quarta-feira, 17 de julho de 2019


O livro Os Humarantes, é uma compilação de três episódios âncoras independentes e complementares:

            Episódio II - A Revelação (4 capítulos) (2011/2012)

     Este episódio se apresenta como um importante elo na construção dos mistérios, que aos poucos vão sendo revelados mediante uma série de eventos temporais. Conta a história de um povo extraterrestre, de vida simples e que faz uso de tecnologia rudimentar para sobreviver. Não obstante as suas limitações, a cultura desse povo está diretamente associada a antigas lendas, que se referem as suas prováveis origens e transmitida por gerações de forma oral e pictográficas. O personagem principal é achado desmaiado em uma planície freqüentada por caçadores e coletores de sementes e frutos. Ele é reconhecido pelos anciões como um mensageiro de um clã vizinho e experimenta o drama de ter perdido a memória. Uma conspiração que envolve seres de aparência humana e intimamente ligados a uma antiga cultura do Planeta Terra, se esforçam contra o tempo para evitar que ele e seu povo sejam mortos. Os anciões decidem pedir a ajuda de um velho e enigmático eremita que vive no alto das montanhas geladas e com a participação de outros três personagens, conseguem, com coragem e humor, enfrentar desafios e selar uma amizade que será novamente vivenciada numa futura existência.

Episódio II

A REVELAÇÃO



Capítulo 1



O MENSAGEIRO





     Ainda não havia alvorada, quando os primeiros agricultores da aldeia dos manasis iniciavam as suas tarefas de colheita no Vale do Sial, região com terras generosamente férteis, cercada de rios e grandes lagos. A maioria dos habitantes se encontrava dormindo no aconchego dos seus lares, abrigos rústicos construídos basicamente de pedras porosas e rejuntados com uma combinação de argilas especiais. Os manasis vivem exclusivamente para a sua subsistência, coletando víveres e frutos. Constroem armadilhas para caçar e pescar. Fazem uso de ferramentas rústicas para cultivar grãos e ervas.

     Além de hábeis artesãos, os manasis possuem uma rica cultura baseada em antigas histórias e lendas, que são transmitidas oralmente de geração em geração, mediante uma linguagem complexa e repleta de significados que são traduzidos por ilustrações bem elaboradas, não possuindo linguagem escrita. Os manasis dividem, com outras dezenas de povos culturalmente similares, um planeta de pequenas dimensões chamado de Gir, o único habitável de um sistema solar composto por mais seis planetas, todos relativamente próximos e, vistos no céu durante o dia e a noite.

     O Planeta Gir e outras centenas de sistemas solares localizam-se numa região periférica que integra os domínios da Federação Áxis. Foi parcialmente estudado pelos primeiros cientistas, centenas de anos antes da formação da própria federação, que o classificaram como reserva planetária. Os mundos dessa natureza e que não possuíam nenhuma civilização nativa, permaneciam isolados por longos períodos e só poderiam ser revisitados durante poucas semanas a cada 500 anos.

     Por se encontrar muito distante dos principais centros de civilização, o Planeta Gir, assim como outros, também estava fora das rotas das naves espaciais. Pouco tempo depois da criação da federação, estações de observações foram construídas, entre outros objetivos, para monitorar a violação desses quadrantes.

     Desde a sua última visita, a Federação Áxis nunca soube da existência de seres conscientes que viviam em sociedade no Planeta Gir, assim como, nunca detectou a aproximação de naves não autorizadas em centenas de anos.

     A federação é poderosa e antiga. Representa a união de mais de 50 civilizações desenvolvidas, reunidas num conglomerado de constelações e nebulosas conhecidas como Galáxia de Áxis.

     No Vale do Sial, poucos manasis foram recolher grãos e frutos, o que não é um comportamento normal desse povo simples e hospitaleiro. A rotação do Planeta Gir é lenta, cujas noites e os dias duram em dobro em comparação ao Planeta Terra.

