Pernambuco não existe no astral?
     Ana ilumina com mais um sorriso:
- Sim. Você mesmo ajudou a construir, mas está em planos mais densos do que estamos agora. É uma bela cidade. Nossos amigos estão vivendo por lá.
- E por que estamos aqui?
- Srivijaya é a cidade digamos...portuária para os planos mentais e dimensionais. Fomos avisados de que você perderia a memória devido à inesperada morte de João de Russas. Tecnicamente você e ele estão “mortos”. A nossa condição é especial e rara no universo. Teremos que fazer uma pequena viagem de volta ao plano terreno inicial.
- Voltaremos para casa?
- Depende o que chamaremos de casa. É certo que ao retornarmos, as minhas lembranças daqui também vão sumir, talvez as veja em sonhos. Lembrarei apenas do último instante na plataforma em que a cápsula fechou.
- E as minhas? Que lembranças ficarão?
- Acredito que todas, menos a de ter estado aqui em Srivijaya. E isso, pela segunda vez.
- O que faremos agora? Estamos presos entre os mundos.
- Algo na linha de tempo do seu último EP vai acontecer e que será determinante para o nosso retorno.
- O que seria então?
- Não me foi dito, mas é nosso passaporte.
- Passaporte? Não entendo.
- E quem não lhe disse? Não vejo ninguém por aqui.
- Estamos isolados da população.
- Não me diga.
- Mas não é o que você pensa. Não estamos sendo discriminados, mas aqui não é a cidade e plano que deveríamos está agora, é difícil explicar algo que foi você mesmo que me ensinou. O que eu estou tentando dizer é que um dia, de fato estaremos aqui. Possivelmente naquela cidade ali, interagindo com outras pessoas.
- Seria um tipo de paradoxo espiritual ou coisa assim?
    Ana sorrir novamente e salta no pescoço de Dante abraçando-o:
- Foi exatamente esse o nome que você criou quando estava aqui comigo. Seria tão bom se você lembrasse de tudo.
- Pelo menos as ocasiões em que estava com você. Quando isso vai acabar? Quando voltaremos para a nossa Terra?
- Hoje à noite. A nossa presença aqui inspirou. Temos que partir imediatamente.

Um dia feliz

     Havia muito que Ana dizer para Dante sobre aquele mundo em que eles estavam. Mas ele não queria saber de algo que esqueceria em breve e achou por bem deixar para merecer saber quando o momento chegar.
Ele propôs aproveitar o máximo a permanência naquele paraíso até a partida.
- Não podemos ir ao centro de Srivijaya, mas podemos escutar suas músicas, suas danças e experimentar suas iguarias.
- Parece que estamos numa ilha?
- É uma ilha.
- E toda ilha que se preze tem um barco certo?
- Sem dúvidas meu capitão. Tem uma escuna pronta logo abaixo daquela ladeira.
- Aceitaria um passeio senhora?
- Ficaria honrada capitão.
- Espera um pouco. Podemos velejar aqui sem que a polícia costeira de Srivijaya nos atrapalhe?
- Não há polícia de tipo algum em Srivijaya seu bobo – Ana sorrir.
- Senti sua falta.
- Eu sei.
- Então! Vamos? Quero conhecer essa escuna.
     Não demorou muito e Dante já experimentava a embarcação que deslizava com o poder da própria vontade. Alguns cardumes saltavam ao lado da escuna e pareciam fugir de um grupo de animados golfinhos.
- Quer mergulhar? – pergunta Ana.
- Podemos?
- Claro que sim! Só não conseguiremos atravessar aquele campo luminoso, ali é o nosso horizonte.
- A fronteira entre um capitão valente e sua jovem e bela mulher – Dante puxa Ana pela cintura e a beija.
- Lembra muito uma aurora boreal.
- É bonito sim. Tudo aqui é especial – Dante faz a escuna parar – Então, como vai ser nosso mergulho?

- O melhor da sua vida! – Ana tira a roupa e se lança nua em mergulho preciso. Dante feliz da vida segue atrás.
A surpresa é grande. Ele descobre que pode mergulhar a vários metros e respirar normalmente. Sente a água morna passar pelo seu corpo astral revigorando-o como ele nunca havia sentido. Os peixes e golfinhos circulam entre eles. Dante pode tocá-los e entender o que eles dizem:
- Parecem crianças!
    Um bando de gaivotas se aproxima e faz a maior algazarra. É como se a natureza animal daquele mundo o conhecesse.
- Quem foi que disse que estávamos sozinhos? – lembra Ana.
- Essas são as melhores companhias do mundo! – grita Dante.
- Você sabia que ainda não exploramos tudo nessa ilha?
- Como assim?
- Não podemos interagir com a população desse mundo, mas podemos interagir com memória natural dele. É como uma aula de história pela quarta dimensão.
- Deve ser incrível!
- Você não faz ideia. Não há tédio aqui e não sentimos o tempo.
- Não sei como o tempo dimensional funciona aqui. Mas logo será noite, tem alguma surpresa reservada para o final?
- Tenho sim.
     Rapidamente, Ana mergulha e deixa Dante nadando sozinho sob o mar azul e cintilante. De repente ela se eleva rápido sob a água puxando a mão do capitão. Ele sente o vento e os raios do por de sol atravessar seu corpo numa indescritível sensação de bem estar.