     Nos horários de luminosidade, os manasis se dedicam intensamente as suas atividades corriqueiras necessárias a sua sobrevivência, e durante as longas e frias noites seguintes, se recompõem em seus lares com merecidos descansos, um pouco de diversão com as crianças e ensinamentos teóricos aos mais jovens.
     Os manasis estão assustados e desconfiados, o motivo foi uma chuva de meteoritos que iluminou o céu da noite anterior. Felizmente, nenhum estrago até então foi encontrado no vale, que segundo a tradição religiosa desse povo, foi devido a uma intervenção divina. Mesmo assim, os pacatos manasis preferiram manter-se mais tempo em seus lares.
     No Planeta Gir não existe confrontos entre os clãs, não havendo assim, necessidade de guerreiros ou soldados. Eles se espalharam por regiões específicas onde criam as suas famílias.
     Entre os manasis que participam da colheita, encontram-se dois irmãos avançados na idade, cujos nomes são: Tabu e Certia.
     Eles falavam sobre as pedras de fogo que caíram do céu, pois já haviam presenciado esse fenômeno centenas de vezes, mas havia algo de diferente que eles queriam saber.
     O que os dois irmãos viram, não eram meteoritos normais, é como se algo estivesse explodido no espaço e seus fragmentos caídos no planeta.
- Penso que em breve alguém vai nos avisar o que houve em nosso céu - disse Tabu, sentado numa pedra, enchendo uma cesta de grãos.
- O povo ficou assustado. Será que outras aldeias viram? – pergunta Certia, enquanto separa feixes de fibra vegetal.
     Pensativo Tabu responde:
- Estamos muito próximos das outras aldeias por causa da água e da fertilidade deste vale. Mas acho que se aconteceu algo de ruim, foi muito mais adiante.
- No Vale de Sez?
- Pode ser! Fica logo atrás das montanhas, um mensageiro veloz chegaria em pouco tempo, além do que, estamos na época dos casamentos e não vai demorar muito para chegar os convites.
- Confio em você Tabu, sempre acertou nas previsões das coisas. Os deuses lhe abençoaram com esse dom.
- Não é nada disso irmão. Os deuses nos abençoaram com esta colheita, com a água que nos sacia e o fogo que nos aquece. Você que quase nunca se lembra de olhar para as estrelas e contar o tempo – disse Tabu jogando um pouco de feno nas costas do irmão, que retribui devolvendo a brincadeira com um sorriso.
     Apesar da idade madura, os dois irmãos são fortes e saudáveis. Eles terminam o trabalho e rapidamente se apóiam nas tiras acopladas nas cestas abarrotadas de grãos, suspendendo-as sobre as costas. Após alguns minutos de vigorosa caminhada, eles escutam assovios de outros companheiros a certa distância.     Trata-se de um assovio de alerta, muito usado entre os manasis.
     Tabu e Certia largam imediatamente as cestas. Eles seguem em direção aos amigos que estão em volta de um corpo deitado no chão.
- O que houve? – pergunta Certia.
- Não sabemos – responde Porfi, um dos mais jovens manasis ali presentes.
     Tabu, que domina a arte da medicina, se ajoelha perto do corpo e põe o ouvido no tórax do desconhecido.
- Afastem-se! Preciso saber se está vivo!
 - Então? – pergunta Certia – Está vivo?
    O ancião levanta o braço com a mão aberta exigindo silêncio, enquanto ausculta o coração.
- Sim! Está vivo, apenas enfraquecido. Se não tiver cuidados morrerá.
     Tabu vasculha os bolsos das vestes do estrangeiro e encontra um pequeno e grosso canudo de tecido.
- Um mensageiro? – surpreende-se Porfi, um aprendiz que aguarda a oportunidade de exercer em breve, essa função entre os manasis.
     Tabu abre o rústico tecido e imediatamente identifica os desenhos alusivos a uma cerimônia. Ao levantar-se, observa atento o seu entorno em busca de outras evidências e olha para o irmão com desconfiança. Certia pega do irmão o tecido pintado, e compartilha com os amigos, passando de mão e mão.
     Certia reconhece a simbologia da mensagem:
- Um convite de casamento dos amabis?
     Novos assobios ressoam pela plantação alta. Os caçadores manasis que seguiram para pontos mais distantes do vale, trazem sob um tipo de reboque, um corpo de animal morto, um mesca.  Esses animais são muito utilizados pelos mensageiros como transporte rápido. É uma mistura semelhante aos ilhamas e cavalos existentes no Planeta Terra, porém bem maiores e mais robustos.
- De onde vem este mesca? – pergunta Tabu.
- Avistamos há muitos passos de distância, no campo vermelho, perto da entrada da trilha da montanha. – responde Ascat, que também é um adestrador de mescas.
- Caçaram alguma coisa?
- Perdemos muito tempo para chegar ao local e percebemos que curiosamente, as nossas caças se esconderam.
     Certia toca no animal depois de procurar no mesca, sinais de ataques de predadores ou doenças
- Ele ainda está congelado. Sua carne e pele ainda nos servem. Podemos levar para a aldeia.
     Ascat arrisca um comentário:
- Mesmo seguindo pelas montanhas, a aldeia dos amabis é distante. Esse mensageiro deve ter acelerado muito e esgotou as forças desse animal.
     Porfi concorda:
- Não era preciso tanta pressa para entregar este convite. Aqui diz que o casamento acontecerá daqui a 15 noites.
     Todos ficam em quietos, cada um imaginando uma explicação lógica.
     Certia quebra o silêncio:
- Porfi está certo. Não haveria necessidade de tanta pressa. Acho que estava em fuga.
- Alguém já viu esse amabis antes?– pergunta Tabu.
- O povo amabis não é numeroso e costuma se relacionar com o povo urus, trocando mercadorias e casando seus filhos. É comum que alguns grupos de ambos os povos se isolem em regiões próximas as suas aldeias. Se o tivesse visto antes, certamente o reconheceria – responde Certia.
- Só ele poderá dizer o que aconteceu. Mas parece que estava perdido ou fugindo de alguma coisa - diz Ascat.
     Porfi comenta uma possibilidade:
- Será que foi das pedras de fogo que caíram do céu? Ou foi algum animal?
- Não. Estaria bem mais ferido se fossem as pedras de fogo. E também, teria sido devorado se encontrasse um predador. Sabemos que aqui no vale não mais existe. – responde Tabu – Bem! Vamos levar esse mensageiro conosco para a aldeia, ele agora é nossa responsabilidade. E quanto ao mesca, seguiremos a tradição, trocaremos sua carne e pele pela primeira cria que nascer de nossos rebanhos.
     Os manasis que ficaram na aldeia, aos poucos saíram dos abrigos e foram cuidar dos seus afazeres. As poucas crianças corriam barulhentas entre os canteiros de legumes e ervas. Os jovens recolhem pedras para as fogueiras das próximas noites. As matriarcas, sempre muito falantes, separam os ingredientes para fazer um reforçado caldo para saciar a fome dos exaustos caçadores e colhedores de grãos, que já assoviavam a distância, avisando da sua chegada.
     Ao avistarem o reboque com um mesca e, sobre ele, o corpo do mensageiro entre as cestas de grãos, todos correram curiosos para ver de perto a inusitada novidade. As esposas abraçavam os seus maridos, enquanto os demais companheiros flertavam com as poucas solteiras disponíveis. As crianças se aproveitavam da distração dos adultos e corriam exaltadas atrás do reboque, e as mais ousadas, insistiam em subir e aproveitar uma breve carona.
     O mensageiro, ainda inconsciente, foi conduzido para um confortável abrigo. Ficou aos cuidados de algumas jovens matriarcas, que se revezavam aplicando compressas aromáticas receitadas por Tabu e seus seguidores de conhecimento. Todos os cuidados médicos disponíveis dos manasis foram empregados para prestar os primeiros atendimentos ao estrangeiro, que até então, não demonstrava o menor sinal de reanimação.
     O tempo passa e o céu anuncia o entardecer das primeiras longas noites. Tabu vai fazer a sua última visita ao enfermo e encontra Nelin, a jovem viúva de Domar e cunhada de Ascat.
- Então. Como ele está?
- Seu rosto já tem mais cor e sua respiração está firme – responde Nelin.
- Ele dorme há muito tempo, em breve vai acordar. Quando isso acontecer, peça para Ascat me avisar.
- Está bem, farei isso – Disse Nelin, distraída e olhando fixamente para o mensageiro.
     Tabu se detém um pouco antes de sair. Nelin percebe o olhar fixo de Tabu para ela.
     Com singela timidez ela pergunta:
- Mas alguma coisa Tabu?
- Está segura em ficar aqui sozinha com este estrangeiro desconhecido?
- Está tudo bem, não se preocupe. Quero ajudar na recuperação dele.
     Tabu se retira, esboçando um discreto sorriso.
     Poucas horas depois da visita de Tabu, o mensageiro lentamente abre os olhos e se depara com a silhueta de Nelin, iluminada pela fraca luz da lareira que aquece o ambiente e conforta o corpo do enfermo. Ele respira suavemente aliviado, sentindo-se seguro em olhar Nelin, que toca em sua testa. Ela o tranqüiliza em voz baixa.
- Agora você está bem, está sem febre e os seus ferimentos cicatrizam.
O mensageiro tenta se levantar mais não consegue, sente dores.
- Descanse mais um pouco. Precisa recuperar suas forças.
- Onde estou?
- Na aldeia dos manasis. Está seguro aqui.
     Ascat, que se encontrava próximo à entrada do abrigo, escuta a voz de Nelin e entra para conferir. Aproxima-se e observa que o mensageiro se recupera. Nelin olha para Ascat e meneando a cabeça, sinaliza para que chame Tabu, que mora próximo.
     Tabu quando chega, não perde tempo, fala com o mensageiro perguntando o seu nome.
- Meu nome? – impacienta-se o mensageiro pondo a mão na cabeça e confuso.
- Tenha calma! – Disse Tabu, pondo gentilmente a mão em seu tórax – Está entre amigos, encontramos você inconsciente e ferido em nossa plantação, trazia um convite de casamento da aldeia dos amabis e seu mesca foi achado morto próximo a montanha. Você pode dizer o que aconteceu?
- Não consigo lembrar!
- Tudo bem. Temos bastante tempo, precisa se alimentar. Quando estiver recuperado voltaremos a conversar.
- Obrigado por salvar minha vida.
- Não precisa agradecer. Agora quero que você nos ajude a recuperar sua saúde.
     Ouvindo isto, Nelin se dirige para perto do fogo e retira uma vasilha de cerâmica aquecida. Delicadamente põe um pouco de caldo morno em um copo e acrescenta algumas ervas medicinais aromáticas. O mensageiro bebe com sofreguidão.
- Calma. Devagar, está quente.
- Desculpe, é que estou faminto – diz o mensageiro ensaiando um princípio de engasgo.
- Deixo-o comer à vontade – orienta Tabu – Seu corpo fraco escurece a mente. Quando a luz do dia retornar, lhe ofereça a carne do mesca e água fresca do sereno. Mas antes, peça para Ascat ajudá-lo a banhar-se e dê-lhe roupa limpa.
     Nelin escuta o ancião e observa a chegada de Julaia, outra matriarca que irá substituí-la na troca de plantão.
     Enquanto Tabu orienta os procedimentos para Julaia, Nelin se aproxima rapidamente do mensageiro e diz que vai se ausentar e que ele ficará algum tempo sob os cuidados da amiga. O mensageiro, demonstrando gratidão e afeição, segura discretamente a mão de Nelin o que ela retribui com um sorriso.
- Tenha paciência, você logo ficará bom – Diz ela sussurrando ao seu ouvido.
     Nelin retira-se do abrigo acompanhado de Tabu e o cunhado, enquanto Julaia, uma idosa e experiente matriarca, se aproxima do mensageiro verificando as cobertas e lhe oferecendo um chá.
- Meu nome é Julaia, ficarei com você agora. Se quiser posso lhe entreter contando estórias do nosso povo.
- Sim, Obrigado. Gostaria de saber um pouco da vida do povo que tão generosamente me acolheu e cuidou dos meus ferimentos.
- O que quer saber?
     O mensageiro acha estranho o comportamento da matriarca, que pergunta com um leve sorriso.
- Desculpe, não quis ofender, é que você fala com um sotaque amabis que eu não conhecia.
- Não precisa se desculpar, nem me lembro de como vim parar aqui. E o primeiro rosto que vi quando acordei foi o de Nelin. Diga-me, por favor, e sem querer ofender, ela é casada?
- Viúva – Disse Julaia, enquanto puxa um banco para sentar-se próxima do mensageiro – Não usa mais a pulseira de casada. Seu marido Domar morreu subitamente no mesmo dia em que se casou com Nelin. Ele era muito querido por todos. Era um homem sábio, apesar de ser muito mais velho do que ela.
- Isso é muito triste. E depois! Não se interessou por mais ninguém?
     Julaia responde com indiferença.
 - Não. Ela foi cortejada por muitos, mas não se interessou por ninguém. Ela é jovem e bonita, poderia ter muitos filhos e aproveitar uma vida longa e feliz. Vive escondida em seus pensamentos, dizia que um dia voltaria para o seu povo.
- Ela não é uma manasis?
- Tornou-se depois que casou com Domar. Ele era um viajante e um dos líderes dos manasis. Fazia longas jornadas conhecendo povos mais distantes de Gir. Trazia conhecimentos e histórias para o nosso povo.
- E como se conheceram?
- Ele a conheceu nos campos, próximo a aldeia de Urus, que fica numa região distante do Vale do Sial. Morava sozinha num velho abrigo de caçadores. Seus pais morreram de velhice e não tinha irmãos. Vivia exclusivamente para as suas obrigações de colheitas e pequenas criações. Uma vez, quando a escuridão se aproximava, Domar ainda não tinha encontrado um lugar seguro. Estava sem comida, exausto e com pouca água. Temia em morrer com o frio das longas noites. Ao se aproximar do seu abrigo, Nelin o acolheu. Durante o tempo em que estavam juntos, eles se apaixonaram e Domar disse que retornaria ao povo manasis, convidando-a para ser sua esposa. Nelin ficou muito feliz com o convite, estava cansada e insegura de viver sozinha. Foi uma grande surpresa quando vimos Domar chegar com ela. Todos estavam encantados com a sua beleza, seu sorriso e seu jeito meigo e tímido de jovem estrangeira. Noites depois, realizamos o casamento, foi uma festa muito bonita e alegre, Domar estava robusto e rejuvenescido, parecia o mais saudável dos manasis, mas não pode aproveitar sua vida de casado, morrendo... – Julaia enxuga algumas lágrimas que escorrem dos olhos marejados.
- Eu sinto muito.
- Todos sentiram a morte de Domar. A jovem Nelin quase adoeceu de tristeza. Fiquei com ela todo esse tempo e graças ao carinho e atenção de todos, ela superou esta perda e se juntou definitivamente aos manasis.
- Ela ainda pretende ir embora?
- Acho que ela encontrou um motivo para ficar. – diz Julaia, cerrando os olhos atentamente para o mensageiro, esperando um sinal que confirmasse as suas suspeitas.
- E qual seria?
- Se eu não estiver errada, percebi a maneira carinhosa como ela cuida de você. Os olhos falam mais do que os desenhos, mensageiro.
- Então percebeu?
     Julaia se empolgada, levantando-se do banco.
- Sim! Acho que ela gostou de você. Seria bom que tivesse um nome.
- Falo a verdade. Não me lembro de nada que aconteceu. Nem do meu nome.
- Se você permitir, posso lhe dá um nome, sou boa nisso. Pelo menos, até se lembrar do seu.
- Faria isso por mim?
- Que tal Ydegart?
- Parece um bom nome.
- Nem tanto! Significa “sem lembranças” na antiga língua manasis.
- Parece que sou eu – sorrir o mensageiro – Por enquanto me chamo Ydegart.
     A matriarca Julaia se levanta animada e sorridente. Nunca aceitou a idéia de Nelin abandonar a aldeia, queria que se casasse e fosse feliz entre os manasis. Quando percebeu o brilho nos olhos de Nelin ao ver o estrangeiro, aceitou aquilo como uma possibilidade de devolver à amiga o companheirismo de um marido que pudesse lhe dedicar afeição.
     Julaia se aproxima de Ydegart e o convence a dormir.
- Acho que por enquanto está bom de histórias! Você precisa descansar e eu já estou velha, meu corpo não é tão resistente como antes.
- Sim Julaia, estou bem. Vou dormir um pouco mais, não se preocupe comigo.
- Se precisar de algo é só me chamar. Tenho sono leve.
- Agradeço. É muito gentil.
- Também gostei de você Ydegart. – diz Julaia, bocejando e levantando uma grossa coberta de pele de mesca que lhe serve de cobertor num canto da parede.
     Após a longa noite, a luz do dia se anuncia por entre as montanhas que cercam o Vale do Sial. Alguns voluntários selecionados por Tabu adentram no abrigo onde Ydegart se encontra. Eles trazem algumas tigelas contendo uma lama avermelhada, completando o tratamento de recuperação do estrangeiro. Discretamente, Julaia se retira.
     Ydegart é despido e seu corpo é untado com a lama. Após algum tempo, sob os olhares de Ascat, é banhado em uma tina e vestido com roupas limpas e arejadas.
- Vejo que se recuperou bem? – Diz Ascat.
- Sim, estou bem melhor.
- Sua comida está pronta, virá até a minha casa. É meu convidado.
- Não quero incomodar, acho que já posso retornar para o meu povo.
- Ainda não está em condições, a viagem é longa e cansativa. Suas lembranças não retornaram, não seria bom para a reputação dos manasis deixá-lo voltar nesse estado, arriscando se perder pelos estreitos caminhos da montanha.
- Aceito suas recomendações. Mas irei, assim que recuperar minhas lembranças e minhas forças. Gostaria apenas de receber comida e água para a minha jornada de retorno. Serei grato, por tudo que fizeram por mim.
- Terá tudo o que precisar mensageiro - Ascat levanta a cortina do abrigo, convidando-o a sair – Fique um pouco mais, em breve vamos realizar a festa da colheita, a sua presença é bem-vinda.
     Ao sair do abrigo, o mensageiro sente-se novamente vivo, respira longamente o ar matinal e observa alguns insetos fosforescentes que rodopiam algumas flores de hábitos noturnos que se fecham lentamente. O cheiro das pedras quentes das fogueiras rivaliza com os aromas de outros tipos de flores que despertam com rara beleza.
- Ydegart – cumprimenta Julaia, sorridente.
- Ydegart? É um nome... estranho para um amabis – comenta Ascat.
- Não é o meu nome – Sorrir – Foi Julaia que o escolheu.
- “Sem lembranças?” Não acho um bom nome, mas se não lhe incomoda...
- Não incomoda. Gosto do nome, enquanto não lembrar o verdadeiro.
- Se assim prefere – Ascat põem a mão no ombro de Ydegart e indicando-lhe caminho, olha de soslaio para Julaia, que abaixa a cabeça pondo a mão na boca para conter um sorriso discreto.
     A casa de Ascat fica alguns minutos de caminhada do abrigo dos enfermos, e pela primeira vez, Ydegart pode testemunhar a vida cotidiana dos manasis. Algumas matriarcas se dedicando aos afazeres domésticos, enquanto as mais jovens cruzam o seu caminho, conduzindo cestas com frutos, olhando-o com cumprimentos e sorrisos. Ydegart retribui acenando e mentalmente, as compara em vão com a beleza de Nelin, que lhe inspira forte atração.
     Mais adiante, Ydegart observa um grupo de mescas domesticados, pastando tranqüilos na baixa de uma várzea, próxima a um curso de riacho. Ascat percebe o olhar ansioso de Ydegart, o desejo reprimido de retornar para o seu povo e a incômoda falta de memória.
- São belos animais, não acha? – comenta Ascat.
- Sim! São muito saudáveis.
- Não se preocupe Ydegart. Terá um desses quando estiver pronto para voltar para o seu povo, um presente dos manasis.
- Agradeço, mas a falta de lembranças me atormenta.
     Ao chegar à casa de Ascat, o mensageiro se depara com Nelin, que o recebe com simplicidade, convidando-o a sentar num banco acolchoado, junto a uma mesa de pedra. Ydegart atende a cortesia e fixa o olhar em Nelin, esperando um comentário sobre o seu estado de saúde. Ela pouca atenção lhe dispensa, mantendo-se concentrada em retirar a comida de um forno rudimentar.
     Ascat senta-se ao lado de Ydegart e Nelin os serve com porções generosas de um ensopado de mesca. Uma jarra com água de sereno e um copo é posto em sua frente. Ydegart bebe suavemente, sentido um frescor agradável e discretamente, aproveitando-se da distração de Ascat que pica raízes amargas para misturar ao ensopado, olha novamente para Nelin.
- Está muito boa essa comida.
- Ela não é só uma boa cozinheira, possui muitas habilidades que surpreende até as matriarcas mais antigas – elogia Ascat – Aprende rápido tudo o que lhe é ensinado.
- Você é muito gentil com as palavras meu cunhado.
     Enquanto limpa sem jeito a boca suja de molho, Ascat puxa conversa.
- Nelin só falta aprender a caçar. Mas fale Ydegart! Não consegue mesmo lembrar nada do que lhe aconteceu?
- Não, por isso que gostaria de partir. Sendo membro do povo amabis, certamente poderei encontrar respostas para a minha falta de lembranças.
- Bom, pelo menos sabemos que você é um mensageiro, trazia um convite.
- Um convite?
- Sim! Está com Tabu. Quem sabe você possa se lembrar de algo ao vê-lo.
- Seria importante para mim.
- Um convite de casamento. Devemos enviar um mensageiro manasis para nos representar e oferecer nossos presentes. Diga-me, lembra apenas se é casado, tem uma companheira?
     Nelin se dirige em direção à saída levando um cesto de frutos e o deixa cair ao ouvir a pergunta de Ascat. Ela se abaixa para apanhá-los, Ydegart também se abaixa para lhe oferecer ajuda. Sua mão encontra a de Nelin. Ela olha para Ydegart no fundo de seus olhos, produzindo um efeito desconcertante. Seu coração bate descompassado, inebriado pelo perfume que exala dos seus longos cabelos.
- Obrigado, Ydegart. É este seu nome?
- Não é bem assim – sorrir tentando se desvencilhar dos olhos de Nelin – Foi Julaia que escolheu, até eu lembrar o verdadeiro.
- Gostei do nome – diz Nelin com suavidade – Mas espero que recupere logo a sua memória.
- É o que mais quero, acredite.
- Vamos! Termine sua comida. Temos o que fazer – Adianta Ascat, percebendo o ar romântico que envolve os dois.
- Para onde vão? – pergunta Nelin, curiosa.
- Vamos à casa de Tabu, ele quer olhar o nosso amigo aqui. E depois, se ele estiver em condições, poderá me ajudar em cuidar dos mescas.
- Seria muito bom. Preciso me exercitar, fazer algo para compensar a gentileza do seu povo.
- Não pense assim. Tenho certeza de que os amabis fariam o mesmo. Precisamos trabalhar para sobreviver e também organizar os preparativos para a festa.
- Festa? – Ydegart não tira os olhos de Nelin.
- Sim, a festa da colheita! Já esqueceu?
- Ah sim! A festa!
- Vocês não fazem festas?
- Não me lembro.
- Claro que não! – Sorrir Ascat, pondo-lhe a mão no ombro – Vamos andando, temos que encontrar Tabu.
     Ydegart acompanha Ascat e não resiste em olhar para trás, observando Nelin. Ela também observa seus passos, enquanto fecha vagarosamente a cortina de pele da entrada da casa.
     No caminho, ouvem-se assovios de despedidas. Crianças correm eufóricas e alegres.
- O que está havendo? – pergunta Ydegart
- Alguém está partindo.
- Para onde?
- Ainda não sei, está na frente da casa de Tabu. Vamos!
     Ambos aceleram os passos a tempo de encontrarem Porfi, em seu galante traje de mensageiro, montado em um robusto mesca. Ele recebe as últimas instruções de Tabu. É a sua primeira missão como mensageiro.
- Então! Vamos aceitar o convite do casamento dos amabis? – pergunta Ascat.
- Ainda não – responde Tabu – Vamos tranqüilizar os amabis, que já devem estar preocupados com o não retorno do seu mensageiro e do mesca.
     Certia, o irmão de Tabu, se aproxima com uma mochila.
- O que é isto? – pergunta Porfi.
- É a roupa do nosso convidado. Precisamos de uma prova da sua presença entre nós – explica Tabu.
- Infelizmente, não temos um nome, mas as roupas e a sua descrição poderão confirmar que ele está sob os nossos cuidados – completa Certia.
     Ydegart se aproxima de Porfi.
- Muito obrigado mensageiro. Tenha cuidado e boa sorte.
- Farei que seu povo e sua família saibam do que aconteceu, vamos encontrar respostas do que houve realmente na sua jornada até nós.
     Certia, agora um ex-mensageiro do povo manasis, orienta Porfi:
- Siga pelas montanhas. É o caminho mais próximo e provável que ele tenha feito. Estamos na temporada quente, os túneis e grutas são visíveis e menos perigosos. A passagem para aldeia amabis é larga e o vale que fica abaixo é grandioso e rico em frutos e água.
     Tabu se aproxima discretamente de Porfi e lhe entrega um pedaço de tecido enrolado e amarrado.
- Ache o velho Latem, entregue esta mensagem. Tem recomendações para a sua estadia provisória nas montanhas – fala em voz baixa.
     Porfi não gosta muito da idéia em sua primeira missão de parar onde vive Latem: O ermitão que vive nas montanhas e que ninguém conhece ao certo. Sua vida é cercada de mistérios e lendas, poucos mensageiros e membros Manasis, Amabis e Urus o conhecem. É de uma raça estranha, diferente dos povos até então conhecidos no planeta, porém inofensivo. Ajudou a salvar muitos mensageiros e andarilhos perdidos nas montanhas. Vive isolado numa caverna e fala pouco.
- Farei isso! – responde Porfi, resignado da sua missão.
     Encorajado pelos assovios, o mensageiro segue rápido, aproveitando a luminosidade a seu favor. Ele precisava localizar os abrigos marcados, que compõem cada fase da jornada e proteger-se das longas noites.
     Tabu avalia a saúde de Ydegart e o libera para ajudar Ascat em cuidar dos mescas. Durante os dias que sucedem, Ydegart convive na casa de Ascat e Nelin. Suas forças estão restabelecidas. Nas colheitas, o seu vigor físico e disposição, impressionam a todos que com ele convive. Aprende rápido tudo que lhe é ensinado, fazendo adaptações e resolvendo problemas com idéias inteligentes e práticas. Algumas vezes, ajuda Tabu com os doentes, revelando-se um bom aprendiz com vocação médica. Tem especial atenção das crianças e jovens, que lhe contam estórias e muitas vezes lhe convida para correr entre os campos e atirar pedras em alvos parados, sua pontaria é invejável.
     Com o tempo, Ydegart torna-se mais do que um simples visitante, ganha a afeição e confiança do povo manasis, que já ver com bons olhos a sua união com Nelin. A matriarca Julaia, não perde a oportunidade de sugerir que eles se casem no dia da festa da colheita e recebe do então amigo Ascat, a esperada aceitação.
     No entardecer de certo dia, Julaia costurava algumas peles e Nelin adornava um bracelete, enquanto Ascat trazia alguns cestos pesados com mantimentos para dentro de casa. Nelin sente a falta de Ydegart e pergunta para Julaia onde ele está.
- Ascat pediu para ele conferir se está tudo bem com os mescas. Foi ele que inventou a coberta do cercado, lembra?
- Esse bracelete que você fez está muito bonito – admira Julaia.
- É meu presente de casamento para ele – disse Nelin com felicidade.
- Qual será o presente que você pedirá?
- Não sei ainda Julaia, talvez uma viagem, assim que ele recuperar a memória.
- Uma viagem? As manasis não costumam pedir viagens como presentes de casamento dos seus maridos.
- Mas é permitido, não é?
- Não vejo nada de mais – Julaia sacode o ombro, indiferente.
- Você não disse a ele que fui eu que dei a idéia de chamá-lo de Ydegart, disse?
- Claro que não! Eu teria um nome melhor à altura de sua beleza.
- Quando conheci Domar, ele costumava falar das lendas manasis. Dizia que um nobre manasis salvou seu povo de uma tragédia vindo para estes campos, e ao retornar para enfrentar o inimigo, perdeu o caminho de casa, vagando pelo mundo sem lembranças. Esse nobre chamava-se “Ydegart”. Quando o mensageiro chegou, sem memória, achei que seria bom para ele e para nós dar-lhe um nome importante, então, lembrei da lenda.
- É uma lenda triste, conheço bem. Dizem que Ydegart ainda vaga pelos campos nas noites frias e escuras procurando o caminho de volta para casa. Isso assusta as crianças, assim elas não se arriscam a sair no entardecer e voltam logo para casa. Elas têm medo de encontrar o Ydegart – Faz suspense Julaia, arrancando um sorriso de Nelin.
- Bom, sendo assim, vou procurar o meu Ydegart. Não quero que ele se perca.                               
     Ambas se divertem com o comentário, que chama atenção de Ascat, que lava o rosto numa tina de pedra.
     Mas o que Ydegart mais deseja, além de se casar com Nelin, é poder recuperar a sua memória, no entanto, teme que suas recordações possam fazê-lo se afastar dos manasis, na qual já sente pertencer. Pode ter perdido a memória, mas tem uma forte impressão de que nuca havia sentido tanta felicidade.
- Será que com o meu povo, também sou feliz? – Disse Ydegart pensativo, isolado num canto de cercado que abriga os mescas, observando uma das fêmeas que aguarda o momento de parir.
     Nelin se aproxima silenciosa e discreta. As noites longas já despontam no horizonte. Eles se olham, e sem dizer uma palavra, se abraçam e se beijam com desejo.
     Enquanto isso, o mensageiro Porfi enfrenta dificuldades em seguir pela trilha da montanha. O mesca se recusa teimoso diante da insistência do mensageiro, que não consegue entender o comportamento do animal, pois os mescas sempre seguiram tranqüilos por estes caminhos. Apesar do pouco tempo em que se encontra na função de mensageiro, Porfi sabe, como todo manasis, que os mescas só rejeitam um caminho quando percebe o perigo de um predador, o que seguramente, todos sabem que não existe nas montanhas. A região fria, sem vegetação e com fortes ventos, não oferece nenhum meio de sobrevivência para tal ameaça, ao contrário dos pântanos, que durante gerações sempre foi evitado. Antigamente era usada uma trilha longa para contornar as montanhas. Muitos Manasis e outros povos desapareceram e nunca foram encontrados. Mas esse pântano encontra-se distante, fora da rota de qualquer aldeia conhecida, e nunca se avistou animais predadores.
     Porfi entende também, que não adianta forçar o mesca. O melhor será esperar mais uma noite em uma das cavernas de apoio e seguir por outra trilha descendo uma parte baixa da montanha, onde existe um campo aberto e um pequeno vale. Chegando lá, Porfi sabe que poderá repor as suas provisões de comida e água. Essa investida lhe custará os dois dias de luz, se arriscando a chegar ao Vale de Sez e a aldeia dos amabis no início da primeira noite.
     Numa caverna fria e escura, o mensageiro encosta-se ao mesca que lhe fornece calor. Saboreando uma pequena refeição, Porfi imagina que o comportamento do animal fazia sentido, uma vez que o mensageiro dos amabis haveria seguido por aquele caminho e que custou a vida de outro precioso mesca e poderia também ameaçar a sua.
     Essa possibilidade não demorou em encher a imaginação do jovem mensageiro, e um medo real se apossou dele naquelas noites, além do que, tinha que entregar outra mensagem para o ermitão, alguém que ele também tinha receios.
     Nos primeiros raios de luz, Porfi e o mesca seguem por uma trilha alternativa. O animal se apresenta disposto e aliviado do mensageiro o ter compreendido.
Enquanto desce a montanha, Porfi observa nos campos, centenas de pontos brilhantes das gotas de orvalho nas folhas das árvores, refletindo a luz do dia que inicia. Consegue finalmente, chegar ao Vale de Sez no tempo previsto.
     O mesca vocaliza diante da presença das ervas que lhe apetece os sentidos. Porfi também se anima, e por alguns instantes, recolhe apenas a quantidade de frutos e água suficientes para garantir sua chegada ao destino, pois uma carga pesada demais atrasaria sua jornada e o faria padecer diante da noite que já assinala sua aproximação.
     Ele observa preocupado, centenas de seres alados que cortam o céu, os anilos, que lembram os pequenos répteis voadores que há milhões de anos habitaram o Planeta Terra, e que em bandos, se encontram e seguem para as montanhas em busca de abrigo.
     A aldeia dos amabis está próxima, tem certeza disso, mas não consegue visualizar as fogueiras que já deveriam está acessas. Também é costume entre todos os povos do Planeta Gir, de se deixar um vigilante próximo da aldeia o suficiente para que se perceba, à distância, a chegada de algum visitante, mensageiro ou mesmo de caçadores atrasados, sempre no início de cada noite.
     Porfi faz sinal para o mesca vocalizar alto, anunciando a sua chegada, o que prontamente deveria ser respondido pelos mescas dos amabis, o que não aconteceu.
- Estranho. Nenhuma resposta? Nenhuma fogueira? Onde está o vigilante? Ainda é cedo para ele voltar – fala Porfi em boa voz, confiando que o mesca o entenda e lhe mostre um sinal.
     Mas o mesca não se intimida com a falta de respostas dos da sua espécie. Segue acelerado para a aldeia dos amabis, fazendo com que Porfi segure firme nas rédeas. O sinal do mesca é óbvio, precisa de um abrigo rápido e guiando-se pelo apurado olfato, chega a um cercado vazio e encontram a aldeia destruída.
     A impressão de Porfi diante de um cenário desolador o faz se desesperar gritando por ajuda. O mesca ofegante fica parado, pressentindo por instinto o inevitável destino do mensageiro. Ele acompanha Porfi com o olhar durante um bom tempo, e ver correr para todos os lados, sem encontrar nenhum amabis e nenhum mesca. Ele se apressa em improvisar um abrigo que o mantenha vivo até a chegada da próxima luz. Acende uma fogueira, o que lhe facilita enxergar melhor o que procura e com uma tocha, encontra entre os destroços, peles de mescas, alimentos, água, utensílios domésticos e agrícolas, equipamentos de caça e remédios. Só não encontra nenhum amabis.
- Sumiram todos! Pelos deuses! O que será que houve?
     Porfi se aproxima do mesca trazendo-lhe alimento e água. Acaricia o pescoço do animal que retribui com um grunhido triste.
- Vamos ter uma noite difícil meu amigo. Não temos tempo de retornar a montanha e achar abrigo. Estamos nas mãos dos deuses.
     Com muito esforço, Porfi e o mesca se ajudam para armar um abrigo com os restos dos destroços, mas quando Porfi entra para testar, o mesmo desmorona causando um ferimento leve em seu braço. Desolado, Porfi pensa que deveria liberar o mesca de volta para casa, são animais resistentes ao frio rigoroso, sabem encontrar abrigos durante a noite e possuem extraordinário senso de orientação. Mas também sabe que seria difícil para ele sobreviver sem a presença do experiente animal.
     Todos os povos do Planeta Gir criam mescas, são quase sagrados, e nunca os matam para comer ou retirar-lhe as peles, apenas quando estes morrem de causas naturais ou acidentais.
     Nem todos os mescas são aconselháveis a atividade de acompanhar mensageiros, com exceção da raça sud. Eles são considerados os mais fortes e inteligentes para o adestramento e possui uma particularidade interessante em relação às demais raças, seus longos pelos do pescoço que normalmente é cinza claro, passa para um dourado brilhante. Essa mudança de tonalidade acontece quando a fêmea parceira está prenhe. Quando o mensageiro retira do seu pescoço um colar que identifica a aldeia manasis e põem no pescoço do animal por alguma necessidade extrema, o mesca sabe o que significa e retorna para o cercado onde a fêmea e suas crias se encontram. Os mescas da raça sud, podem depois retornar com precisão ao local que foram liberados, trazendo ajuda. Por isso, são animais raros e muito valorizados, um verdadeiro artigo de luxo para a aldeia que os possui.
     O vento frio chega com a noite, riscado pela luz dos pequenos meteoritos que são comuns caírem no Planeta Gir. Porfi vislumbra os pontos medianos e acinzentados da montanha se cobrindo de neblina. A ansiedade aumenta com a incerteza de que estará vivo, quando a luz retornar ao Vale de Sez.
     Numa atitude desesperada, Porfi abastece a fogueira com tudo o que possa ser queimado e produzir calor. As labaredas de fogo podem ser vistas a grande distância. Junta todas as peles possíveis e faz um amontoado, onde ele e o mesca se acomodam e se cobrem com dificuldades.
     Depois de algum tempo, onde o silêncio é quebrado apenas pelo sibilo do vento e quando está preste a adormecer, Porfi percebe que o mesca não iniciou a sua curta hibernação. O animal vocaliza baixo, identificando que algo chama a sua atenção. Porfi sente medo de sair das cobertas, seu coração acelera, sente-se impotente e desprotegido. O mesca se levanta e sai das cobertas para o desespero de Porfi. Pequenos flocos de neve envolvem seus corpos e a fogueira começa a arrefecer. O mesca adianta algumas passadas lentas em direção ao som, inaudível para o mensageiro.
- O que houve? O que está lá?
     O mesca sai lentamente de perto da luz da fogueira e penetra na escuridão da noite. Porfi está só, não sabe se segue o mesca ou se volta para a tenda, pois o frio domina o calor da fogueira. Mesmo assim, Porfi se esforça em fazer uma tocha e segue também em passos lentos para onde o mesca seguiu.
     O jovem mensageiro assovia chamando o mesca, e este responde deixando evidente que está retornando. O vulto do animal se aproxima, e sobre ele, alguém montado. O semblante de Porfi se enche de esperanças quando reconhece um membro dos amabis.
- Um amabis?
- Reconheço um assovio manasis de longe meu amigo! Seja bem-vindo a aldeia!
- Sou um mensageiro! Meu nome é Porfi – grita ele, com a voz abafada pelos ruídos do vento.
- Meu nome é Camar! Sou o vigilante!
     O amabis desmonta do mesca, faz um carinho no animal e sem receios abraça Porfi.
- Graças aos deuses! Quando chegou mensageiro?
- Pouco antes de escurecer. Os anilos já voavam para a montanha. O que houve por aqui? Onde está seu povo?
- Não podemos ficar aqui! Morreremos na certa! Eles ainda podem está por perto!
- De que está falando?
- Siga-me! Existe uma pequena gruta adiante! Vamos amarrar as peles e mantimentos para o mesca arrastar!
     Sem questionar, Porfi ajuda Camar em reunir a maior quantidade de materiais possíveis que o mesca possa conduzir e seguem para um conglomerado de pedras isolado no campo aberto. Ainda assustado e surpreso, Porfi se reconforta ao entrar na pequena gruta, aquecida por uma pequena fogueira e guarnecida de alimentos e água.
     Um pouco mais velho do que Porfi, Camar ocupa uma função importante na aldeia, o de vigilante. Na caverna, ele apenas indicava a Porfi onde encostar a carga trazida da aldeia, enquanto apanhava duas tigelas para servir um caldo quente.
     Eles comem calados e pensativos, o único ruído vem da porta de pele improvisada na entrada da gruta, abanada pelo vento. O mesca já havia se acomodado na entrada na entrada, está imóvel, sem os arreios, deitado com o pescoço estirado ao chão, distraindo-se com as sombras do mensageiro e do vigilante, refletidas na parede pela luz da fogueira. O animal inicia sua curta hibernação, economizando forças para quando a luz do dia retornar.
- Não acredito que esteja aqui. Seguro – comenta Porfi.
- Também não acredito que tenho companhias nesta noite. Faz muito tempo que me encontro confinado neste abrigo. Não poderia sair para pedir ajuda, não chegaria a lugar nenhum sem montaria.
- Diga-me Camar. O que houve por aqui?
- Foi tudo muito rápido.  Na noite em que as pedras caíram do céu, ficamos assustados e nos recolhemos para nossos lares. Felizmente, nenhuma delas atingiu nossa aldeia.
- Também vimos às pedras! Pensamos que podiam ter caído nesta região.
- Felizmente não caíram em nós. Mas algumas acertaram a montanha.
- A montanha?
- Sim. Houve muito barulho. Todos estavam animados com o casamento que se aproximava e um mensageiro já havia partido em direção a sua aldeia para entregar um convite.
- Recebemos o convite. E este é dos motivos da minha jornada até aqui –interrompe Porfi – Mas o que aconteceu? Onde estão os amabis?
- A luz do dia ainda não havia chegado quando estávamos agradecendo aos deuses por nossa proteção, quando de repente escutamos um som estranho, alto, parecido com o rolar de pedras da montanha. Sombras escuras rodopiavam nossas casas. Pareciam anilos gigantes e negros. Ficamos todos, cheios de pavor. Ninguém se movia.
     Camar se cala por alguns segundos, sua mente revivia a traumática lembrança.
- Continue! – incentiva Porfi, curioso.
- Essas feras começavam a destruir tudo. Capturava cada um de nós e os poucos mescas que possuímos. Agarrava rápido nosso povo, levando todos para cima, para o céu, não sei direito para onde. Corri para os campos, sem destino e desesperado. Uma das feras desceu do céu sobre mim, escapei por pouco e me atirei no chão caindo de um barranco. Fui deslizando até em baixo, parando na beira do rio que fica aqui perto. Prendi a respiração e mergulhei na água e lá fiquei até quase sufocar e morrer de frio. Na outra margem, cheguei numa pequena cortina de água e consegui me esconder atrás dela por um bom tempo. Quando finalmente tomei coragem, resolvi sair do rio e percebi que não havia mais nada. Tudo estava destruído, não havia ninguém. Eu estava trêmulo e confuso. Só pensava em me esconder. Costumava visitar esta pequena gruta desde criança, usávamos para guardar alimentos e remédios. Foi assim que me salvei – respira Camar, aliviado.
     Porfi se levanta, anda em direção a parede do abrigo, olha para o mesca e vê que o animal dorme profundamente. Pensativo, ele tenta descobrir se houve alguma relação do ataque a aldeia amabis com o mensageiro sem lembranças que chegou a sua aldeia.
     Porfi retorna para perto de Camar e lhe mostra o convite recebido e algumas roupas.
- Sim, é nosso convite. Reconheço também estas roupas, é do nosso mensageiro, seu nome é Tiri. Esperto e rápido, um pouco baixo, mas um dos melhores.
- Tiri?... Baixo? – indaga Porfi.
- Sim. Um pouco maior do que eu. Os mensageiros amabis sempre são baixos e leves, não forçamos nossos mescas.
- Camar – interrompe Porfi - O mensageiro que lá chegou não era baixo, pelo contrário, era alto e forte.
- Então não era Tiri. Tenho certeza que não temos mensageiros assim. Os amabis mais fortes ficam nas colheitas, trazem os grãos, constroem abrigos. Você deve saber que não usamos mensageiros altos e pesados para os mescas.
     Porfi volta a sentar-se, exausto, encostando-se num amontoado de peles trazido da aldeia amabis. Sente o braço esquerdo doer com a lesão sofrida, na tentativa de montar uma tenda. Seus pensamentos estão ainda mais confusos. Ao perceber a fraqueza do mensageiro, Camar se aproxima.
- Você está ferido? Deixe-me ver.
     Camar procura na gruta, uma cesta contendo artigos de primeiro socorros. Inicia a limpeza do ferimento, desinfetando e fazendo um curativo.
- Foi um acidente. Estava tentando levantar um abrigo. Não tive sorte, desmoronou com o vento.
- Teve sorte sim. O vento trouxe o ruído até aqui, foi o que chamou minha atenção e me fez subir por uma fenda para observar. Avistei a fogueira, você e o mesca, sabia que não eram inimigos. Então usei o truque do gemido e o seu mesca veio ao socorro. Sem dúvida. É um dos melhores que já vi. É um sud? Faz tempo que não vejo um desses.
- É verdade. Usamos os melhores mescas para as viagens. E este é o preferido de Ascat, o adestrador.
- Tem notícias do mensageiro Certia?
- Esta bem de saúde, tanto ele como seu irmão Tabu, são fortes. Estão sempre nos campos, colhendo grãos.
- Já recebi muitas vezes Certia em minha casa e vigiei suas chegadas e partidas da aldeia. Ele é muito querido entre o nosso povo, na verdade, todos os manasis são bem-vindos.
     Camar tenta distrair Porfi, enquanto enfaixa o ferimento. 
- Você conhece uma antiga lenda?
     Ele conta que tantos os manasis, amabis e urus tiveram a mesma origem na criação divina.
- Sabemos disso. Os antigos sempre contam estas estórias, são as preferidas de Tabu. Eu acredito nelas! Pois somos até iguais na aparência e nos costumes.
- O povo urus são um pouco diferente apenas nos desenhos – observa Camar – Pronto! Terminei o curativo, seu ferimento é leve, ficará bom logo. Vou fazer um chá de erva forte, vai ajudar.
- Não gosto de erva forte. É muito amargo!
- Como queira. Então durma. Ficarei vigiando o fogo e preparando a comida. Faremos turnos, tudo bem assim? Resolveremos o que fazer mais tarde.
- Tudo bem – responde Porfi, bocejando.
     Uma fina camada de neve encobre todo Vale de Sez, durante horas, as atividades na gruta são revezadas. No final da última noite, Porfi se aproxima do mesca, observado seu despertar. O animal olha para o mensageiro e rumina devagar. Camar se aproxima com uma tigela de água e oferece ao animal, que fica de pé.
     Porfi se levanta e segue para apanhar os arreios, Camar o adverte.
- O que vai fazer?
- Preparar a montaria. Preciso continuar minha jornada, a luz logo chegará.
- Para onde vai?
- Tenho outra missão.
- Pensei que mandaria o mesca de volta para pedir ajuda? Ele está sud, retornará ao cercado de suas crias. Os manasis saberão que algo deu errado virão até nós!
- Camar, não sabemos o que aconteceu aqui. Não posso arriscar membros do meu povo. Além disso, as feras poderão retornar. Cumpro apenas meu dever como mensageiro.
- Você tem outra mensagem? Para que aldeia? A mais próxima é a dos urus e está longe. Não poderei ficar aqui por mais tempo, a comida está acabando. Temos que ir para a sua aldeia urgente! Precisamos avisar do perigo que eles também correm!
- Não é nenhuma aldeia. Tenho uma mensagem para Latem.
- Latem? – os olhos de Camar se arregalam de espanto.
- O que foi? Por que me olha assim?
- Você não passou por ele quando chegou aqui?
- Não! O mesca resistiu em não prosseguir pela trilha.
- Estranho? Quem mandou a mensagem? Certia?
- Não, Tabu mandou. Também não gosto da idéia de fazer isso. Tenho meus temores com Latem e...
- Então algo de muito estranho está acontecendo – interrompe Camar – Diga-me, você conhece Latem?
- Não. É a minha primeira missão, fiquei no lugar de Certia.
- Então a mensagem deveria ser de Certia. É de costume, que o antigo mensageiro faça a recomendação do seu substituto para Latem, que vigia a passagem da montanha e zela por nós.
- Você conhece Latem? – pergunta Porfi, curioso.
- Estive com ele quando era muito jovem, perto da sua idade agora. Fui com meu pai, Vazar. Encontrarmos-nos com Tabu e Certia na montanha. O velho Latem enviou para eles uma mensagem por sonho, dizia que era importante.
- Por sonho? E o que foi?
- Duas coisas. A primeira era para avisar que havia uma nova e segura passagem aberta na montanha, que encurtava a distancia entre os manasis, amabis e urus. Assim evitaríamos contornar o pântano.
     Porfi levanta o queixo com atenção.
- Qual era a segunda?
- Se algo estranho acontecer, eles deveriam procurar Latem ou enviar uma mensagem.
- Estranho como?
- Pense Porfi. Pedras que nunca vimos caíram do céu, nosso mensageiro Tiri não chegou à sua aldeia, seu mesca não voltou, o mensageiro que levou o convite não é um dos nossos, feras voadoras atacaram nosso povo e destruíram tudo. E agora, você me diz que seu mesca não seguiu a trilha oposta e que Tabu enviou uma mensagem para Latem? Só isso para mim é muito estranho.
- Menos o mesca do seu mensageiro.
- O que tem o nosso mesca de errado?
- Nada, nós o comemos. Estava morto e congelado. Mas não se preocupe, já providenciamos outro mesca, um da raça sud, como presente de casamento, é o que diz esta mensagem que ainda não entreguei a nenhum amabis. Tome! É sua.   
     Porfi estende a mão entregando um pedaço de tecido com desenhos, confirmando o que disse.
     Camar olha a mensagem, balança a cabeça afirmativamente.
- Entendo Porfi, aqui diz também que você é o novo mensageiro e tem uma recomendação de passe livre entre nós. Acontece que esta mensagem também serve para apresentar ao velho Latem. Precisa completar sua missão – Disse Camar com tristeza, achando que Porfi seguiria sem ele.
- Mas essa não é a mensagem para Latem.
     Porfi retira outro tecido:
- Essa aqui é a outra mensagem.
     Camar agora tem certeza de suas convicções. Sabe também, que não pode impedir um mensageiro, mesmo achando que o certo seria voltar à aldeia manasis e alertar do perigo que os ameaçam.
- Não faça essa cara! Você conhece Latem e sabe onde ele vive. Isso é importante na minha missão, poderemos ir juntos. Devo-lhe minha vida e não deixarei você aqui sozinho. Tem forças para viajar?
     Camar abre um sorriso, reconhecendo que apesar de jovem, Porfi possui nobres qualidades que o fará um excelente mensageiro.
- Conheço o caminho daquele lado da montanha. Se apressarmos os passos, chegaremos bem antes de anoitecer. Há muitos frutos e água no caminho.
     Porfi e Camar recolhem o máximo de alimentos e montam no mesca, seguindo para a trilha da montanha. Durante o percurso, Porfi pede detalhes sobre Latem e o que mais sabe sobre o que Tabu e Certia conversaram com ele. Camar demonstrava sinceridade, dizia que não escutou a conversa na íntegra, que Latem teve com Tabu, Certia e seu pai, no interior da caverna. Sabia apenas do detalhe da conversa, que eles comentaram entre si ao descer a montanha: “Se algo de estranho acontecer me avise”. Camar lembrava que eles ficaram silenciosos durante toda a jornada. Pareciam tristes e preocupados.
- E seu pai? Também foi levado pelas feras?
- Não, ele morreu faz muito tempo. Vive agora em nossas lembranças e no mundo dos nossos ancestrais.
- O mundo que nos aguarda no futuro – Disse Porfi – Você teve irmãos?
- Tenho uma irmã mais nova, Satera. É casada com Jamor. Ele forja pedras nobres no fogo, fabrica lâminas para corte de peles. São do povo urus. Costumo visitá-la nessa temporada mais quente. Estava tudo preparado para a viagem, depois do casamento. Mas agora, não sei mais. Temo também pela sua segurança – entristece Camar.
- Não fique assim. Ainda não sabemos o que está acontecendo, pode ser que os urus e sua irmã estejam bem.
- Espero que sim, que os deuses nos protejam.
Capítulo 2