     No ar, dez metros acima d’água, eles se alinham de frente para o outro e se beijam num abraço apaixonado. Uma luz púrpura cai sobre eles e ao abrir os olhos, estão de volta ao jardim do bangalô.
     Dante está maravilhado e feliz com tudo.
- Como algo assim pode ser esquecido.
      A noite em Srivijaya chega rápido. O céu fica enegrecido e as estrelas vão aumentando seus brilhos intensamente. Agora é possível Dante identificar o que é estrela e o que é cidade. Esta última exibe um halo vibrante que gira lentamente em torno de si próprio. Estrelas cadentes passam as centenas.
- Nunca sonhei em ver algo sim. Onde esses meteoros caem?
- Não caem, aterrissam. São transportes dimensionais em rota para outras cidades. Esqueceu que aqui é um porto? O nosso chegará em breve.
- Como sabe?
- Aqui se aprende muitas coisas, você também sabia.

Entrepostos dimensionais

     No horizonte de onde se localiza a cidade, Dante e Ana observam dezenas de objetos do tamanho de aviões pequenos, voando em direção à ilha que se encontram.
- O que são aqueles objetos?
- Na verdade não são objetos, são projeções simbólicas.
    As projeções emitem formas, sons disformes, músicas curtas e trechos de vozes humanas e aplausos, se projetam e estacionam no céu exibindo diversos símbolos exotéricos, algo de muito bonito e extraordinário. Dante não conseguia mais perceber todas essas manifestações, mas Ana sim, ela sorria e girava a cabeça e o corpo com os braços abertos, estava muito feliz.
- É alguma forma de comunicação? – pergunta Dante.
- Sim. A cidade, seus clãs, representações e população estão se despedindo de nós. Desejando-nos um feliz retorno para a realidade que deixamos suspensa.
     Os objetos se dissolvem no céu. De repente, tudo fica escuro por alguns segundos. Um faixo de luz cai sobre eles e apaga. Dante e Ana não mais estão na ilha, eles se encontram num ambiente diferente. Identificam um bosque e logo depois uma área amarela de campo aberto de uma plantação de trigo. Atrás deles algumas poucas casas de campo e uma praça que lembra muito as encontradas em cidades de interior. Observam vultos e silhuetas de pessoas, mas não conseguem identifica-las, elas tinham alturas e formas diferentes. Um homem aparentado sadhus, os chamados “homens santos” da Índia se aproximam deles com melhor nitidez e aponta um caminho para onde seguir. Ao caminharem por uma estrada de terra e passando por uma pequena restinga, vislumbram um oceano e no alto de uma escarpa um belíssimo farol sinalizando com feixes de luzes. Tudo volta a ficar escuro e, no mesmo segundo, um sol dourado de intensa luz se faz surgir rápido no horizonte. A frente daquele sol, uma silhueta de um ser humanoide de aproximadamente 3 metros que estava sob um monte de areia na praia se eleva e lentamente abre os longos braços a saudar aquela luz.
     Dante e Ana se abraçam com tamanha beleza diante daquele mistério, sentem um pouco de medo. Um halo se forma de dentro do sol e se projeta para frente, de onde sai um objeto voador oval que afunilava na cauda projetando um pequeno rastro luminoso e que se aproximava do litoral. O objeto, maior do que se imaginava a distancia, aterrissou no que acharam que fosse a orla de uma praia.
- É um dos transportes que você falou? – pergunta Dante.
- Sim. É uma espuma. A mais linda e emblemática de todas as endonaves. Mas nunca vi um desses tão perto.
- Uma que?
     Objeto lembrava um gameta masculino, mas sem o longo flagelo, tinha o tamanho e altura de uma casa média. Sua estrutura sem dúvida era de madrepérola branco e reluzente como a cápsula em que seus corpos dormiam em suspensão e isso chamou a atenção de Dante.
- É o mesmo material?
- Está ficando interessante. Será que tem alguma conexão?
     Uma projeção de rampa começa a sair do objeto e na frente deles um ser humanoide se aproxima com um andar elegante e vestimentas longas e nobres. Parecia com um representante da raça humana se não fosse a altura e os longos braços e mãos. Era magro e proporcional. Sua pele era de um marrom claro, não tinha pelos e alguns momentos tinha um brilho plástico. A cabeça sem cabelos não era grande, ao contrário dos olhos arqueados de cor azul com pontinhos brancos. Um ser bonito para o padrão de onde ele vinha.
     Com gestos, o humanoide se aproxima e faz uma pequena reverência. Sua voz é masculina, bem articulada, educada, grave e polida.
- Sejam bem-vindos.
- Obrigado – respondem quase ao mesmo tempo.
     O ser humanoide fica em silencio, olhando para o casal com tanto interesse que parecia estar absorvido em pensamentos felizes. Sua cabeça se movimentava de um lado para outro como se avaliasse ou procurasse alguma coisa neles.
- Está tudo bem? – perguntou Dante.
- Sim – responde ele erguendo a cabeça – eu sou o condutor.
- Prazer condutor – disse Ana com simpatia.
      O condutor passa a olhar Ana com uma simpatia que poderia dizer que era membro da família.
- Queiram entrar. Essa é um nave de viagens dimensionais conhecidas como Espumas.
- Um nome curioso – disse Dante testando o bom humor do condutor.
- Gosta de nomes? – pergunta ele se formalidades.
- Se eu tiver uma oportunidade, arrisco em criar um.
- Terá essa oportunidade – responde o condutor discretamente – seguindo por último e fechando o objeto.
     Dante e Ana ficam entusiasmados com o interior daquele inusitado transporte. Tudo dentro era imaculadamente branco e brilhante, mas no momento em que se ergue e voa tudo fica diferente. É possível interagir com a nave de forma surpreendente.
- Meu deus! – Dante se espanta – Ana você está aí?
- Sim. Posso escutar você. Mas não o vejo.
- O que você ver?
- O oceano, o horizonte, o céu e acredite até o litoral. Eu vejo e sinto tudo ao meu redor.
- Eu também. Condutor! Ainda está conosco?
- Agora, mais do que nunca. A experiência em viajar com espumas é uma das mais raras no universo. Vocês precisam se concentrar na viagem e manterem a calma e total confiança em mim. Vocês têm?
- Sim – respondem ao mesmo tempo.
- Isso é bom. Muito bom. Estamos conectados a nave e ela a nós. Vamos entrar na órbita de salto dimensional para o mundo mental.
- O que faremos? – pergunta Dante.
- Sentirão um pouco de frio e experimentarão uma ventania, é normal nessas regiões de fronteira. Cruzaremos o primeiro entreposto e vocês terão que fazer um primeiro escambo consciente?
- Escambo?
- Sim Dante. Existe um tributo de intenções a ser “pago” ou apresentado para a Espuma ter permissão em deslizar entre as dimensões.
- Eu não trouxe minha carteira. Poderia me emprestar algum?
     Dante conseguiu sentir uma alegria diferente em seu íntimo, algo de Ana e do condutor.
- Você está rindo?
- Apresente essa lembrança assim que nos for solicitado a passagem.
- Como é?
     Ana já vivia há muito tempo no mundo astral e entendia o que o condutor queria dizer, apesar de nunca ter praticado.
- Dante. O que ele quer dizer é que o escambo é feito de lembranças e sentimentos, frutos das inúmeras existências planetárias vividas por nós. A moeda nessas paragens dimensionais é a emoção.
- Entendi. E quanto tem em nossa conta bancária? Condutor! Essa viagem não vai sair caro vai?
     O condutor explica:
- Um pouco, uma vez que deixei o tributo das travessias para serem pagas exclusivamente pelos passageiros.
- Essa não – disse Dante.
- Posso garantir que a fortuna que carregam precisaria de centenas de camelos. Isso para uma caravana no deserto só com nós três – explica o condutor.
- Onde você viu camelos?
     A nave dar um solavanco e se precipita como um avião caindo num vácuo.
- Minha nossa! – Dante respira – O que houve condutor?
- Olhe a sua frente.
     Dante e Ana observam um horizonte de variadas tonalidades de azul e branco e uma luminosa estrela que aos poucos se torna uma bela cidade.
- É incrível! Parece um oceano suspenso – surpreende-se Dante.
- Vamos descer? – pergunta Ana, ao condutor.
- Não desceremos em nenhum entreposto. Nosso destino final é a Terra.
- Então. Não estaríamos assim, por engano, seguindo pelo “lado” errado?
     O condutor silencia um pouco.
- Quer dizer. É claro que você é o condutor e sabe bem o caminho e...
- Seu ponto de orientação não está errado Ana. De fato, se consideramos que seja apenas uma questão ao padrão humano de percepções. Estão acostumados ao plano em três dimensões o que tornaria tudo mais simples.
- E não seria? – pergunta Dante.
- Estamos deslizando entre as dimensões. Penetrar nas camadas astrais nos causaria um desgaste além do necessário para o nosso propósito.
- Você disse: causaria a nós? Você também seria afetado?
- Ao entrar nesses planos iremos afetar a Espuma. E tudo que afeta essa nave nos afeta. Ela tem de ser poupada para a missão final.
     Ana observa milhares de luzes circundando a cidade.
- O que são aquilo condutor?
- São os recém-chegados do plano astral. Estão em formação de espera no entreposto oferecendo suas credencias e riquezas de experiências. Estão aqui por merecimento e foi uma longa e, por que não dizer, quase eterna jornada. Assim como nós, saíram de uma fagulha de criação divina até chegar aqui.
- Devem estar felizes – comenta Ana.
- Chegaram onde deveriam?
- Não Dante – responde Ana – Estão na metade do caminho. E isso é muita coisa. Eles têm todos os motivos para estarem felizes. Passando aquele entreposto, encontrarão os mundos felizes.
- Não se trata apenas de chegar ao fim do caminho e sim o reconhecer quando chegar – completa o condutor.
- Falta muito para você?
- Sim Dante. Ainda tenho missões em realizar.
- Missões? Algo divino?
- Tudo é divino. Mas algumas missões nos são favorecidas em escolher. O meu livre arbítrio me orienta em colaborar com povos dos mundos planetários.
- E como seria?