O ENCONTRO COM LATEM


     Em um dia de jornada, Porfi e Camar chegam à montanha no tempo previsto. Desmontados do mesca, sobem outras trilhas por passagens estreitas, com escarpas beirando um precipício, que só em olhar para baixo provoca vertigens.  Eles seguem tranqüilos, admirando um vasto cânion e o mesca não impõe resistência, parece saber para onde vai. Os paredões de rochas sedimentares de cor ocre ainda estavam mornos. Os anilos ainda não foram vistos, o que é um bom sinal, ainda havia tempo para continuar. Mas Porfi e Camar sabem bem, pela sutil baixa da temperatura, que a noite se aproximava.
- É lá! – aponta Camar, para rochas pontiagudas, simétricas, que de longe parecem abrigos em forma de tendas.
- Muito bem. Espero que você esteja certo sobre Latem.
- Não se preocupe. Ele é um velho, um pouco estranho, mas dizem que é muito sábio.
- Estranho como?
- Diferente, de outra raça.
- Outra raça?
- Sim, mas ele nunca nos fará mal, ajudou muitos mensageiros durante as passagens pelas montanhas, inclusive novatos como você – Camar deixa escapar um sorriso maroto que em nada ofende Porfi.
     Enquanto isso, na aldeia dos manasis, o vigilante Hile se aproxima de Tabu.
- Algum sinal?
- Nenhum sinal.
     O semblante de Tabu é de preocupação, a intuição insiste em lhe confirmar que de fato, “algo de estranho aconteceu”. Ele segue a procura do seu irmão Certia, que se encontra na companhia de Ascat. Querem saber se Ydegart consegue lembrar-se dos ensinamentos de um mensageiro.
- Você aprende rápido muitas coisas Ydegart. Têm idéias muitas boas, resolve muitos problemas na aldeia, mas é muito estranho! Não lembra nada do seu ofício?
- Sinto muito Certia. Não queria desapontá-los.
- Você não fez nada amigo, não fique triste.
     Tabu chega à casa de Ascat com Hile. Nelin os recebe e vai até uma jarra servir um copo de bebida fermentada. Pelo o olhar de Tabu, Certia já sabe da resposta. Ascat também percebe a situação, se levanta silencioso e vai encher o copo, junto de Nelin.
- Ele é jovem, apesar de não ter experiência, aprendeu bem o ofício. É um mensageiro de valor, sabemos disso – Disse Hile, quebrando o silêncio.
- Ele não voltou? - pergunta Ydegart.
- Não! - responde Hile – Nem ele, nem o mesca.
     Ascat volta à mesa e pergunta para o experiente Certia o que pode ter acontecido.
- Porfi conhece os sinais e os caminhos. O mesca é experiente e inteligente, se harmonizaram bem. O que seria de mais perigoso era seguir pelo caminho do pântano, mas mesmo que Porfi o fizessem, o mesca não o faria. O ritmo da viagem permite chegar em segurança aos abrigos e todos nós sabemos como isso é importante para a sobrevivência do viajante. O que me surpreende, é que nenhum mensageiro amabis até agora apareceu em busca do seu mensageiro.
     Ydegart levanta a cabeça e olha para Certia, desviando em seguida o olhar para Nelin.
- Precisamos enviar outro mensageiro – diz Tabu
- Devemos esperar um pouco mais – aconselha Certia – Conheço os amabis, são muito hospitaleiros. Ele deve está na casa de Camar, que há muitos anos cumpre a função de vigilante. Porfi é jovem, é a sua primeira missão, deve está empolgado com a beleza das amabis. Além disso, as bebidas amabis são excelentes!
- Será que ele resolveu casar por lá mesmo! – disse Hile, com graça.
     Todos riem, com exceção de Tabu.
- Mas se for o caso. Enviaremos outro mensageiro – continua Certia, percebendo que Tabu não estava bem.
     Ydegart se levanta e apresenta-se como voluntário.
- Eu sou um mensageiro! Talvez não me lembre do ofício, mas sei que um bom mesca sud pode me ajudar a chegar a minha aldeia. A viagem pode me trazer recordações escondidas na minha memória. Estou bem de saúde, sou forte. Sinto que é minha responsabilidade fazer isso, além do mais, meu povo pode está precisando de mim.
     Todos olham para Tabu, esperando uma resposta.
- A festa da colheita será nos próximos dias e seu casamento com Nelin também. Se ela não se importar, aceito a sua decisão de ser o mensageiro.
- Levarei Nelin comigo, assim apresentarei ao meu povo.
- Pelo menos, sabemos que não é casado. Não encontramos pulseira em seu braço – disse Hile, novamente – dizem que as esposas amabis são muito ciumentas.
     Risos ecoam na casa de Ascat.
    Tabu se aproxima de Ydegart, toca em seu ombro e com voz firme toma a sua decisão.
- Você poderá ir Ydegart, mas sem Nelin. Sua missão, além de rever o seu povo, será de encontrar Porfi e acompanhá-lo de volta. A presença de Nelin nesta jornada é arriscada, atrasaria a sua viagem.
- Como queira. Aceito suas condições.
    Tabu olha novamente para Certia e este compreendendo o irmão mais velho, o segue para o lado de fora da aldeia em direção ao cercado dos mescas.
- Faz um bom tempo que percebo que está diferente meu irmão. O que está havendo?
- Esperava que você também percebesse.
- Sabemos que a função de um mensageiro é arriscada. Mas não vejo ainda motivos para preocupação. Quantas vezes eu já me atrasei em chegar à nossa aldeia?
- Não é só Porfi que me preocupa. Outras coisas, aqui mesmo na aldeia, me fizeram tomar uma decisão extrema.
- Que decisão?
- Enviei uma mensagem para Latem.
     Certia interrompe a caminhada e se põem na frente do irmão.
- Mas como? O que você achou de importante para incomodar o velho Latem?  Vivemos há muitas estações em paz.
- Certia meu irmão, escute-me. E não diga nada a ninguém. Aquelas pedras que caíram do céu, nunca vimos daquele jeito, não é normal. Depois um estrangeiro aparece no meio da nossa colheita com uma mensagem de casamento dos amabis, sem se quer parecer com um deles. Ele é mais alto e mais forte. Sabemos que o atual mensageiro dos amabis é Tiri. Não havia nenhuma mensagem dos amabis apresentando um novo mensageiro, apenas um convite de casamento. Quando me aproximei de Ydegart naquela manhã que o achamos, notei que em seu pescoço não havia o colar dos amabis.
- Pode ter perdido!
- Ele aprende rápido demais tudo o que lhe ensina e também resolve rápido todos os problemas com idéias boas. Diga-me Certia, você já viu alguma tenda para proteger o cercado dos mescas assim? Perfeita? – aponta Tabu para o cercado que está próximo.
- Não! Nunca vi. Mas ele pode ter visto em suas longas jornadas, em outras regiões de Gir. Aprendeu a fazer, mas não lembra como e quando.
- Quem de nós até agora, se destacou em fazer, aprender e ensinar tarefas difíceis?
- Nelin.
- Você lembra do sotaque dele, assim que chegou aqui?
- Pouco, talvez familiar. Mas foram por alguns dias, poucas frases, estava debilitado. Não percebo nenhum sotaque diferente, ele fala como um manasis.
- Exatamente! E por quê?
- Aprende rápido. É esforçado.
     Tabu começa a ficar impaciente com a teimosia do irmão.
- Quando Domar trouxe Nelin para a nossa aldeia, ela tinha o mesmo sotaque, que duraram poucas horas e logo falava como uma manasis. Ela também aprendeu rápido. Existe pouca diferença nas palavras e sotaques entre o manasis, amabis e urus. Todos bem diferentes e na ocasião foram usados por Nelin e Ydegart inicialmente.
- Confesso que não tinha dado tanta importância nestes detalhes. Se Nelin vivia próximo à região dos Urus, deveria pelo menos falar algumas palavras comuns desse povo, que não são usadas por nós.
- A mesma situação é válida para Ydegart. Ele não parece um amabis.
- Começa a fazer sentido.
- Na verdade, nunca soubemos realmente a origem de Nelin. Seus hábitos certamente não são dos urus. Vivia sozinha e nunca nos interessou em conhecer de fato as suas origens.
- Não havia necessidade para isso, além do que, essa desconfiança seria uma afronta para Domar, um manasis amado pelo seu povo – comenta Certia.
- Diga-me meu irmão, além de Nelin e Ydegart, de onde você lembra de ter escutado esse sotaque?
     Certia olha fixamente para Tabu. Procura mentalmente em suas lembranças antigas alguma referência e finalmente responde:
- Lembrei! Faz muito tempo, mas de fato foi Latem a primeira vez que escutei esse sotaque.
- Boa memória! Inclusive, foi Vazar do povo amabis, o primeiro entre nós a comentar essa diferença. 
- Tem razão Tabu. Era o mesmo sotaque.
- Sempre achamos que o sotaque de Latem era normal. Todos os que conhecemos ao longo de nossas vidas tinham sotaques diferentes ao falarem. Acontece também conosco, é natural, existem dificuldades no aprendizado. Mas no caso de Latem, Nelin e Ydegart são diferentes. Parece que eles falam a mesma língua, com o mesmo sotaque, com palavras comuns e conhecidas entre os manasis, amabis e urus.
     Certia cada vez mais fica mais curioso e lembra outro detalhe:
- Além de que, a aparência física de Latem é muito diferente de Nelin e Ydegart. Eles não se conhecem! De onde vem então esse sotaque?
     Tabu põe a mão numa pequena bolsa e retira um colar e mostra ao irmão:
- O que é isso?
- Pegue e olhe com calma.
     Certia se aproxima de uma fogueira, se abaixa e analisa o artefato:
- Pertence aos amabis, onde encontrou?
- Num local distante, de onde se encontrava o corpo do mensageiro amabis.
- Você voltou lá para procurar? Sozinho?
- Não tinha certeza do que encontraria, até que senti um cheiro diferente de animal. Notei que por onde seguia o cheiro, era fora dos campos de trigo, vinha dos arbustos baixos que estavam amassados. Era como se alguma coisa o tivesse pisoteado ou arrastado por algum animal. Foi então que encontrei este colar, o mesmo que os mensageiros usam e colocam nos mescas quando precisam de ajuda e colar não estava nele. Você lembra que antes de achar o mesca morto, Ascat comentou que a caçada havia sido um fracasso?
- Sim, foi estranho. Estamos entrando na boa fase de caça, isso nunca aconteceu.
- Quando havia predadores, todos os animais menores fugiam. Escondem-se, dificultando apreendê-los. E os únicos predadores que existem nesta região, vivem nos pântanos e ninguém nunca mais os viram.
- Mas, o que tudo isto tem haver com Nelin?
- Quando fui à tenda no dia que Ydegart foi levado para curar os seus ferimentos, Nelin já estava com ele, eu não havia autorizado Nelin, e sim Julaia, que me convenceu que a deixasse ficar um tempo com o estrangeiro. Disse que Nelin é muito dedicada e que deveria praticar suas habilidades médicas. Prestei meus cuidados e ao sair, vi como Nelin olhava para ele com especial interesse.
- Ela se apaixonou, interessou-se por ele, isso é bom para ela.
- Até aceito essa possibilidade Certia, ela vivia só com Ascat, é jovem e bela. Mas um pequeno detalhe me levou naquele mesmo dia ao local onde encontramos Ydegart.
- No campo vermelho?
- No mesmo campo onde retiramos a terra que fazemos a lama que cura as feridas. Longe do mesca, como se alguém o tivesse colocado lá.
- Você acha que foi Nelin?
- Não acharia. Sabemos que elas não vão para os campos de grãos, há muito que fazer nos seus ofícios na aldeia. Mas o detalhe que eu havia visto, quase por acaso, estava nos calçados de Nelin. Os solados estavam sujos de vermelho, com a mesma cor da terra, onde sabemos que só existe naquele lugar. Olhei o suficiente para ter certeza e nunca mais a vi usando esses mesmos calçados. Depois, encontrei-os já limpos na casa de Julaia, que disse que havia ganhado de presente, dado por Nelin.
- O que fez Julaia para que Nelin lhe desse um presente? – pergunta Certia.
- Não foi Julaia que deu o nome ao estrangeiro de Ydegart, foi Nelin. Julaia faria qualquer coisa para ajudar na felicidade da sua jovem amiga, a que lhe tem muito afeto como se fosse uma filha.
- Como descobriu?
- Não descobri – disse Tabu, olhando para os lados, certificando-se de que ninguém os ouvia – Julaia jamais daria um nome para alguém de Ydegart, não seria bom para as crianças. O que felizmente não aconteceu, pois ele se tornou um exemplo para elas, que também lhe dedicam muita atenção.
     Certia, diante de tantos argumentos, se deixa convencer de que Tabu estava certo em enviar uma mensagem para Latem. E a possibilidade de que o enigmático mensageiro de fato, venha a ser realmente o lendário Ydegart.  
     Há muito tempo que Tabu, Certia e Vazar, conheciam uma parte da verdadeira origem dos seus povos que foi revelada por Latem.
- Precisamos ter certeza Certia. E apenas Latem pode afirmar. Por isso que vou enviá-lo à montanha sem ele saber do que se trata. A mensagem que Porfi levou, ainda não tinha outros detalhes que foram aparecendo depois, aqui na aldeia.
- Entregará uma mensagem para Ydegart?
- Ela já está desenhada e fechada. Na primeira mensagem para Latem, havia dito que faria isso. Quando ele abrir, saberá que enviei Ydegart.
     Enquanto fala, um mesca se aproxima. Tabu com a mão sobre a cerca acaricia o animal.
- Ele não desconfiará?
- Não, Certia. Acredito que ele ainda esteja sem memória, não é dissimulado, como desconfio que Nelin seja. Apesar de todos os mistérios, Ydegart aparenta ter um espírito nobre e bondoso. Farei que siga pela trilha da montanha direto para a caverna de Latem e com sorte, encontrará Porfi. Este mesca já se apresentou como voluntário. Peça a Ascat que faça os preparativos da viagem.
- Tudo bem farei o que pede, mas ainda não entendi. O que Nelin tem haver com tudo isso?
- Ainda não sei meu irmão. Mas vamos descobrir, devemos observá-la com cuidado, ela é esperta e pode perceber. Nunca estive a vontade com sua presença entre nós, apesar da sua beleza e do seu jeito meigo e dedicado.
- É certo também, nunca havíamos tido motivos para desconfiar dela, sempre prestativa e amável – lembra Certia.
     Na casa de Ascat, Nelin se aproxima de Ydegart e o convida para passear pela aldeia. Ele aceita e ambos saem abraçados para o lado oposto em que Tabu e Certia seguiram.
- Ainda preocupado com a falta de memória?
- Está me atormentado cada vez mais, acho que vou enlouquecer. Faço um esforço para tentar me lembrar de algo mas não consigo. Não sonho com nada, que não seja daqui da aldeia.
     Nelin se compadece com a tristeza de Ydegart. Convida ele para sentar sobre um banco de pedra baixo e fala com ternura.
- Ydegart, você vai ficar bom, acredite.
- Você fala com tanta certeza.
- Tenho algo para lhe entregar, um presente – Ela sorrir, retirando um objeto escondido nas vestes.
- Um bracelete? Muito bonito, é diferente.
- Fui eu que fiz. Ponha no braço, acho que acertei o tamanho do seu pulso.
- Perfeito! Obrigado.
- Alguém já lhe disse que é costume entre os noivos manasis dar presentes?
- Não, ninguém falou, talvez por que acham que eu saiba.
     Ydegart pensativo olha para o bracelete:
- O que devo dar de presente para a minha noiva?
     Nelin faz um pequeno teatro, sorrindo e fazendo gestos de que não ainda não sabe o que pedir.
- Conheço esse olhar.
- Quero fazer uma viagem com você.
- Uma viagem? Para onde? Não me lembro de nada além dos limites da aldeia?
- Quando eu estava com o povo Urus, ouvi falar de um ancião muito sábio. Ele vive em algum lugar daquelas montanhas, seu nome é Latem. Tenho certeza que ele poderá trazer a sua memória de volta.
- Mas nem Tabu que conhece a arte da cura como ninguém, não sabe com fazer isso?
- Talvez ele não tenha aprendido e ninguém na aldeia nunca tenha perdido a memória. Antes de vir para cá, conheci histórias incríveis sobre este ancião. Tabu é muito bom no que faz, não há dúvidas, mas não é sábio o suficiente para lhe curar. Quando você retornar dessa missão, poderíamos procurar Latem e depois seguir numa viagem só nossa.

- Gostaria que fosse comigo nessa missão, acharíamos Porfi juntos.
- Não Ydegart, Tabu está certo, nenhum mensageiro costuma levar as suas esposas numa missão. Eles confiam em você e sabe que poderá ajudar em saber o que houve com o atraso de Porfi. Esse presente você poderá me dar depois, quando tudo estiver esclarecido.
- Você tem razão. Nosso casamento está próximo, isso me faz feliz e confiante.
- Quero você de volta.
- Voltarei o mais rápido possível.
- Estarei aqui lhe esperando – sorrir Nelin, beijando-lhe a face.
     Na montanha, Porfi e Camar se aproximam da gruta onde mora Latem. Eles sentem o cheiro de fumaça e observam uma luminosidade num pequeno platô. No céu, centenas de anilos retornam ansiosos para seus abrigos.
- Uma fogueira! É um bom sinal! – alerta Camar.
- Onde ele está? Como devemos chamá-lo?
- Você é um mensageiro manasis, deve saber!
     Porfi junta as mãos semi-abertas próximo à boca e faz um assovio longo e decrescente, um típico chamado manasis quando se aproxima. Demora um pouco e reinicia o assovio, mas sem sucesso, ninguém responde.
- Tem certeza que é aqui?
- Sim, tenho certeza, jamais esqueci a imagem destas pedras pontiagudas.
- São pirâmides - disse uma voz firme e grave.
     Porfi e Camar olham para traz e se assustam. Observam a aproximação súbita de um ancião de estranha aparência física, diferente de tudo que haviam vistos. Tinha uma estatura mediana harmoniosa, saudável e vigoroso.
     Superado o impacto inicial, tentavam comparar suas vestes, que em nada lembrava as típicas peles e couro de mescas, no entanto parecia flexível e leve como uma folha. Latem usava na verdade, um roupão de puro linho, confeccionado com as fibras de uma planta inexistente no Planeta Gir.
     Latem conduzia uma pequena cesta, contendo alguns arbustos, flores e frutos típicos da montanha, raríssimos de serem encontrados. Ele passa direto pelos dois viajantes e se aproxima do mesca, que vocaliza animado ao ver comida na mão de um velho conhecido.
     Latem põem a cesta no chão e o mesca come o que lhe é oferecido.  Porfi, ainda timidamente, inicia uma apresentação.
- Meu nome é Porfi, sou o novo mensageiro dos manasis, procuro Latem.
     O velho, acariciando o pescoço do mesca, olha para Porfi.
- O assovio manasis é bem vindo nestas montanhas Porfi, eu sou quem procura.
- Este aqui é um vigilante dos amabis seu nome é...
- Camar – interrompe Latem – Faz muito tempo que esteve aqui com seu pai.
    Camar olha para Latem com atenção, o reconhece facilmente, mas estava confuso e curioso. Pelo tempo em que esteve na montanha com seu pai, ele deveria está bem mais velho e tinha a mesma aparência de antes.
     Porfi se aproxima respeitosamente e entrega a mensagem para Latem. Ao abrir, ele balança levemente a cabeça, com se confirmasse algo que eles não sabiam.
- Latem! Nosso povo foi atacado por feras horríveis, apenas eu sobrevivi! – disse Camar, ansioso.
     O ancião olha para os dois amigos:
- Sei do acontecido. Fico feliz de vocês terem chegado até aqui.
- Latem, estou preocupado com o meu povo, os manasis – revela Porfi.
     Latem dobra a mensagem e os convida para entrar numa caverna.
- Devem está cansados da viagem. Vamos, entrem! São meus convidados, no momento certo falarei com vocês sobre essas coisas.
     Porfi e Camar obedecem a Latem. Eles seguem o misterioso ancião, subindo um pouco mais até a gruta e mais uma vez se surpreendem com duas chamas altas e flamejantes de cada lado da entrada.
    Ao entrarem uns cinco metros no interior da gruta, Porfi e Camar sentem um agradável aroma de comida. Deparam-se com uma mesa de pedra, habilmente entalhada e bem servida de alimentos e caldo quente.
     O mesca entra na gruta e segue, como se já soubesse, para um lado reservado, próximo a entrada. O animal deita-se tranqüilamente, iniciando um sono profundo.
- Estão com fome? Podem comer a vontade!
     Sem cerimônias, Porfi e Camar aceitam o convite, degustando com prazer, o exótico jantar preparado por Latem. O anfitrião os acompanha na refeição utilizando facas, colheres e garfos para manusear os alimentos, utensílios estranhos para os convidados, com exceção das facas.
     Porfi e Camar não abandonam o hábito, usam as mãos para comer. Os dois viajantes chegam a sorrir felizes por tão grata recepção. Porfi se convence de que os seus receios em relação a Latem eram exagerados. Ele observa a gruta com curiosidade e sente um reconfortante bem estar.  
     Apesar do frio e das noites que se aproximam, rigoroso nestas paragens da montanha, Porfi e Camar sentem um pouco de calor, desfazendo-se de algumas vestes. Eles não vêem nenhuma fogueira, mas percebem que em algumas fissuras e pontos das paredes da caverna, um ar quente se dissipa.
     Latem se afasta dos viajantes, abre uma caixa e retira um pequeno graveto, riscando-o na parede. Com o atrito, surge uma pequena chama, Porfi e Camar recuam instintivamente, impressionados com o feito. Eles observam Latem com a chama, acendendo alguns vasos espalhados nas paredes da gruta. Porfi não resiste à curiosidade e pergunta:
- Agradeço a sua hospitalidade Latem, sua comida é muito saborosa, de tempero desconhecido para nós.
- Obrigado, fico feliz de terem apreciado.
- Vejo que não usa fogueira na caverna.
- Faz muita fumaça, mancha as paredes – responde Latem, esboçando um sorriso discreto.
- É quente aqui dentro e muito bom, de onde vem?
- Do interior da montanha, é preciso um pouco de calor para viver aqui.
- Esses vasos...não tem pedras de fogo, como a chama fica acessa?
- Óleo – responde pacientemente Latem.
     O ancião mostra um pouco da substância e acede pequenos pavios de fibra vegetal em vasos rasos, repondo-os em seguida no alto da parede, usando uma haste de metal.
- É bom para manter o fogo nas tochas.
- Óleo? De onde vem?
- Destas sementes que estão nesse cesto.
     Porfi olha para a entrada da gruta, iluminada pelo que entendeu serem as tochas que Latem havia comentado. Ele se aproxima de Camar, que havia terminado a refeição e estava alheio as suas perguntas. Levemente, sacode o ombro do amigo que visivelmente cansado da viagem, ensaia curtos cochilos.
     Latem convida para seguirem para outro compartimento da gruta, próximo de onde estão.
- Aqui vocês podem dormir tranqüilos, estão seguros. Sei que muitas coisas nessa caverna parecem estranhas, mas não se preocupem. Aqui tem uma jarra com água. Tenham uma boa noite.
     Porfi e Camar se acomodam entre confortáveis e limpas peles de mescas, doadas a Latem por antigos viajantes. Ao deitarem, percebem uma pequena abertura no teto da gruta, tipo uma clarabóia, que areja o ambiente permitindo entrada de luz e ventilação. Eles se distraem olhando uma parte do céu e as estrelas. Escutando o zunir do vento frio da montanha, eles adormecem. Mas em pouco tempo, ambos acordam apavorados.
- Porfi! Porfi!
- Estou aqui!
- Está ouvindo isso?
- Sim! Que barulho é esse?
- Não sei! Parece de animais! Não é do vento!
     Porfi se levanta, andando cauteloso e se apoiando pelo canto da parede da gruta. De longe, observa o compartimento em que o mesca se encontra, hibernando tranquilamente.
- O mesca está bem! Eles são rápidos em perceber o perigo, mesmo dormindo, seus instintos são mais fortes – fala Porfi, em voz baixa.
- É melhor você retornar! Latem disse que coisas estranhas acontecem, disse que estamos seguros! Volte prá cá! – fala Camar, gesticulando.
     Os sons aumentaram de intensidade, os dois viajantes ficam mais próximos entre as peles, aterrorizados.
- Parece alguém falando, brigando e cantando ao mesmo tempo!
- Fique calmo Porfi, deite-se, estamos na casa de Latem. Sempre escutei histórias estranhas dos mensageiros sobre este lugar!
     Porfi retorna para as peles.
     Após alguns minutos de tensão, os viajantes escutam a voz de Latem.
- O que está havendo? – pergunta Porfi, ainda assustado.
- Não sei. Parece que Latem também escutou, disse alguma coisa.
- Parou! – disse Porfi, pondo rapidamente a mão sobre o braço de Camar.
- Que bom. Graças aos deuses! Seja lá o que for já foi embora.
     Um agradável e suave cheiro de incenso emana da escadaria de onde Latem se encontrava, fazendo os viajantes relaxarem e sentirem uma paz acolhedora. Um pesado sono recai sobre Camar. Porfi ainda desconfiado resiste, mas aos poucos se deixa dominar pelo cansaço, suas pálpebras pesam e num lento e último olhar para a abertura do teto, vislumbra a sombra de um animal semelhante a um grande lobo, de pelos negros azulados, sorrateiro, com passos silenciosos. Sua respiração é percebida pela fumaça morna que sai de sua boca. O animal para, observa Porfi com atenção, seus olhos reluzem com a pouca luz do ambiente. Porfi está dominado pelo sono, não consegue sentir medo, nem reagir. Confia na lembrança de Latem, onde escuta claramente sua voz na mente “não se preocupe Porfi, está tudo bem”.
     Em seus aposentos, Latem está recostado em um trono de pedra confortavelmente recoberta de peles nobres. Ele acaricia um pequeno animal, enquanto outros da mesma espécie circulam descontraídos e ativos. Envolvido em pensamentos, Latem levanta-se decidido e segue para outro ponto da gruta, descendo uma escadaria de pedra. Ele chega num salão largo, na qual possui no centro um grande reservatório, raso e circular, com água cristalina, alimentada por uma cachoeira subterrânea, que desce oculto da montanha.
     Latem passa ao lado do reservatório e põem a mão na parede e esta abre um pequeno nicho, contendo saliências luminosas com três combinações simbólicas. Ele pressiona cada uma seqüencialmente, acendendo uma luz vermelha no interior do nicho.
- Pronto! Está feito. Espero que cheguem logo.
     O nicho se fecha.
     O pequeno animal se aproxima, encosta na perna de Latem que segue de volta ao trono de pedra, tomando assento.
     O tempo passa e um novo e agradável cheiro de comida desperta Porfi e Camar. Eles se levantam demoradamente.
- Nunca dormi tão bem na vida – diz Camar.
- Também não – confirma Porfi que ainda sonolento olha para a clarabóia do teto – Camar! Olhe isso!
- Não pode ser?
     Eles saem às pressas para fora da gruta e encontram um belo amanhecer.
- Já é dia? – surpreende-se Porfi.
     Latem surgi por trás com um balde de madeira contendo água para o mesca que já estava alimentado.
- Dormiram bem?
- Tivemos apenas uma noite? – pergunta Camar.
- Na verdade duas.
- Dormimos duas noites seguidas? Mas pareceu apenas uma noite? – indaga Porfi.
- Seria bom que sempre fosse assim, não acha? – comenta Latem.
- Não entendo? Como isso é possível? Dormimos como mescas? – disse Porfi.
     Latem os observa com cuidado:
- Não gosto de noites longas. Mas acalmem-se, vamos comer um pouco, vocês precisam está fortes para uma missão importante.
- Que missão? – pergunta Camar.
- Explico tudo depois. Por aqui já terminei, o mesca está pronto. Porfi me entregue agora o colar dos manasis.
     Porfi dá um passo atrás, não concorda com o pedido de Latem.
- Não posso! Preciso dele! E minha missão está concluída, preciso voltar para a aldeia, meu povo deve está preocupado com a minha demora.
- Seu povo também está em perigo Porfi.
- Como sabe?
- É uma longa história mensageiro. Os manasis terão o mesmo destino dos amabis e urus. Preciso de toda ajuda possível.
- O povo urus? Também foram atacados? – pergunta Camar, aflito.
- Sim. E o mesmo acontecerá com os manasis.
- Mas como? O que está acontecendo? Preciso voltar! - Porfi se dirige em direção ao mesca.
     Rapidamente Latem faz uma pergunta:
- Conhece a lenda do Ydegart?
     Porfi reduz o ímpeto, para e olha para trás.
- Sim! Todos nós conhecemos um pouco, mas o que tem haver com tudo isso?
- Muito mais do que imagina mensageiro. O Ydegart voltou e com ele uma nuvem de sofrimento e desordem que precisa ser resolvido.
- Preciso avisar meu povo!
- Se quer realmente ajudar seu povo, terá que fazer do jeito certo.
     Camar se aproxima de Porfi e olha para Latem:
- Mas Latem! Como faremos isso? Nosso povo sempre lhe foi grato, nossos ancestrais aprenderam muito com os seus ensinamentos. Muitos mensageiros foram salvos e protegidos por você. Estamos assustados e confusos, você nos pede uma confiança, mas não sabemos que...
- Confie nele Camar! – surgi uma voz da gruta, os viajantes olham para trás.
- Tiri! – surpreende-se Camar.
     Ainda se apoiando num cajado, o mensageiro dos amabis se aproxima.
- Você está vivo!
- Sim Camar. Latem me salvou. Confie nele, é sábio e fala a verdade. Estamos todos em perigo.
- Mas! O que aconteceu mensageiro? – pergunta Porfi reconhecendo-o.
- Na noite em que as pedras caíram do céu, eu estava abrigado na última gruta na descida da montanha. Havia saído um pouco antes da luz chegar. Ao passar pelo lago no Vale do Sial, na trilha da aldeia, fui capturado por uma fera voadora, parecia um grande anilo negro. O mesca conseguiu fugir, nunca vi um animal correr tão rápido. Fui erguido às alturas e depois me soltaram a alguns metros do chão, acho que desmaiei, não lembro ao certo, foi tudo muito rápido.
- E onde você estava? – pergunta Camar.
- Acordei novamente voando alto, nas garras do animal, sem minhas vestes. Estava sendo levado para o outro lado da montanha, quando a fera foi ferida por uma alguma coisa e gritou enlouquecida. Ela foi perdendo forças, senti que me largaria no abismo por onde seguia. Segurei firme em suas patas escorregadias e ao passar perto das pedras da montanha pulei. A fera caiu mais adiante, parecia morta, tinha algo espetado em seu pescoço.
- Um dardo– completa Latem.
- Dardo?
- Sim Porfi, uma arma de sopro simples e antiga, mas eficiente. A fera não está morta, apenas dormiu por algumas horas, o dardo é de uma ponta de espinho de planta venenosa que paralisa o corpo.
- Uma arma? – surpreende-se Camar.
     Latem anda alguns passos e senta numa pedra:
- Fui avisado. Que uma dessas feras havia capturado um mensageiro, felizmente cheguei a tempo para impedir que fosse levado até o destino errado.
     Porfi insiste em respostas:
- Mas quem avisou?
- Um amigo. Seu nome é Seth.
- Seth? De que aldeia?
- Uma aldeia muito antiga, não é deste mundo.
Porfi, Camar e Tiri se entreolham atônitos.
- Mensageiro! – repete Tiri – Seu povo também está em perigo, confie em Latem, ele sabe o que faz!
- Você disse que estava sem suas vestes, são estas? – Porfi retira uma vestimenta de um bornal.
- Sim! São minhas! Onde achou?
- Estava com um mensageiro perto da nossa aldeia, depois dos campos. Com ele achamos esta mensagem, um convite de casamento dos amabis.
     Tiri observa com cuidado a mensagem e confirma que também lhe pertencia.
- Era esta a mensagem que eu levaria para Certia tenho certeza! Qual era o nome do mensageiro?
- Não sabemos, estava sem lembranças. Minha missão era seguir até a aldeia amabis e descobrir quem ele era. Deveria avisar a sua família que ele estava sob os nossos cuidados.
- O que aconteceu com ele?
- Estava se recuperando no momento em que eu partia para essa missão. Ele parecia confuso.
- Não tinha outro mensageiro, Camar pode confirmar isso, eu sou o único.
- Ele já confirmou. Depois de chegar à aldeia dos amabis eu teria que vir até aqui, entregar outra mensagem para Latem.
- A mensagem que você trouxe é de Certia, ele diz que seu povo está com problemas e que algo de estranho aconteceu.