- No que for preciso. Muitos de nós chegamos para inspirar a ciência e tecnologia, uma cultura mais igualitária e até o amor. Fazendo isso, deixaremos esses povos em condições de ajudar outros que precisam e assim movimentamos a dinâmica das experiências.
- E sabemos agora que elas são importantes – completa Ana.
- Prestaremos contas ou seria o julgamento dos méritos...algo assim?
- Do que está falando Dante? – pergunta Ana.
- Algo em livros religiosos que li quando criança. Apenas tracei um paralelo muito curioso sobre o que o condutor falou.
- É isso que a Espuma faz, viaja entre as dimensões, mas é única para casos raros – disse o condutor.
- E qual seria essa raridade?
- A espuma transporta seres confinados em circunstâncias também raras no que vocês chamam de ecótono paradoxo.
- Não acredito. Voltamos para ele, já estava esquecido – Comenta Dante.
- Entendo sua angústia Dante – tranquiliza o condutor – Mas em breve tudo fará sentido.
- Retornaremos para a Terra?
- Estamos nos dirigindo para ela.
     Um novo solavanco e a nave se desloca para o que seria um mundo totalmente branco e num segundo, volta formar um túnel multicolorido.
- Saímos? – pergunta Ana.
     O condutor expressa o sentimento que confirma.
- Não vi o entreposto e não oferecemos as lembranças – avisa Dante.
- Oferecemos sim e até mais do que isso durante a nossa curta conversa. Como eu disse, precisávamos apenas de um primeiro escambo consciente. Mas nosso caminho ainda não é por aqui.

Angelus

     A nave Espuma entra na órbita de outra dimensão e chama atenção de Dante e Ana.
- Chegamos ao último entreposto – revela o condutor.
- Último? – falou Dante – Essas nuvens e o céu brilhante?
- Estamos no Angelus – explica o condutor – na fronteira que nos conduzirá a Terra.
- Estamos no céu dos anjos?
- Sim Dante – responde Ana – Mas não os vemos. Toda essa paisagem celestial é um reflexo de lembranças.
- Eles gostam das formas como os humanos pensam neles – comenta o condutor.
- Eles podem nos ver?
- Sim. E o interessante é com limitações, à distância.
- E como eles nos enxergam?
- Como estrelas cadentes. Eles sabem que as naves Espumas passam por aqui e eles festejam com uma alegria que o nosso emocional não suportaria.
- Então? Ainda temos nossas “moedas de ouro” – lembra Dante ao condutor.
- Guarde-as. Dessa vez eu faço questão de pagar – responde ele.

     O pensamento do condutor é percebido em toda a sua sutileza. A sua voz se torna vibrante e uma mensagem é dita:
“Quando a tristeza se traduz nos olhos dos outros e se reflete tão impotente em reagir à dor, as adversidades e ao mau cheiro que vem de nossas falhas e imperfeições, vemos como se fosse um capuz a cobrir a cabeça, revelando o que há sombrio e sem luz. Ao contrário disso, tão grande seria esse olhar se fosse livre e treinado exclusivamente para enxergar o belo, o indivisível e vislumbrar o futuro que vem após o sorriso leve e tranquilo de quem vive e ama simplesmente pelo prazer da plenitude e do bem. Esse sopro divino é percebido e chega a nossa alma como se fosse um vento a atravessar nosso corpo e nele deixar as mais incríveis impressões, regando as sementes de outros sentimentos que espera o tempo certo para germinar.
Apesar da liberdade da jornada, das atraentes paisagens e possibilidades, sempre e no mínimo, haverá dois caminhos básicos a seguir pelo farol e poder da nossa vontade: o que vai te levar onde dever chegar ou o que te vai fazer andar em círculos.  O primeiro caminho te revelará a coragem oculta e a linha de chegada e o outro, apenas a certeza de que continuas perdido a procurar o primeiro.”
     Dante e Ana percebem que a moeda do condutor foi o amor e que nessa parte da dimensão, mais perto da Terra, era exatamente de onde os anjos se precipitavam sobre os mundos.
- Entraremos agora na terceira dimensão e ultrapassaremos diversos planos astrais e literalmente cairemos na Terra – Avisa o condutor com uma voz branda e saudosa.
     A nave Espuma entra no que seria a atmosfera do Planeta Terra e todos sentem os efeitos. A sutil estrutura começa a se fragmentar e o condutor recomenda voltar à condição de passageiro. Ana e Dante voltam a se ver normalmente e procuram o condutor.
- Condutor? Ainda está conosco?
- Sim Ana.
- Por que não aparece?
- Minha forma não é mais a que vocês conheceram e não vou precisar do antigo corpo nem dessa nave.
- Não entendo. Você disse que teria uma missão, como vai fazer sem corpo e sem a nave? – pergunta Dante.
- A nave seguirá seu destino e encontrará a cápsula onde vocês adormecem. A espuma se dissolverá nesse processo. A minha missão é na Terra com vocês e aqui é a minha breve despedida. Não se preocupem, ficarão bem.
- E aonde você vai está? – pergunta Dante – Nós nem sabemos o seu nome?