     Porfi olha para Camar e lembra-se da história por ele contada a respeito dessa frase “algo de estranho aconteceu”.
- Mas se meu povo está em perigo, por que temos que devolver o mesca? Se ele chegar apenas com o colar, pensarão que eu estou em perigo, que preciso de ajuda e enviarão outro mensageiro até aqui.
     Latem se levanta em direção a Porfi:
- E nós precisamos de ajuda sim. Acredite nisso. Vamos meu jovem, entregue o colar. Preciso liberar o mesca o mais rápido possível, sua jornada será difícil.
     Porfi retira devagar o colar e ele mesmo põe sobre o pescoço do mesca, executando um assovio de lamúria. O mesca vocaliza alto e parte em disparada pela trilha, em direção da aldeia dos manasis.
- Ele não quis vir por esse caminho antes.
- Eu sei Porfi. Não poderia vir por essa trilha, deveria seguir pelos campos até a aldeia amabis e passar na volta por aqui, pelo outro lado da montanha.
- Mas como fez isso? A subida da trilha está distante.
- Não fiz, Seth é que fez. Vamos comer, precisamos de forças para aproveitar a luz do dia.
     Ao entrarem na gruta, logo se distraem com a visão da comida, colorida e aromática.
- Não estamos acostumados com essa comida – disse Porfi.
     Latem olha para Porfi:
- Posso providenciar outro alimento se preferir.
- Não queria ofender, quis dizer que nunca comi nada assim, estes frutos? São da montanha? De outros campos?
- Sim, de outros campos. Mas de um lugar distante que conheci antes de viver nessa montanha. Esses frutos e sementes eram abundantes e muito apreciados pelos seus nativos. Existe um pequeno vale aqui perto, entre as montanhas, onde cultivo estes frutos. Isso aqui se chama pão, é feito com uma farinha chamada tjeret. Aqui tem um pouco de figos secos, passas, carne seca com ervas, raiz de chufa e frutos chamados de tâmaras. Com este fruto, prepara-se esta bebida, a seremet. Mas cuidado! Bebam pouco se não ficarão tontos.
- Tudo isso é novo para nós – disse Camar – Mas é muito bom. Gosto de comida e de prepará-las.
     Latem balança a cabeça sorrindo e afirmando o comentário de Camar.
- Sei que tudo isso é novidade – inicia Latem – Mas tentarei explicar aos poucos para que possam entender e me ajudar.
     O ancião bebe um gole de seremet, um tipo de cerveja de fabricação rústica.
- Latem, na noite em que dormimos, escutamos barulhos horríveis, pareciam animais duelando, o que são? – pergunta Porfi.
- Gatos. São pequenos animais – sorrir Latem – Gosto deles, me fazem companhia quando Seth não está por perto.
- Gatos? Nunca ouvi falar desse animal? Como são? – pergunta Camar.
     Tiri responde a pergunta:
- São pequenos e muito interessantes, um tipo diferente de dromis, são mais delicados e inofensivos.
- Dromis? Eles ainda existem? – pergunta Camar.
- Um grande grupo ainda vivem do outro lado da montanha – responde Latem – Eles têm dificuldades para atravessarem o rio e o precipício que os conduziriam até aqui.
- Não gosto de dromis! Apesar de nunca ter visto um, apenas nos desenhos. Diga-me Tiri, você já viu estes... gatos?
- Sim Porfi. Não fazem mal nenhum, quer dizer, às vezes fazem algum barulho quando não se entendem, mas obedecem a Latem. As fêmeas de gatos quando estão no cio provocam brigas entre os machos e quando alguns deles ganham a disputa pela fêmea, tem outro trabalho para possuí-las.
     Porfi e Camar se esforçam para não sorrir, lembrando do susto que tiveram na primeira noite.
- De onde os trouxe, são considerados animais sagrados – informa Latem.
- E onde estão os gatos? – pergunta Camar.
- Dormindo. Gostam muito de dormir e durante a noite estão espertos. Então vão caçar os filhotes dos anilos. Algumas vezes aparecem de dia, curiosos com alguma movimentação aqui fora.
- Gosta de animais? Isso é um bom sinal – disse Camar.
- Tenho admiração por alguns deles, são espertos e percebem coisas que nós não vemos. Os dromis têm pavor de gatos e apesar de grandes e fortes, são rápidos como eles. Mas a cabeça de um dromi é diferente, são cobertas por uma pele formando um tipo de aba atrás das orelhas que são largas e duras, apurando a sua audição.
- Seth também é um animal? – pergunta Porfi – Quando eu estava adormecendo, vi uma criatura estranha e grande me olhando pelo buraco do teto e não foi sonho, nunca vi nada parecido nem escutei em nossas histórias, seus olhos eram grandes e em brasas.
- Foi Seth com certeza. Ele foi conferir se vocês estavam bem, já os conhece.
     Camar acha estranho:
- Nos conhece?
- Desde o momento em que subiram a montanha, Seth observava de perto a sua jornada até aqui.
- Mas o mesca não percebeu nada – comenta Porfi.
- Este e muitos mescas de mensageiros que passaram por aqui já conhecem Seth. Sabem que não é uma ameaça, ao contrário, é um amigo e guardião desse lado da montanha.
- Muito interessante. Mas acho que os mensageiros deveriam saber disso – Sussurra Porfi.
     Latem tenta ser o mais discreto possível:
- Seth ajuda na proteção dos mensageiros e dos mescas, é também é um vigilante como você Camar. Mas Seth, apesar da sua aparência assustadora para alguns, é um fiel aliado e conhece bem este mundo de Gir. Não me parecia justo que um mensageiro se deparasse com ele, seria desnecessário.
- Então Seth não é um animal?
- De um jeito ou de outro, todos nós somos animais Porfi. Conhecerão Seth em breve. De onde vim, trouxe outras criaturas, mas estas são mais perigosas.
- Perigosos? Outros? – pergunta Tiri, achando que já sabia de todas as criações de Latem.
- São crocodilos e estão logo abaixo, vivem no grande rio deste lado da montanha – aponta Latem - São animais grandes e rastejantes de boca comprida e dentes poderosos. São solitários na maior parte da vida, mas sempre ficam juntos nos locais onde tem mais alimentos. Um adulto é extremamente forte e agressivo, seu couro é grosso e o protege de qualquer ataque, seu único ponto fraco são os olhos, mas a noite são como os gatos, enxergam no escuro. Podem não ser vistos no rio, por que conseguem passar muito tempo debaixo d’água.
- Então são eles que devoravam nossos mensageiros e caçadores? – pergunta Camar.
- Não! Comem os predadores que matavam vocês, os dromis. Seth e eu sempre evitamos que os predadores dromis chegassem até aqui e atingisse o pacífico vale. Seria impossível um mensageiro sobreviver, seus povos e mescas seriam devorados como antigamente, quando tentavam explorar novos caminhos do outro lado da montanha e nos pântanos. Os dromis caçam em grandes grupos, são rápidos, fortes e não temem o fogo. E para chegar aqui os dromis precisam passar pelo rio. Mas antes, existia uma trilha fácil, que eles conseguiam chegar dando pulos extraordinários de uma rocha para outra, numa parte estreita do precipício. Felizmente, outras e antigas pedras que caíram do céu destruíram essas passagens, dificultando o trabalho dos dromis.
- Então, esses...cro...co.. – soletra Porfi.
- Crocodilos – repete Latem.
- Croco...dilos! Nunca atacaram nosso povo?
     Latem responde não querendo revelar detalhes do seu controle sobre os animais
- Não. Acho que não gostariam do sabor.
     Tiri deixa escapar um sorriso.
 - Nosso povo nunca poderia passar pelos crocodilos e se tentassem saberiam do perigo que os esperavam na água. Não arriscariam suas vidas nem mesmo para caçá-los.
- É verdade – disse Latem – O rio é muito longe de suas aldeias que possuem lagos, terras férteis e animais pequenos e inofensivos para caça. Alguns crocodilos seguiram para o pântano, que ainda era uma trilha onde uns poucos dromis apareciam. Não tiveram sorte, sempre eram mortos. Mas, se alguns desses dromis chegavam a encontrar um caçador ou mensageiro desavisado seu fim será triste. Os dromis são as legítimas criaturas desse mundo, querem retomar seu antigo território de caça onde vivem os numerosos mescas. Eles escalam as pedras com muita habilidade evitando cair no rio, são resistentes ao frio das noites e podem passar muito tempo sem comer.
- Não se sente inseguro, sozinho nesta montanha? – pergunta Camar.
- Um pouco solitário às vezes. Descobri uma passagem segura para os mensageiros pela montanha, encurtando suas jornadas entre as aldeias. Assim recebo visitas, notícias e alguns presentes, isto me alegra.
- Muitos de nós temos medo de você, das histórias dessa montanha – revela Porfi.
- É natural mensageiro. Tenho hábitos discretos e não participo diretamente da vida dos povos desses vales, apenas tento ser útil aqui onde vivo.
- Mas qual aldeia você pertence? Você diz que não é daqui?
- Não pertenço a nenhuma aldeia. A minha aparência humana poderia incomodar. – Diz Latem, enquanto afasta uma mecha de cabelo grisalho da testa.
- Humana?
- Sim humana. Uma raça distante e desconhecida de vocês. Por isso a nossa aparência é diferente e também não é vista em seus desenhos.
     Porfi se preocupa com outras ameaças:
- Algum dromis já chegou até aqui?
- Sim algumas vezes, eram muito ousados, tentavam nos atacar, descobrir nossas fraquezas e surpreender-nos. Mas Seth fez bem o seu trabalho, marcou o território eliminando alguns deles e os crocodilos também ajudaram. Os dromis agora estão bastante reduzidos. Uma parte seguiu para outras regiões, o que não os deixam menos perigosos, é claro.
- Não consigo imaginar como trouxe do seu... outro mundo, esses croco...dilos para cá – disse Camar.
- Trouxe poucos ovos, nasceram pequenos, filhotes adoráveis. Criava-os em um reservatório próximo aos meus aposentos. Mas, para alívio dos gatos, um volume maior de água vindo da cachoeira, os levou para uma fenda na parede da gruta. Os filhotes viajaram por quase toda a montanha caindo no rio. Vi que era bom para eles, tinha muito espaço, comida farta e protegeria aquele acesso pelas montanhas. Depois se reproduziram e cresceram mais do que deveriam, se deram bem nesse lugar e me convenci que seriam úteis na proteção na parte baixa da montanha. Sempre vou visitá-los, todos eles me conhecem.
- Fez tudo isto para nos proteger? – pergunta Porfi.
- Sim! Fazia parte de um pacto.
- Um pacto? Com quem?
- Com Ydegart – responde Tiri, poupando Latem.
     Latem caminha e pondo a mão no ombro de Tiri continua as suas explicações:
- Existem muitas lendas e versões, uma delas diz que Ydegart salvou seu povo da tirania de um ser poderoso que pretendia escravizá-los. Em troca, deveria servi-lo por toda a eternidade, até dominar as estrelas, que chamo de universo. Ydegart trouxe a sua família e uma pequena parte de outros povos amigos para este mundo, desaparecendo depois, misteriosamente.
- É lenda ou verdade? – pergunta Porfi, curioso.
- É verdade. O ser poderoso que dominava os tiranos de seu povo chama-se Viga.
- Viga? Nunca ouvimos falar. É uma deusa?
- Alguns a chamam assim. O que seus ancestrais não disseram, é que Ydegart confiou seu segredo a poucos amigos e parentes, que se tornaram guardiões de alguns conhecimentos. Com o tempo, as histórias sobre Ydegart foram se misturando, virando contos e lendas.
- E o que aconteceu com ele?
- Bem Porfi. Nunca mais foi visto e durante muito tempo, seu povo espera o seu regresso. Ydegart disse: “O pensamento me trará de volta”.
     Camar interrompe Latem:
- Onde está Ydegart?
- Na aldeia dos manasis, ele é o mensageiro “sem lembranças!” O Ydegart voltou na noite em que as pedras caíram do céu. Eu sabia que a sua volta chegaria em torno de muitos acontecimentos estranhos, por menores que fossem. Então, criamos uma aliança secreta com os manasis, amabis e urus, para ficar atento ao que seria de “estranho” e que pudesse anunciar a volta de Ydegart. Infelizmente, no passado, devido à partilha de terras, água e caça, alguns grupos rebeldes não conseguiram manter os povos irmãos unidos, havendo guerras e mortes durante muito tempo.
- Como sabe de tudo isso sobre o nosso povo?
- Também escutei muitas histórias e lhe garanto que as que conto são verdadeiras.
- Não consigo imaginar nossas aldeias em guerra – disse Porfi.
- Mas isso faz muito tempo, jovem mensageiro. Até quando, algo de extraordinário aconteceu.
- O que aconteceu? – pergunta Camar, atento.
- Os três povos unidos, conseguiram vencer os rebeldes e a paz se estabeleceu. As suas armas de guerra não foram mais fabricadas e durante gerações, os mais velhos se encarregaram de apagar esse conhecimento, nunca mais houve conflitos.
- Conheço essa história. Os manasis, amabis e urus se uniram, sempre fomos  bons vizinhos - disse Porfi.
     Latem volta a sentar na pedra e pede a atenção:
- O que eu vou dizer a vocês é muito importante e verdadeiro. Ydegart e seu povo correm perigo. Aqueles que servem Viga retornaram para se vingar e vamos precisar de ajuda.
- Então tudo isso é mais sério do que eu pensava!
- Sim Tiri. Muito mais sério.  
- Eles possuem armas? São dardos?
- Não, Camar – sorrir Latem, com sabedoria – Armas muito mais poderosas do que você possa imaginar.
     Porfi quer saber como ele dormiu tanto e Latem responde com sinceridade:
- Usei um incenso de kyphi, uma fumaça de ervas medicinais. De onde estive, foi muito usado em cerimônias religiosas para dormir, acalmar e trazer bons sonhos. Cheguei a entregar algumas ao seu povo, ensinei a cultivar.
- Já vi Certia usando algumas vezes, mas nunca imaginei que poderia fazer isso.
- Os amabis e urus também usam.Vocês descendem de um único povo assim como antigos inimigos que viviam do outro lado desse mundo. Todos vieram da mesma região de estrelas. Ydegart é seu ancestral comum, o mais antigo. Os manasis, amabis e urus são a sua família mais próxima.
- Ydegart está de volta e viemos de outro mundo? – Disse Porfi, surpreso e pensativo.
- Não entendo. Como se pode viver tanto? – Indaga Camar.
- Há muitas coisas difíceis de explicar agora, vigilante.
- Imaginava que você estaria mais velho. Como também consegue vencer o tempo? A morte?
- É uma longa história meus amigos. Será difícil de ser explicado. Mas vocês poderão conhecer mais de suas origens pelos desenhos, sigam-me! Tenho que mostrar algo para vocês.
     Todos descem para o outro lado do platô, no caminho das pedras de pontas que Latem chama de pirâmides. O vento é forte e ruidoso. A paisagem dos vales baixos ainda está coberta de nuvens, que vistas daquele ponto da montanha, revela raras belezas de cores do Planeta Gir. No céu, chiados de anilos, que voam em direção aos campos para se alimentarem, aproveitando a luz que se inicia. Ao entrarem em uma nova câmara, em outra gruta, Latem risca uma pedra produzindo fogo e acende alguns pavios de vasos com óleo inflamável. Quando a gruta se ilumina, todos ficam impressionados com os desenhos coloridos. São histórias de outros mundos e do Planeta Gir, o sacrifício de Ydegart pelo seu povo e as guerras entre as aldeias. Porfi, Camar e Tiri, não sentem nenhuma dificuldade em compreender um pouco das suas origens diante de todo aquele grafismo espalhados por vários metros de parede.
- Nossa história, desenhada nas pedras. Então é verdade! Não somos deste mundo? – disse Porfi.
- Não mensageiro. Nenhum de nós – completa Latem, com melancolia – Tomamos este mundo emprestado, somos fugitivos do nosso verdadeiro mundo.
- Você também? 
- Sim Tiri, é nessa condição que agora me encontro. De um lugar ainda mais distante e desconhecido. Mas antes de vir para cá, cheguei a viver em um planeta, muito bonito e maior que este, que chamariam depois de Planeta Terra.
- E onde está seu povo? Seu mundo?
- Estamos tentando retornar para ele.
- Estamos? Há mais do seu povo vivendo aqui?
- Não aqui, mais espalhados por este céu. Mas o que importa agora é achar seu povo e os demais, protegê-los como sempre fizemos. O mesca retornará em breve trazendo Ydegart, ele sim, poderá fazer muito por nós. A sua missão é árdua e ainda não terminou.
- Ydegart virá aqui? – pergunta Porfi.
- Sim, mas nem ele mesmo tem consciência ainda de quem é. Serei eu que o farei lembrar. Será arriscado, não saberei ao certo de como reagirá. Sua mente está bloqueada com lembranças sombrias e cruéis que lhe envenenaram o espírito. Mas por enquanto, é a nossa única esperança contra o domínio de Viga.
- Continuamos assustados e surpresos com tudo isso – disse Porfi, enquanto toca os desenhos com cautela e suavidade – Como poderemos ajudar? Somos fracos, não usamos armas, não somos violentos?
     Latem responde com altivez.
- Mas amam seu povo. Conhecerá a coragem adormecida em seu ser, uma sagrada herança dos seus antepassados.
- O que precisamos fazer? – pergunta Tiri, ansioso.
- Enquanto Ydegart não chegar, vou ensinar vocês a usar algumas armas, precisam aprender a se defender e atacar.
- Usar armas?
- Se necessário, sim! Vocês querem ser devorados por gruns e dromis?
- Não! Claro que não! Aceitamos o seu ensinamento.
     Camar fica triste lembrando do seu povo. Latem percebe:
- Não tema amigos. Os gruns não comeram suas famílias e amigos. Suas ordens são apenas para capturar.
     Olhando para Latem com um pouco de esperança Camar pergunta:
- Com pode ter certeza disso?
- Encontraríamos suas vísceras. Agora todos devem se esforçar em pouco tempo, para aprender a usar as armas corretamente. Mas existe também, uma arma muito poderosa.
- Qual seria? – pergunta Tiri.
- Conhecer a fraqueza do seu inimigo. É preciso mais do que armas e coragem para enfrentá-los, é preciso sabedoria e paciência.
- Ensinará tudo isso para nós?
- O suficiente para a missão, mais antes precisam conhecer alguns aliados.
     Porfi continua concentrado, interpretando os desenhos na parede. Ele fica parado diante de um cenário, onde um dromis gigante está montando guarda na frente de uma pirâmide muito alta.
- Latem! O que significa isto? Você disse que os dromis são inimigos, mas se entendi estes desenhos, aparecem como aliados?
- Você é muito observador mensageiro. Houve uma época, que este mundo era habitado por muitas raças de dromis. Seu criador era um deus, chamado Snefru. Era amigo de outro deus, chamado de Rá. O Deus Snefru havia terminado a sua obra de criação e partiria para junto dos seus semelhantes, que fica onde as estrelas seguem. Antes de partir, o Deus Rá convenceu o seu amigo para acompanhá-lo num lugar distante nas estrelas, onde ele havia deixado um sinal de sua presença para outra deusa realizar suas criações. Chegaram a outro mundo e Snefru ficou deslumbrado com o que encontrou.
- O que esse deus viu? – pergunta Camar.
- Criaturas extraordinárias, um mundo cheio de beleza e riquezas, com muitos animais, plantas, rios e lagos. Encontrou povos diferentes e muito criativos. Faziam desenhos parecidos com estes na sua frente.
- E o que aconteceu?
- Snefru ficou muito feliz com a obra da filha de Rá e durante muito tempo, tomou a forma desse povo e viveu entre eles. Mas Snefru tinha que seguir sua viagem, não poderia mais adiar. Antes de partir, ensinou para esse e outros povos, a esculpir pirâmides em rochas e explicando que elas traziam forças das estrelas e dos deuses. Nessas pirâmides, Snefru poderia mesmo quando partisse, mostrar de onde estivesse, imagens e mensagens para alguns preferidos que se chamavam sacerdotes. Foi então, que Snefru lhes revelou uma parte da sua natureza divina, confirmando apenas o que eles já desconfiavam. Os sacerdotes eram os anciões dessas aldeias.
- Como Certia é para os manasis? – diz Tiri.
- Sim, pode ser um bom exemplo. O Deus Rá encontrou a outra deusa adormecida, sob os cuidados de outro povo, muito diferente dos que Snefru conheceu. Um povo amistoso e sábio, conhecedor de muitos segredos. Viviam escondidos no fundo das águas. Enquanto isso, Snefru havia se rendido aos impulsos da natureza humana e se envolveu com uma fêmea de um dos povos preferidos, gerando um filho cujo nome era Khufu. No momento de partir, seu pai revelou sua origem e a herança de um outro mundo que ele mesmo havia criado. Confiou-lhe um segredo de como abrir uma passagem para enxergar esse mundo, o mundo de Gir. O Deus Rá, apesar de que, também tinha que partir, se demorou um pouco mais entre o povo que zelava o sono da deusa, e elegeu um deles para que o avisasse quando ela despertasse.
- Era um sinaleiro - disse Porfi.
- Sim, um sinaleiro – responde Latem, satisfeito com a perspicácia de Porfi – Mas algo de ruim aconteceu, a natureza de Khufu foi transformada por pensamentos de dominação, vaidade e poder. Ele assumiu a liderança do seu povo se mostrando cruel e impiedoso. Escravizou muitos povos que viviam próximos, construiu uma grande pirâmide e intimidou seus sacerdotes com as imagens ameaçadoras dos dromis, uma das raças nemesianas que vivem aqui.
- E os dromis? Também viram esses povos? – pergunta Tiri.
- Sim, os dromis lhe tinham obediência. Khufu era a única herança do seu deus.
- Então, foi por isso que construíram um dromis gigante na frente da grande pirâmide? Para avisar aos seus inimigos de como era poderoso?
- Em parte sim Porfi, foi isso que aconteceu – responde Latem, dando sinais de que gostaria de encerrar a conversa e retornar para a sua gruta – Na verdade, Khufu que era um semideus, herdou um conhecimento oculto que seu pai jamais revelaria, conhecimento esse, que poderia trazer os dromis para o seu mundo, o que aumentaria o seu poder.
- E ele conseguiu? – pergunta Camar, sem piscar os olhos, encantado com a história.
- Não. Khufu desconhecia a existência do Deus Rá, e este percebendo o erro de Snefru, interferiu nos planos do enlouquecido tirano.
- Como ele fez isso? – pergunta Tiri.
- Khufu recebeu a visita de uma mensageira do povo que zelava pelo sono da filha de Rá.
- Uma mensageira?
- Sim Porfi, uma mensageira. Ela trazia pedras brilhantes e de muito valor e era um fêmea muito atraente. Khufu se deixou seduzir pelos seus encantos e quando a noite chegou, ordenou que levassem a sua presença, aos seus aposentos. Ao retornar a luz no céu, Khufu não tinha nenhuma lembrança do seu passado, tudo foi apagado da sua memória, não se mexia, não falava, não se alimentava e não bebia. Sua morte foi um mistério, uma maldição. 
- E a mensageira?
- Sumiu misteriosamente. Nos aposentos de Khufu só foi visto um falcão, um pequeno e belo animal voador. Alguns sacerdotes aliados de Khufu, também desapareceram. Apenas um foi poupado, ele recebeu algumas vezes a visita de Rá no interior da pirâmide, revelando entre outras coisas, que ele era o deus da estrela que adoravam, que chamavam de sol e que iluminava, aquecia e dava vida ao seu mundo. A partir desses encontros com o sacerdote, todo o povo passou a adorar o Deus Rá.
- E os dromis? – pergunta Camar.
- O Deus Rá partiu para as estrelas. Mas antes, aterrorizou os dromis com imagens de animais daquele mundo. E depois, destruiu a ponta da pirâmide, acabando de vez com os planos de Khufu.
- É uma história incrível! – disse Tiri.
- Sim, mensageiro. Uma história incrível. Mas agora preciso que conheçam meus amigos e seus aliados.
     Todos retornam de volta à morada de Latem e ao chegarem, uma surpresa. Latem se abaixa e olha para a entrada e alguns gatos se aproximam lentamente, com os focinhos para cima, cheirando o ar. Latem faz um gesto simples e os gatos correm e sua direção e ele segura um deles nos braços, o seu preferido.   
     Porfi e Camar observam receosos.
- Este aqui é o líder – sorrir animado – Seu nome é Mau.
- Estão todos aqui? – pergunta Camar.
- Não, existem dezenas deles, se espalharam por outras grutas das montanhas, mas sempre vem me visitar.
- Não me lembro de nenhum mensageiro falar sobre... Como é mesmo nome? –
- Gatos.
- Gatos. Nunca foram vistos?
- Não chegaram a ver, vocês são os primeiros. Mas já escutaram seus miados. Eu nunca comentei a sua existência, dizia que eram os anilos que gemiam com o frio das noites.
     Um dos gatos acostumado com Tiri se aproxima roçando em sua perna.
- Este aqui gostou de mim.
- Você ofereceu comida para ele – comenta Latem – Eles gostam de serem agradados.
   De súbito, escutam um rosnado no alto da pedra. Todos olham para cima.
- Pelos deuses! – diz Camar, apavorado – O que é aquilo! Um dromis?
- Calma, meus amigos. Aquele é Seth.
     O grande lobo pula das pedras de um único salto. Aproxima-se devagar de Latem, olhando de lado para os visitantes. O gato Mau se arrepia e pula dos braços de Latem, correndo com os demais para dentro da gruta.
- Seth não gosta muito dos meus amiguinhos. Às vezes eu o entendo.
     Com cerca de um metro de altura, o lobo encosta-se à perna de Latem que acaricia sua cabeça. Os visitantes ficam paralisados.
- Posso lhes garantir que Seth é um bom amigo e protetor de vocês. Venham, aproximem-se, não tenham medo – insiste Latem.
     Porfi, Camar e Tiri se aproximam de Seth e o lobo lambe suas mãos, deixando evidente que não pretende devorá-los. Após algum tempo, a presença de Seth não mais assusta e todos compartilham tranqüilidade, enquanto Latem trás algumas espadas, lanças, escudos, arcos e flechas da gruta.
    Durante todo período de luz, Latem explica como as armas são feitas e ensina como usá-las. Ele elogia o bom desempenho dos seus aprendizes, que desde o início dos treinos, aprenderam rápido os movimentos. Porfi se destacou com o arco e flecha, tem as mãos firmes e possui boa pontaria. Camar se movimenta bem com a lança. Tiri chegou a dizer com bom humor, que a espada era a ferramenta que faltava em sua vida e foi o que deu mais trabalho para Latem, que o ensinava a controlar a ansiedade e valorizar a técnica e concentração. O que mais se escutava no platô era o som metálico das espadas de Latem e Tiri. Durante todo esse tempo, nenhum deles comeram ou sentiram fome, apenas bebiam um chá energético que Latem havia preparado, contendo ervas e outras substâncias nutritivas desconhecidas dos visitantes. No início da primeira noite, ninguém dormiu, Latem testava suas resistências físicas e ensinava a meditar.
- Estão todos de parabéns! Vocês realmente se esforçaram, faz muito tempo que não via aprendizes tão dedicados e disciplinados.
- Aprendemos muito com você Latem – disse Tiri.
- Mas lembrem-se! – continua Latem, tocando a própria cabeça com o dedo indicador – Usem a mente e não se deixem dominar pelo medo e a fúria do inimigo. Fiquem juntos, unam suas forças com sabedoria. Confie em seus instintos.
- Nunca pensei em usar armas – disse Porfi.
- As armas têm o poder de salvar e matar, de defender e atacar. Nunca utilize para fins egoístas, como força de dominação e submissão. Se bem usadas, podem trazer alguma segurança para aqueles que as possuem, mas os propósitos sempre devem ser elevados – orienta Latem, enquanto abre uma cesta e entrega para cada um deles, pequenas bolas de couro compactas, recheadas e com um estopim.
- O que é isto? – pergunta Camar.
- É um explosivo. É feito com uma mistura...Como posso explicar....um tipo de areia.
- Explosivo? Areia? – indaga Camar – Para que vamos usar areia?
- Não são areias comuns. Na verdade a mistura é feita com três tipos...de areia.
     Latem retira de potes, uma pequena porção de salitre, carvão e enxofre. Em seguida, mistura tudo numa pequena tigela, produzindo pólvora. Retira uma pitada e joga sobre a luz de um dos vasos na parede.
- Pelos deuses! – grita Porfi, espantado com o clarão e a fumaça.
- Como eu disse, existem muitas armas poderosas e desconhecidas, e esta é uma delas. Se uma pequena parte faz isto, imagine o que tem em suas mãos.
     Os três amigos se olham e põe vagarosamente e desconfiados as bolas de couro no chão. Latem sorrir.
- Nunca as deixe perto do fogo. Depois de acender o pavio, jogue onde quer explodir.
- Explodir? – pergunta Tiri.
- Sim, fazer bum! – explica Latem, tentando imitar uma explosão.
- Bum?
- Acho melhor nós irmos lá fora, assim entenderão!
     Latem leva um dos explosivos para a área externa e ensina como acender o pavio, riscando os gravetos com pontas de fósforo na pedra. Em seguida, joga o artefato com força e o mesmo explode com potência. Um eco espalha pela montanha.
- Pelos deuses! – repete Porfi.
- Escutou o barulho? O bum? – pergunta Latem olhando para os três com fina ironia – É muito perigoso! Pode destruir pedras e matar muitas coisas de uma só vez. Nunca fique perto depois que acender, entenderam?
     Os três amigos balançam a cabeça devagar, ainda com os ouvidos zunindo com o estrondo.
- Agora entendo por que os dromis não gostam de vir aqui – disse Camar – Os mensageiros ouviam isso, diziam que era a montanha que se mexia.
- Os dromis não gostam, fogem assustados, seus ouvidos são muito sensíveis – explica o ancião. Vamos entrar, está muito frio aqui fora, tenho outra areia para lhes mostrar.
     Ao entrarem na gruta, Latem trás com cuidado outro embrulho bem fechado, contendo 2 quilos de fina areia, misturado com bactérias  virulentas e letais de antrax.
- Também faz bum? – pergunta Porfi.
- Não, mas mata! É uma areia venenosa, provoca dores e ferimentos. Quando usar, abra com cuidado, não toque! Jogue a favor do vento sobre o inimigo, ou espalhe onde ele costuma dormir! Mas não deixe que o pó lhe atinja.
- Não sabia dessa areia – Disse Camar.
- Não existe neste mundo, trouxe do mesmo lugar de onde vieram os gatos e os crocodilos. Usem se precisarem.
- Você ainda não falou qual será a nossa missão – lembra Porfi.
     Latem retorna para guardar a areia venenosa.
- Estão com fome? - Desconversa o ancião.
- Sim, estamos Latem, com muita fome e sono – responde Camar.
- Tudo bem, vamos comer um pouco, mas antes precisamos comemorar o aprendizado.
     Latem apanha uma jarra com seremet.
    Após algum tempo, depois de ter bebido alguns generosos goles da bebida, Porfi e Tiri sente-se eufóricos e alegres. Camar só precisou beber um pouco e tombou num sono profundo.
- Ele estava muito cansado – disse Tiri – Também me sinto leve e um pouco...
- Tonto – diz Latem – Vocês agora sabem o que falei do seremet. Essa bebida é boa, mas não se pode exagerar. Temos mais uma longa noite, vocês devem dormir agora.
     Tiri e Porfi se levantam, arrastam Camar até o outro cômodo e também dormem profundamente entre as macias peles de mescas. No buraco do teto, Seth tudo observa. O lobo faz uma pequena ronda no entorno da gruta, conferindo se está segura e retorna para a caverna.
     Latem já se encontra em seus aposentos, relaxando numa rústica piscina de águas quentes, bebendo seremet e satisfeito com o treinamento dos seus aprendizes. Olha para todos os lados e não encontra nenhum gato, inclusive Mau, o seu predileto. Um belo vulto feminino entra no aposento, falando com uma voz suave e aveludada.
- Você acha que eles estão preparados o suficiente?
- Ainda não sei – responde Latem – Mas não posso ir mais adiante, seus conhecimentos são muito rudimentares, há muita inocência em suas almas.
- Vai ser difícil proteger todos ao mesmo tempo – comenta a mulher.
- Pedi para que fiquem juntos. Não quero que nada de ruim aconteça com eles, é importante que fiquem vivos. Tenho uma tarefa para um mensageiro.
- Tiri?
- Não, Porfi dos amabis. Também precisamos retirar um grupo especial de dromis desse planeta. Esperava que Seth ou um falcão o fizesse, mas não vou conseguir certo?
- Sabe que não. Use o mensageiro.
- Farei isso. A nossa presença aqui ainda não está concluída e os eventos estão seguindo o seu curso favoravelmente.
- Zuila está conduzindo bem sua missão. Os aliados de Viga já estão entre nós, expande suas ações na galáxia vizinha. Eles estão atentos, em breve chegarão, estamos muito expostos e ameaçados – Alerta a mulher.
- Sei disso. Faremos tudo com precisão. Já enviei o sinal.
- Não é exatamente esse confronto que temos que evitar? Estamos mais uma vez interferindo no curso dos eventos – disse a mulher.
- Entendo sua preocupação e não posso negar que existem riscos. A nossa integridade física não pode ser comprometida. Mas lhe asseguro que ficaremos bem, lembre-se que temos aliados.
- Acho que um pouco de ansiedade se apoderou de mim. Claro que me sinto segura ao seu lado, não teria por que não está – comenta a mulher.
- O sentimento de ansiedade foi ativado pelo instinto de preservação do seu corpo, é natural. Você tem lidado com ele e outros sentimentos com muita ponderação, não há nada com que se preocupar. Falando nisso, como está lá fora?
- Está calmo. Acho que os dromis estão fazendo o cerco do outro lado da montanha. Escutaram a explosão, vão ficar quietos por enquanto.
- Dromis e gruns no mesmo ambiente, quem pensaria nisso?
- Isso para mim é um grande pesadelo – suspira a mulher.

     Latem se levanta da água. Ele agora apresenta uma aparência mais jovem. A mulher se aproxima com uma coberta e o envolve com cuidado:
- Você gosta muito deste planeta não é?
- Com exceção da rotação, sim. É tranqüilo. Mas proteger esse belo povo torna a nossa presença aqui mais digna, eles não têm ninguém por eles, não seria justo.
- E nosso povo? Mei e os outros? – pergunta a mulher.
- Os semideuses ficarão bem. Só preciso cuidar mais uma vez de um em especial.
- Mei ainda desconhece seu poder e sua guardiã Solaris a deixa muito a vontade. Ela não sabe da existência do seu irmão.
- Seth – Disse Latem, pondo a mão em cima do ombro da mulher – Você é uma boa amiga e uma grande aliada. Somos parceiros há milênios e sei que os poderes de Rá não seriam suficientes sem a sua ajuda. Se por um momento de fraqueza ou medo Zuila nos traísse, já saberíamos disso. Tanto ela quanto Ydegart nutrem os mesmos sentimentos nobres.
- Você confiará em Ydegart? Depois de uma eternidade de maldades por esse universo? Você acha que alguma coisa de bom ainda existe nele?
- Sim, acredito. Ydegart teve sua mente entorpecida e manipulada pelo poder de Viga. Mas um sentimento maior, sempre esteve vivo em seu ser, lá no íntimo, protegido e enjaulado.
- Proteger seu povo? Você acredita nisso?
     Um miado se faz ouvir de uma fenda, no alto do aposento.
- É Mau, acho que ele quer descer. Confie em mim Seth, agradeço a sua preocupação, ela é legítima e me fortalece.
- Já entendi – diz a mulher olhando para o gato - Mas quando Ydegart chegar estarei por perto!
- Faça isso, não tiro suas razões, riscos sempre existem.
     Latem abre um sorriso e abraça Seth.
     A mulher se afasta de Latem e enquanto caminha, transforma-se no lobo, olha para o gato e mostra as pressas. O gato retribui o gesto e começa a descer entre as pedras da parede, emitindo um miado abusado.
- A natureza destes dois não tem jeito – sussurra Latem, balançando a cabeça negativamente. O gato Mau pula em seus braços, enciumado e mendigando carinho.