     O condutor faz alguns segundos de silêncio:
- A Espuma só pode conduzir quem habita as cápsulas. Ana sabe onde estou. Ela tem algo a lhe contar que agora vai ser permitido lembrar. E o meu nome? Tenho certeza que você vai encontrar um que me sirva bem. Até breve e obrigado pela oportunidade.
     O silêncio volta.
- Ele se foi – disse Ana pondo a mão no ventre.
- O que você tinha para me dizer?
- Eu...eu... não lembrava – Ana tenta falar quase se engasgando em emoção. As lágrimas se misturavam a um sorriso que Dante não entendia a razão.
- O que não lembrava? – ele segura a mão dela e a consola.
- Estou grávida. Era isso que ele queria dizer. O condutor estava aqui o tempo todo – disse Ana alisando gentilmente o ventre.
- Grávida?
-Sim. A Dra. Elizabete pediu para não te contar até a experiência ser concluída.
- Meu deus! O condutor ou sua essência, não sei o que dizer...vai ser...
     Ana balança a cabeça afirmativamente e sorrindo:
- Sim Dante! É o nosso filho.
- Então não era apenas eu e você que estava na cápsula, era a nossa família. Mas eu não entendo?
     Ainda cheia de emoção, Ana abraça Dante:
- Não precisamos entender meu querido, apenas sentir o amor e a oportunidade de viver essa grande aventura. O amor é que nos liga a vida, aos propósitos, as lembranças, as dimensões, ao universo e ao todo.
- Esqueceremos tudo isso não é? – pergunta Dante com um semblante triste.
- Sim. Quando acordarmos seja lá onde for. Mas depois precisaremos lembrar. Esqueceu-se do escambo? Precisaremos de lembranças na mochila.
- E de camelos! Onde foi que ele tirou isso?
     Dante e Ana se abraçam mais uma vez e começam a sorrir contagiados com uma alegria indescritível.
- Lembra que te falei na plataforma da possibilidade de conhecermos um descendente? – pergunta Ana.
- Lembro sim.
- O conhecemos de todas as formas possíveis. Ele será nosso presente, nosso futuro e algo extraordinário além do tempo. Ele nos conduziu para que nós o conduzamos em realizar a sua missão.
     Eles ficam em silêncio.
     A velocidade da nave diminui a velocidade e os despertam dos pensamentos. Os estalos que escutavam no casco da nave na reentrada da atmosfera da Terra haviam parado. Eles não estão mais em queda. Observam atentamente a paisagem e reconhecem o que seria o Oceano Atlântico. Dante imediatamente confirma como a invasão das águas aumentou durante os séculos.
- Não estamos retornando ao nosso tempo – diz ele.
- Como sabe?
- Aquele atol. É lá onde estamos dormindo. Vamos para a época em que experimentei o ecótono paradoxo.
- A época que nossos corpos esperam acordar – comenta Ana.
- Ficaremos confusos – disse ele – Mas vamos sobreviver.
- Tem alguém correndo lá em baixo, é uma mulher?
- É Hina! Ela mergulhou no lago!
- É onde estamos Dante! Ela sabe que estamos lá?
- Sim! Eu disse para ela.
- Veja! Outro barco chegou!
- Não pode ser! É Itani!
     Os corpos de Dante e Ana flutuam no interior da nave. Eles sentem um sono profundo e suas respirações aumentam. Os últimos vislumbres que eles têm é ver a nave se dissolvendo em brancas chamas e um som de mergulho na água.

Capítulo 7

O sacrifício

     O barco onde Hina e Aiko fogem está parando. O motor não aguentou a pressão do esforço e as velas furadas de balas se rasgam cada vez mais com o estalar dos ventos.
     As correntes marinhas jogam o barco para cima de uma barreira de corais e encalha.
- Mãe. Estou com sono – reclama Aiko.
     Hina põe a mão na testa da filha. Ela arde em febre.
- Venha minha criança.
     Carinhosamente, Hina leva a filha para um compartimento sombreado do barco, resfria sua cabeça e a deixa confortável. A garota abre os olhos.
- Mãe.
- Você vai ficar bem.
- Para onde vai?
     Hina olha com benevolência e ao mesmo tempo com tristeza para filha:
- Aiko. Seu pai está morto e Itani não pode saber que você está aqui escondida. Em algum lugar nessa ilha o corpo de Danté está dormindo e ele precisa ser acordado. Ele é a nossa única esperança de vida.
- Mãe não vá! – a pequena Aiko estende a mão chorando.
- Filha. Preciso que tenha coragem. Você não gostaria de ver Danté como ele é? Abraçá-lo de novo?
- Ele pode ser meu papai? – pergunta ela docilmente.
- Seu pai é Joao de Russas e nunca se esqueça disso, mas ele pode ser um bom amigo. Pode ser o seu padrinho de coração.
- Como Kazuo?
- Sim filha. Como Kazuo – Hina não poderia confirmar que seu padrinho também havia morrido. Ela levanta a cabeça e ver o barco de Itani se aproximando.
- Sempre te amarei minha filha. Nunca se esqueça de mim. Se você ficar quieta e abaixada. Itani não vai lhe pegar.
     Hina beija a filha e vai para o lado do barco para ser vista por Itani. Ele ver a mulher mergulhando na água e nadando até a margem do atol.
- Que mulher louca! Aquele barco está encalhado e ela corre pela vida! Vai ser uma boa caçada!
     Enlouquecido pela persistência, Itani acelera ainda mais o barco, mas passa longe de onde Aiko se esconde, pois a sua embarcação correria o mesmo risco de encalhar. Ele não ver a menina e nem se interessa por isso.
- Se não morreu, vai morrer de todo jeito.
     Ao se aproximar da margem do atol, Itani observa o sangue dos seus homens volatizando e esfumaçando pelo passadiço do barco. Sente um mal estar súbito quando põe os pés no atol:
- Esse atol maldito! Não vai me vencer enquanto eu acabar com aquela mulher!
     Ele ver Hina correndo com dificuldades, ela mesma não sabe para onde vai e sente a morte lhe sugar as forças. Ao olhar para cima, ver três pequenas luzes cair sob um lago a duzentos metros a sua frente.
- Danté!
   Ela reúne todas as forças e ao chegar numa pedra alta, salta sobre o lago. Um tiro acerta seu quadril ainda no ar, mas não diminui sua coragem. Hina mergulha cada vez mais fundo e encontra a cápsula de brilhante madrepérola. A simples visão lhe dar mais alegria e certeza que pode salvar o homem que aprendeu a amar.
    Ao se aproximar da cápsula e quase lhe faltando o ar, sente-se violentamente atraída e seus braços envolve uma das câmaras. Seu tórax e rosto estão colados e ela não tem mais ar e nem consegue se desvencilhar. Enquanto ela reabre os olhos de desespero em imaginar que não vai conseguir, a cápsula começa a se deslocar com ela para cima. Ao atingir a superfície, flutua sob a tona d’água e vai para a outra margem do pequeno lago.
     Hina volta a respirar com dificuldade, está fraca e não consegue se mexer.
     Mas nenhuma fraqueza no mundo é suficiente para apagar o leve sorriso que ela esboça ao ver a cápsula abrir e encontrar Dante e Ana despertando e saindo dela. Seus corpos estão intactos e até mais jovens e saudáveis do que quando entraram.
     Imediatamente, Dante abraça Ana e não percebe a presença de Hina que caiu ao lado. Mas Ana a encontra, e mesmo confusa, sem saber onde está ou que aconteceu vai socorrer Hina.
- Dante! Tem alguém aqui. Uma mulher! Está sagrando.
- Meu deus é Hina!– Ele se levanta e corre para abraça-la.
- Danté – diz ela num sopro de vida. Seu corpo estava desfalecido e desidratado, seus olhos fundos, mas com um brilho só comparado as estrelas – Achei você.
- Sim Hina. Você me achou, obrigado.
     Hina levanta a mão e pela última vez, assim como João de Russas fez com ela, repetiu o gesto passando a mão em seu rosto e dizendo as últimas palavras:
- Aiko. Cuide de Aiko.
- Cuidarei – responde Dante. Ana o acaricia e se compadece.
- Quem é ela? Onde estamos?
- É um longa história, mas antes, temos que achar a menina e...
    Eles se abaixam. Um tiro de raspão quase atinge Ana.
- Quem é esse louco!
- Itani!
     Outro tiro é disparado e eles se protegem atrás da cápsula.
- Hina! Saia detrás desse monstro! – Grita Itani que já tinha dado a volta no lago.
- O que vamos fazer? – pergunta Ana aflita – Ele tem uma arma!
     Dante não sabia em que pensar, mas quando olha para a sua câmara ver algo conhecido por trás da cabeceira.
- Não pode ser!
     Ele se arrisca e pega rápido um cilindro parecido com alumínio. Dentro encontra uma garrafa PET com uma placa de acrílico com a seguinte mensagem:
“Tem uma arma carregada embaixo do assento, use-a em caso de emergência. Caso não precise, você sabe o que deve fazer. Abraço do seu eterno amigo. Severo”
    Sem perder tempo e sob o olhar espantado de Ana, Dante se levanta e dispara tiros certeiros em Itani que se contorce com os impactos.
- Acabou seus dias seu maldito!
     O corpo de Itani fica enrijecido e aos pouco vai se deteriorando. Seu rosto começa a desfigurar em dor e fluídos escorrem dos seus olhos. Ossos, carnes, vísceras, tudo se desmancha e mistura-se na beira d’água do lago.
     Dante olha para a arma assustado, não lembrava o que ela fazia. Por um momento se compadece do inimigo e pensou que era uma morte terrível até para um desumano como Itani. Sem hesitar ele aperta um dispositivo que Severo havia lhe ensinado anteriormente e a arma também se dissolve.
- Ela não pertence a esse tempo – pensa ele que rapidamente vira o rosto em direção a Ana e corre para abraçá-la.
- Meu amor!
- Estou confusa.
- Você está bem?
- Sim. Mas sinto que estou diferente e...você – ela alisa o rosto de Dante – está mais jovem.
- Você também, mas não se preocupe, continua linda do mesmo jeito – sorrir.
- Aquela mulher, Hina não é?
- Sim. Uma grande amiga que me ajudou muito durante o EP. Ela nos encontrou e nos salvou. Agora precisamos encontrar Aiko, sua filha.
     Ana estava dispersa em pensamentos:
- Você está bem? Sente alguma coisa?
- Lembro que Elizabete havia dito que o namorado dela havia morrido em tentar salvá-la. Agora sei o que aconteceu. Essa coisa exigiu um sacrifício. A vida dessa mulher, a Hina, fez despertar nossos corpos.
- Foi um gesto de amor – disse Dante baixinho.
- Como?
- Ela amava alguém que habitava o corpo do marido.
- Não era feliz?
- De um jeito ou de outro sim. Mas acho que meu jeito de ser e lidar com as mulheres chamou atenção dela.
     Ana balança a cabeça e levanta as sobrancelhas:
- Você lembra-se dos estágios do EP não é?
- De todos. E você? Do que se lembra?
- Elizabete acionando o fechamento da cápsula e um pequeno arrependimento.
- Não entendi.
- Dante. Na última vez que fui consultar Elizabete ela descobriu algo e me pediu para não te falar até a conclusão das experiências.
- E o que foi?
- Estou grávida. Vamos ter um filho.
     Dante abre um grande sorriso e abraça Ana.
- Um filho!
     Nesse instante o corpo de Hina se transforma em névoa e une-se a cápsula que acende como uma lâmpada incandescente,  se desintegra e começa a liberar centenas de chamas azuis que se sobem rápidas para o céu. Dante e Ana ficam admirados. Não conseguem entender a complexidade da experiência que passaram. Em seguida, os animais começam a visitar o atol. Não existem mais ameaças. Centenas de aves marinhas de várias espécies voam sobre eles e peixes, crustáceos e moluscos começam a entrar por um córrego de água salgada para dentro do lago.
- O que será que aconteceu? – pergunta ela.
- Acho que agora não é mais um atol da morte – suspira ele – o que sei é que estamos 500 anos além do nosso tempo e eu tenho uma família para sustentar.
- Meu deus! Atol da morte? Será que conseguirei viver nessa época? Você sabe algo importante? – disse Ana visivelmente assustada.
- Além de que o oceano avançou mais do que imaginávamos e que o mundo é dominado por chineses e japoneses. Não. Vamos ter que descobrir juntos.
- Chineses e japoneses dominarem o mundo? Para mim não é novidade – comenta Ana, olhando para o céu e curiosa em saber como ficou os audaciosos projetos lunares – sempre achei que isso aconteceria.
      Depois de um tempo se recuperando, Ana se apoia em Dante para se levantar e seguem para a praia. Ao chegarem, eles observam o barco de Itani vazio e mais adiante na barreira de corais, o barco adernando onde certamente Aiko estava.
     Com muita habilidade e ajuda de Ana, Dante consegue fazer o barco de Itani funcionar e conseguem resgatar a filha de Hina com segurança. Ela estava descordada. Dante a coloca a menina colo e acaricia seu rosto. E com um tecido limpo umedece seus lábios e testa com água fresca que coletaram no atol. Ela abre os olhos, bebe um pouco da água e logo fica mais esperta. Delicadamente Aiko alisa o rosto dele.
- Danté?
     Ele sorrir e confirma balançando a cabeça:
- Aiko.
     A menina sorrir e o abraça demonstrando comovente gratidão.
- Aiko. Você sabe quem é ela? – ele fala nihongo com dificuldade, não se encontra mais em estágio EP. A menina percebe o sotaque que ela tanto achava graça e que agora lhe dava a certeza que era Dante.
- Ana – responde ela timidamente.
- Você me conhece menina linda? – Ana se aproxima e fala com fluência.
- Minha mãe se despediu de mim. Ela se foi?
     Dante olha para menina com olhos marejados de emoção.
- Sim.
- Foi para o céu?
- Sim minha menina. Foi para o céu. Eu mesmo a vi.
     Aiko se levanta e olha para Dante esperando uma confirmação:
- Você agora é meu papai?
     Dante olha para Ana que já está se derretendo de amores pela aquela criança linda com feições nipônicas.
- Sim Aiko. Eu agora sou seu pai e ela a sua mãe. Você aceita?
     A menina sorrir e corre para abraçar Ana e esse momento é interrompido com um grande susto. Dezenas de baleias jubarte passam catando próximos a eles, suspirando e esguichando água dos orifícios dorsais. Cardumes de peixes e camarões saltam sob a água atraindo mais gaivotas e curioso grupo de golfinhos observam o casal.
- Essa ilha – disse Ana em voz baixa – É tão familiar. Não sei explicar o que sinto.
- Na verdade é um atol – corrige Dante - E se chama agora Atol da Vida.
- É um belo nome.
- Sente algo estranho?
- Não sei. Esse lugar, a luz do pôr-do-sol e os animais. Lembrei-me de algo ou sensação boa – confessa Ana.
     Dante coloca Aiko no braço e a mão sobre o ombro de Ana.
- Quem sabe um dia a gente possa lembrar ou criar lembranças. Podemos voltar aqui outras vezes.
     Uma transmissão de rádio em língua chinesa é escutada.
- É chinês. Não sei falar nada.
- Eu sei – adianta Ana.
- Muito bem! – Dante passa instruções – Peça socorro e diga-lhe que estamos duas milhas náuticas ao norte do Atol da Morte.
    A transmissão é recebida e respondida.
- Pergunta quem somos.
- Diga que somos um casal amigo de João de Russas. Informe que ele e a esposa foram assassinados por Itani e que a filha está viva. Avise que temos uma mensagem importante que pode acabar com a guerra.
- Guerra? – Ana fala baixo espantada.
- Sim! Apenas repita. Explicarei tudo – responde ele no mesmo tom.
     Os chineses recebem a mensagem e avisam que haverá resgate. Dante sabia que seria o tempo certo para avançar o barco até o ponto recomendado.
     Durante a curta viagem, Dante explica para Ana tudo o que vivenciou no EP. A pequena Aiko não entendia nada de português e achava tudo engraçado naquela língua e sotaque diferentes. Uma frota de navios de guerra chinesa localiza o barco e eles são finalmente resgatados. Ana explica para o comandante tudo que Hina havia dito para Dante sobre a história de João de Russas e a conspiração planejada por Itani para acirrar os ânimos entre as duas nações.
     Dias depois eles chegam ao Arquipélago das Russas e lá permanecem durante alguns meses até finalmente o conflito mundial acabar. Tempos depois a paz volta a reinar na Terra e as grandes principais nações se unem para salvar outras culturas.
    Ao retornarem a vila dos manguezais, Aiko corre e abraça o avô. Dante e Ana se detêm em explicar para Tatsuo o que aconteceu com a filha e o genro. O ancião sofre com a notícia, mas fica aliviado em saber que sua querida filha e João de Russas se tornaram heróis e seus nomes serão zelados pela história. Ele os abençoa e concorda que Aiko seja criada pelos novos pais e amigos de Hina.
     O governo sino-nipônico unido descobre as habilidades de Dante e Ana e os convidam com honras para ajudar na reconstrução do mundo. Eles nunca revelaram suas origens e o fenômeno EP. O governo também devolve toda a fortuna encontrada e confiscada no barco de Itani, mas eles não aceitam ficar e doaram para construção e manutenção de uma nova vila para o povo do manguezal. Eles aceitam a proposta de reconstruir o mundo. E assim, seus conhecimentos são divulgados, aplicados e bem sucedidos em todas as sociedades, tornando-os muito famosos e queridos, principalmente em uma pequena e rara colônia que ainda falava e preservava a língua portuguesa.
     Ana dar a luz a um menino. E Dante lhe dar o nome de Severo Wolf Avaré. Ele homenageia o amigo que lhe salvou a vida e a família. Posteriormente ele foi pai novamente de uma menina e Ana deu-lhe o nome de Elizabete.  O pequeno Severo cresceu feliz com a irmãzinha e sempre com a supervisão e proteção de Aiko, a “irmã” mais velha.
     Com o passar dos anos, o mundo começa a compartilhar de fato os primeiros resultados de uma nova civilização.
     Aos 30 anos, Aiko se torna a primeira mulher a comandar um navio mercante. A sua beleza, coragem e habilidade se tornaram uma lenda e inspirou outras mulheres que se destacavam cada vez mais em muitas profissões. Ela navegou com o seu navio chamado João de Russas por todos os continentes da Terra. Aiko teria deixado seus pais muito orgulhosos. Ela foi a principal incentivadora de um antigo desejo do seu irmão Severo em fazer prosperar um antigo e resumido núcleo de remanescentes árabes em desertos do que foi o antigo norte da África no passado. Ele vive muitos anos com esses povos, estuda seus hábitos e linguagens e com a ajuda da mãe, tem grande sucesso com a reprodução de camelos, evitando a extinção deles. Anos depois estimulou o retorno de caravanas comerciais entre as pequenas vilas e cidades do deserto. A prática desse hábito trouxe conforto e prosperidade para a região. Ao tornar-se embaixador global, ele teve esse e importantes trabalhos reconhecidos e foi aclamado e ovacionado com o nome de Condutor da Paz. Casou-se com uma bela mulher de origem indiana e teve com ela vários filhos. No futuro, seus descendentes migrariam para uma região da antiga Península Malaia, no Sudeste Asiático, onde uma nova cidade-estado chamada de Singapura seria reconstruída. Duas vezes por ano, Severo visitava a família.
     Ao seu tempo, com o retorno dos aviões a cruzar os céus, Aiko se despede da marinha mercante e decide investir em barcos pesqueiros. Queria uma vida mais sossegada depois que conheceu seu grande amor numa colônia holandesa e criar sua filha que, mantendo a tradição, se chamava Hina. Eles passavam todo o verão na próspera vila do mangue. Na mesma estação, Dante e Ana também gostavam de ficar no Atol da Vida, que foi lhes dado de presente pelo governo unido. Foi nesse ambiente paradisíaco que eles construíram um aconchegante bangalô e viveram até o limite da senilidade. A filha Elizabete nunca se casou, nem teve filhos. Mas todos sabiam de um romance secreto que ela mantinha há anos com um garboso e solteirão oficial da marinha. Ela sempre acompanhou e cuidou dos pais. E quando eles se foram, aceitou as honras em assumir a liderança do governo mundial.
     Em tempo algum e durante toda a vida, Dante e Ana nunca souberam ou ouviram falar de nada ou qualquer coisa que se assemelhasse ao ecótono paradoxo.

Fim