Capítulo 3


OS INVASORES


     Nos primeiros raios de luz, Ydegart se despede da aldeia dos manasis. Todos estavam comovidos e tristes com a partida do mensageiro, que agora tinha a missão de encontrar Porfi e trazê-lo de volta.
     O mesca preparado por Ascat segue tranqüilo em direção a montanha. Ydegart tem tudo que precisa para uma viagem segura e se esforça para que a tentativa de lembrar seu passado não interfira na concentração do seu objetivo. Mesmo assim, aguça seus sentidos, cheirando, tocando e observando com atenção a bela paisagem que se apresenta.
     - Como eu poderia esquecer tão bela visão? – O mesca emite um grunhido parecendo entender o conflito do mensageiro.
     Na aldeia dos manasis, a rotina foi quebrada com a aproximação da festa da colheita e o casamento de Nelin e Ydegart. A fumaça vinda das pedras acende os primeiros focos de fogo. O largo central da aldeia encontra-se singelamente enfeitada. Os músicos afinam seus instrumentos e muitos já dançam, cantam e riem.  Enquanto termina de costurar um cesto, Tabu passa a vista rápida pelo povo e percebe a ausência de Nelin. Entrega a cesta para que um jovem aprendiz conclua o serviço e começa a procurar a jovem por todos os lugares possíveis.   
     Há poucos metros do limite da aldeia, ele ver Julaia trazendo um pote de água nos ombros.
- Onde está Nelin?
- Ela disse que iria colher flores nos montes, o que temos para fazer remédios está acabando.
- Ela foi sozinha?
- Por que não? Ela é jovem e forte, já foi várias vezes. Qual é o problema?
- Nenhum, é que eu preciso falar com ela sobre o casamento e...não é nada demais!
- Se o assunto é casamento então tudo é importante! Faz pouco tempo que ela subiu o monte, vai encontrá-la fácil. Isso é se você ainda agüentar! – Sorrir Julaia.
     Tabu põe a mão sobre os ombros de Julaia e diz com humor que ainda tem forças para subir qualquer monte e que ela tivesse cuidado em não machucar os ombros carregando água. Determinado, ele segue em direção ao monte, onde dezenas de flores são cultivadas e serve de base para a produção de vários tipos de medicamento. Apesar da subida ser um pouco íngreme, Tabu passou bem pelos obstáculos, conhece o caminho de olhos fechados. Durante o percurso, encontrou pegadas recentes, identificado-as como de Nelin, que desaparecem ao chegar aos campos altos.
     Tabu explora todos os locais cultivados e não encontra nenhum sinal de Nelin. Exausto, descansa na sombra de um abrigo de pedra. Havia se passado o primeiro dia desde a partida de Ydegart, que estaria na metade do caminho.
     Ao longe, Tabu tem a impressão de ter visto Nelin. Dessa vez num local mais acima dos campos e de difícil acesso.
- O que será que ela faz lá no alto? Por que se arriscaria tanto?
     Quando mais jovem, ele lembra que costumava ir com o irmão Certia e outros amigos para o cume pedregoso do monte. Tem consciência de que o vigor físico atual não permitiria o esforço de subir tão alto.
- Muito desgastante e perigoso para um manasis da minha idade! – Pensa ele.    
     Mas a intuição lhe dizia que deveria enfrentar tamanho desafio. Poderia seguir por uma trilha mais distante, onde encontraria fissuras e arbustos nas rochas onde poderia se apoiar e descansar.
     Tabu sempre desconfiou de Nelin desde o dia em que ela chegou a aldeia dos manasis. Com a chegada de Ydegart, seu comportamento foi se tornando cada vez mais enigmático. Sem mais pensar nos riscos, enxugou o suor do rosto e levantou-se devagar:
- Preciso de respostas! Vou até Nelin!
     No lado oeste da montanha, um grupo de oito dromis se esforçam na tentativa de derrubar uma grande árvore. Tendo sua base praticamente carcomida por potentes mordidas e arranhões, a árvore finalmente tomba. O líder do grupo toma a iniciativa de arrastar a árvore pelos fortes galhos, quando os outros dromis, entendo suas intenções, partem para ajudá-lo.
     Sempre rápidos e trabalhando em equipe, o resultado do esforço é compensado, os dromis conseguem atingir o rio que separa o vale e a montanha. Com o barulho da árvore caindo sobre o espelho d’água, dezenas de crocodilos com mais de 12 metros cada um, partem enfurecidos à margem do rio. Os dromis empurram a árvore para que a mesma entre de vez na água e atinja uma correnteza. Os crocodilos chegam a sair para a terra, mesmo com pouca mobilidade, e avançam sobre os dromis que os distraem, enquanto outros conseguem fazer o tronco flutuar.
     A correnteza afasta o tronco da margem, os crocodilos fecham o cerco de acesso, resta pouco tempo para que eles subam e possam atingir a outra margem do rio. Os crocodilos avançam cada vez mais pelo solo, todos os dromis também se afastam, dando a impressão que estão recuando, mas na verdade, estão tomando posição para avançar em direção ao rio.
     Com um sinal do líder que ruge semelhante a um leão, eles partem juntos em desenfreada e elegante velocidade, saltando sobre os ferozes crocodilos e caindo com precisão e equilíbrio sobre o frondoso tronco. O impulso dos pulos sobre a madeira acelerou a chegada à desejada correnteza. E quando finalmente os crocodilos conseguiram alcançá-los, pularam nas pedras da encosta do rio e com vigorosos saltos de uma escarpa para outra, escalaram um íngreme paredão. Os dromis atravessaram, finalmente, para a montanha.
     Após um longo esforço e bastante ofegante, Tabu observa Nelin. Ela encontra-se ainda distante, no alto de uma pedra, quase na beira do precipício.
     Por um momento, Tabu se aflige, achando que Nelin queria cometer suicídio. Mas consegue controlar esse pensamento obscuro, uma vez que não há motivos para esse ato insano.
- Nelin é feliz! – Pensa e recua para o interior da fissura da rocha em que se encontra, recuperando um pouco as forças.
     Por alguns instantes, o velho manasis queria se arrepender pelo esforço de chegar tão longe, comprometendo sua saúde, arriscando-se. Não queria que Nelin o visse, não saberia como justificar sua presença ali, a não ser dizendo a verdade.
     As luzes do último dia já começavam a dar sinas de que a noite se aproxima. Um suave crepúsculo manchava o horizonte de cores diversas e o reflexo das primeiras partículas de gelo convencia de vez Tabu do erro que cometera. Para um jovem manasis, haveria tempo suficiente para chegar à aldeia, mas para um ancião, esse tempo significava a morte. Tabu não poderia retornar. Num ímpeto, decide pedir ajuda para Nelin, mas é surpreendido por ruídos assombrosos. Ao virar-se olhando para o céu, os olhos de Tabu se enchem de pavor. Rapidamente, se abaixa e se contorce para se esconder dos milhares de gruns que por ele passa voando baixo. Tabu recupera a coragem e procura Nelin e surpreende-se de vê-la acariciando uma dessas feras enquanto outras descem e esvoaçam em torno dela.
     Ainda debilitado pelo cansaço e o frio que chega rápido, Tabu tem impressão de escutar gritos que se confundem com grunhidos das feras aladas, adianta o corpo sob uma pedra, deitando-se para enxergar melhor.
     Ainda fraco, ele se assusta com um dos gruns que se encontra tranqüilo, na espreita, bem acima dele. Tabu vira-se de peito, indefeso, e olha fixamente para a fera que pula desajeitado sobre ele e o encara com seus oblíquos olhos vermelhos, opacos e lacrimejantes. A pele negra e brilhante do grun, que mas parece um morcego gigante, se abre em forma de asa criando uma extensa sombra sob Tabu, que não resiste e desmaia. A fera emite um grito para o alto, Nelin olha rápida e curiosa para trás.
     Na montanha, após enfrentar o frio da longa noite, Ydegart e o mesca seguem à morada de Latem. Havia muita neblina e freqüentes lufadas de correntes de ar que chegavam a empurrar o mesca para os lados. Precisavam ficar atentos, pois a trilha torna-se estreita nessa área da montanha e apenas seis metros separam o paredão rochoso do precipício. Naquelas alturas, durante a noite, os fortes ventos facilmente arrastariam um viajante para a queda fatal.
     Ainda um pouco ressacados da seremet, Porfi, Tiri e Camar mais uma vez aproveitam uma noite de sono diferente e sem intervalos. Aproximam-se do calor das chamas que aquece uma tigela de caldo aromatizante. Ao lado, uma cesta com pão da tjeret e raízes cozidas. Ainda havia um pouco de bebida alcoólica feita da seremet, mas ninguém sequer tocou no pote.
     Antes de comerem, procuram por Latem ou Seth no entorno e não encontram, retornando a caverna. O gato Mau se aproxima de Tiri, que lhe oferece um pedaço de pão.
- Acho que podemos comer sem ele? - pergunta Camar, ansioso e faminto.
- Não vejo problema. A comida está servida não está? – responde Tiri
- Vocês podem comer, vou lá fora novamente! – disse Porfi.
- Mas acabamos de chegar mensageiro. Eles não estão aqui por perto – Avisa Camar.
- Mesmo assim quero ir mais uma vez! – responde Porfi, decido.
     Tiri sugere que Porfi coma com eles o que Latem deixou preparado, que a noite foi longa e fria e o corpo com isso enfraquece, precisando de comida. Seria desnecessário sair sem está preparado.
- Acredite Porfi, Latem costuma desaparecer de vez em quando, mas sempre deixa a comida pronta.
     Porfi pondera o conselho de Tiri enquanto observa o som gutural de Camar, comendo as raízes cozidas com o caldo. Tiri retira um pouco do caldo da tigela e oferece a Porfi e este se rende a fome, comendo com entusiasmo.
- Vou até a pirâmide! Acho que Latem e Seth devem está lá?
- Como pode saber? – pergunta Tiri.
- Não sei! É o único lugar aqui perto em que eles podem ir.
- Não tenha tanta certeza disso. Olhe estas sementes, estes frutos e tudo o mais aqui. Não vimos nada disso na pirâmide, apenas desenhos e pinturas.
- Sim, eu sei. É só por precaução. Se eles não estiverem lá eu volto!
- Sabe Porfi! Eu acho que ele foi buscar mais comida – disse Camar com a boca cheia – Acho que vocês comem muito!
     Tiri olha para Porfi e os dois começam a rir. Camar parece não entender a situação de que o glutão é ele.
- Acho que você tem razão Camar – fala Porfi – Mesmo assim, vou procurar um pouco e vocês podem olhar pela caverna e ver se acham eles.
- Não devemos andar assim por aqui, olhando as coisas, Latem pode não gostar – alerta Camar.
- Não vamos mexer em nada! Apenas chamar por eles! Não queremos ficar sozinhos aqui! Por que vocês não vêm comigo? Assim ficaremos juntos!
- Acho essa idéia melhor! – disse Camar enquanto olha para Tiri esperando aprovação.
- Está bem assim! Vamos juntos até a pirâmide e de lá voltaremos!
- Pode ser que Latem já esteja aqui com uma comida diferente e.... O que foi? Por que estão me olhando desse jeito? – Impacienta-se Camar, no que Tiri e Porfi mais uma vez desatinam em risadas.
     Na aldeia dos manasis, Tabu desperta no abrigo dos enfermos. Passou a última longa noite inconsciente e apesar do desgaste físico e emocional que passou, senti-se forte o suficiente para levantar. Olha cuidadosamente o ambiente e encontra preparados de ervas e comida:
- O caldo ainda está quente - pensa
     Seu corpo está limpo e aromatizado, assim como suas roupas, que foram trocadas. Ele serve-se da comida, mas antes cheira por temer que esteja envenenada. Adianta os passos para fora do abrigo e encontra a aldeia em absoluto silêncio. Tabu grita chamando por alguém que o possa escutar, mas não obtém resposta. Ele percorre a aldeia e surpreende-se com a desordem e o caos. O que seria o preparativo de uma festa tornou-se uma visão desoladora, não havia nenhum manasis além dele.
     Tabu se abaixa em sinal de desespero, sofre em pensar que todas aquelas feras atacaram seu povo e os conduziram para um destino desconhecido. Não sabe se estão vivos ou aguardando serem devorados por cruel carnificina.
- Adultos, jovens, crianças e animais, tudo foi levado...Pelos deuses! O que aconteceu aqui, quem me trouxe do monte? O que faço agora?
     Tabu sente que há algo em seu bolso. Levanta-se e retira um tecido pintado. Tabu começa a interpretar os desenhos e reconhece que ele faz parte da mensagem. Ver claramente a cena em que Nelin é rodeada pelos gruns, e que ele é achado por um deles. O desenho mostra também que ele retornou voando até a aldeia nas garras da fera e que foi cuidado pela própria Nelin. Tabu observa que existe outro animal voando no desenho, um pouco maior que um anilo, desconhecido para ele. Era um falcão.
     Ainda atordoado, um grunhido conhecido lhe chama atenção:
- Pelos deuses! É um mesca! – Tabu adianta os passos em direção do animal recém chegado e encontra em seu pescoço, o colar de Porfi.
- Eu sabia que tinha algo de estranho! Seja bem-vindo meu bom mesca! Coma e beba, pois temos uma nova jornada! – conversa Tabu, com animal.
     Tabu retorna ao abrigo e recolhe alimentos, água e remédios. Veste a roupa protetora de viajante e segue em montaria com o mesca de volta para a montanha, ao encontro de Latem.
     A neblina já havia dissipado um pouco quando Porfi, Tiri e Camar seguiram para a pirâmide que não fica muito longe da caverna. Andavam com cautela, procurando rastros que pudessem indicar pegadas na fina neve. Camar olha para o céu e aponta para um bando de anilos voando desordenadamente para o leste.
- Estranho! Ainda é cedo para os anilos saírem de seus abrigos! – observa Camar.
- Eles voam estranhos! Deveriam seguir retos como sempre acontece! – disse Tiri.
     Os anilos passam pelo céu acima deles mais rápidos do que o normal e vocalizando muito.
- Alguma coisa os assustou – conclui Porfi – Camar, vá até o interior da gruta da pirâmide e veja se Latem ou Seth estão por lá! Eu e Tiri vamos até o alto daquela pedra ver alguma coisa, nos encontramos aqui mesmo!
- Já estou a caminho, não demorem!
     Tiri estende a mão para ajudar Porfi subir na pedra:
- Acho que deveríamos ter trazido nossas armas!
- Não acho necessário, estamos seguros e além do mais, quem disse que são nossas – Sorrir Porfi, dando um leve tapa nas costas de Tiri sugerindo agradecimento pela ajuda.
     Antes de olharem para as escarpas e pequenos platôs do cânion, Porfi e Tiri olham para trás escutando Camar gritando e gesticulando com os braços, avisando que não há ninguém na pirâmide.
     Porfi e Tiri retornam o olhar para a silhueta do outro lado de uma cordilheira. Observam a grandiosidade daquele mundo cercado de mistérios e lendas. Mas em algum momento, Porfi escuta algo parecido com um ronco.
- Escutou?
- Não! Mas olhe! O que é aquilo?
- Parecem animais? São muito grandes para serem anilos ou mescas!
- E eles... Não pulam assim tão rápido e alto.....Pelos deuses!
     Porfi olha para Tiri, os dois pensam iguais.
- Dromis! São Dromis!
     Os dois amigos pulam da pedra e aos tropeços correm em direção à caverna e gritando por Camar, que mesmo sem saber do que se trata, já corre na frente, mas é amparado por Tiri e Porfi quando estão próximos a caverna de Latem.
- Mas o que houve? Nunca corri tanto na minha vida, nem quando era criança - Dromis, Camar....Dromis – fala Tiri já sem fôlego.
     Camar arregala os olhos e se desvencilha dos amigos e corre para a caverna, porém não consegue entrar, dois dromis pulam sobre ele e lhe impedem a passagem, enquanto os outros se aproximam sorrateiros por traz, lentamente desconfiados, como se procurassem alguma armadilha.
- Pelos deuses! Vamos morrer! – grita Camar.
- Concordo com você Tiri! Deveríamos pelo menos ter trazido o bum! – disse Porfi com dificuldade de respirar.
     Sufocados pelo medo e sem forças nem para gritar por socorro, os três amigos se ajoelham aceitando seus destinos. Camar volta recuando até eles, intimidado por um dromi.
     Ainda sem acreditar no que estava fazendo, Tiri reúne forças para gritar pela única ajuda possível naquele momento:
- Mau!.....Mau!.....Mau! – Os outros também gritam.
     O dromis que estavam próximo a entrada olham para o interior da caverna, escutam alguma coisa, rugem e se afastam. Os outros dromis se aproximam curiosos e logo recuam em desespero, pulando aleatoriamente sobre pedras altas.
      Dezenas de gatos chegam correndo e fechando um círculo ao redor de Porfi, Tiri e Camar. Na entrada da caverna o gato Mau encontra-se altivo, observando cada dromi, em especial um que não participou do cerco, o líder deles, o mais forte, de pelagem cor laranja e brilhante. O único dromis que não tem medo de gatos.
     Mau corre até o líder, este também segue em sua direção. Os dois se comunicam de alguma forma.
- O que eles estão fazendo?
- Não sei Tiri – responde Porfi – Acho que estão negociando alguma coisa.
- Negociando? Negociando o quê? Quem eles vão devorar primeiro? Aquele gato pode morrer apenas com uma lambida daquela fera! – grita Camar.
- Calma amigo! Vamos aguardar – diz Porfi - Lembra na gruta da pirâmide que as pinturas revelavam que os dromis eram assombrados com imagens daquele mundo distante de Rá? Só pode ser de gatos o que eles temem...
- Tem razão Porfi, lembro bem dessa parte dos desenhos! – concorda Tiri – Mas aquele dromi ali não tem medo de gato!
     O líder dos dromis se afasta silencioso e o restante o segue. Rapidamente desaparecem por um desfiladeiro. Os gatos entram na caverna. Mau corre em direção a Tiri e pula nos seus braços.
- Obrigado amiguinho, salvou nossas vidas!
- Esse animal realmente gosta de você Tiri! – disse Camar aliviado e coçando a cabeça do felino.
- É melhor irmos para dentro da caverna! Eles podem está se preparando para voltar! – aconselha Porfi, com expressão séria.
     Latem está sozinho em um platô aberto da montanha. Observa a paisagem do Vale do Sial. Do céu, avista um falcão que vocaliza e se aproxima dele. A ave pousa rápido no solo e se transforma em mulher.
- Então, Seth.
- Temos um problema! Tabu estava no alto do monte, viu Nelin com os gruns e sabe que seu povo foi raptado.
- Como ele está?
- Nelin o levou para a aldeia e prestou cuidados. Desapareceu em seguida. Acho que ele estava em risco de vida. Não foi possível ir com os outros.
- Ninguém pode ficar para trás!
- Foi o que eu pensei. Mas o velho é teimoso e está vindo para montanha no mesca que reservamos para Ydegart, ainda não parece bem de saúde – disse Seth.
- E onde está Ydegart?
- Está próximo do platô, montado em outro mesca.
- Isso não é bom! – comenta Latem – Tabu deveria está com os demais.
- O que fazemos então?
- Por enquanto retornaremos. Nossos hóspedes já devem ter acordado.
     No interior da caverna, os três amigos resolvem descansar do susto. Camar alimenta o fogo para esquentar o caldo que ainda resta. Escutam ruídos lá fora e uma sombra se projeta na parede. É o grande lobo que se aproxima, seguido por Latem.

- Então! Vejo que já comeram, mas pelas suas caras vejo que não estava bom! 
- Não isso Latem – fala Tiri – Sua comida é sempre boa é que...
- Seth está preocupado. Ele pressentiu alguns dromis vagando por aqui, lá fora está cheio de pegadas, inclusive as de vocês. O que houve por aqui?
- Resolvemos procurar você e Seth na pirâmide, quando os dromis chegaram. Eles são rápidos! Os gatos nos protegeram!
- São rápidos mesmos. De onde estávamos não poderíamos perceber a presença deles.
- Achamos que estriam por perto – lamenta Camar.
- Estávamos contra o vento, do outro lado da montanha e os dromis não exalam cheiro. Mas vocês parecem bem.
- Estamos bem, apesar do susto. Mas o que os dromis fazem aqui?
- Eles não entram aqui dentro, temem os gatos, temem até o cheiro e o miado deles.
- Como nas estórias das pinturas na pirâmide? Eram os gatos que assombravam os dromis não era? – pergunta Porfi.
- Sim! Mas pelo visto eles não temem nem um pouco os crocodilos. De alguma forma conseguiram passar pelo rio.
- Mas Latem! – interrompe Camar – Um deles não tem medo de gato! O líder.
     Seth olha para Latem e se retira devagar, para fora da caverna.
- Cuidado Seth! – disse Latem.
- O que houve com ele? – pergunta Porfi.
- Acho que vai ter certeza que não tem dromis por perto – responde Latem.
     Porfi fica impaciente:
- E agora o que faremos? Não sabemos nada o que acontece!
     Latem se aproxima da pequena chama que está entre eles e também se senta. Diz que trouxe mais comida e que a colheita foi boa. Olha para os três com generosidade:
- Quer nos dizer alguma coisa Latem? – pergunta Camar.
- Na verdade, sim. Preciso de um mensageiro.
- Um mensageiro? Bom! Temos dois aqui.
- E para onde seria? – pergunta Tiri.
- Lembra do líder dos dromis? O maior e mais forte deles?
- Sim! Como podemos esquecer? – enfatiza Camar – Nunca mais quero vê-lo!
- Suponho que ainda seja cedo para isso.
     Camar se levanta preocupado, olha para fora da gruta e retorna ansioso:
- Acha que ainda vamos nos encontrar com aquelas feras?
- Acredito que sim. Mas muita coisa pode mudar, eles podem se tornarem aliados. Por isso, preciso de um mensageiro que vá até o líder dos dromis e leve um recado.
     Porfi e Tiri se entreolham.
- Posso fazer isso sem problemas, levarei o gato Mau comigo, assim estarei seguro – sugere Tiri.
- Mas você se esquece de que o líder dos dromis não tem medo de gato! – lembra Camar.
     Tiri esmorece e não sente segurança na missão.
     Porfi se levanta:
- E posso ir! Sou mais jovem, mais rápido e não tenho família para zelar.
- Muito bem. Então será você! – Latem concorda sem cerimônias – Mas não poderá levar nenhum gato.
- E Seth? Poderá me acompanhar?
- Seth estará por perto, não queremos provocá-los, mas o mérito da missão é seu.
- E quando e onde poderei encontrar o líder?
- Ele está no vale da cordilheira, junto com os demais. Quando chegar a uma grande pedra vermelha, suba com cuidado. Leve esta tocha e acenda. Balance os braços, acene para o vale do desfiladeiro. Eles saberão que se trata de um mensageiro. Dois dromis seguirão primeiro para ter certeza de que estará sozinho. Não reaja, não faça nenhum movimento, não expresse medo e nem muita confiança, não os encare nos olhos. Se ficar apavorado por algum motivo, sente-se no chão ou se incline um pouco com a cabeça baixa. Quando eles forem embora, o líder chegará.
- O que faço depois?
- Apague a tocha e ponha essa pequena pedra no chão e retorne para caverna, não saia. Fique aqui com seus amigos, aguardando Ydegart chegar, ele está próximo.
- Receberemos Ydegart? – pergunta Tiri, ansioso - Isso mesmo, preciso que vocês o recebam com cortesia e sejam discretos, não vou demorar.
- Como chegarei ao desfiladeiro, não conheço o caminho?
- Seth já providenciou um mesca para você, está lá fora, é só montar que ele saberá onde levar. Estará em segurança.
- Preciso levar armas?
- Não será necessário Porfi, terá toda proteção que precisa, como eu disse, Seth estará por perto.
     Todos seguem para fora da caverna e encontram um belíssimo e imponente mesca sud.
- Nunca tinha visto um desses! É muito bonito! – comenta Tiri, entusiasmado, quase se arrependendo de não ter aceitado a missão, só para ter a oportunidade de montar incrível animal.
- Não tem montaria – observa Camar – Não tem onde você segurar-se caso precise correr.
- Não será necessário. Olhe a pelagem dele!  - diz Tiri.
     Latem se aproxima do mesca, faz um agrado no pescoço do animal e o mesmo se abaixa para Porfi montar, levantando-se em seguida.
- Muito bom – sorrir Porfi – Posso ficar com ele?
- Acho que não será possível, ele não tem dono – Latem sorrir e olha para o mesca que não parece gostar muito do comentário e se retira devagar, em direção ao desfiladeiro onde os dromis se encontram.
    Aos poucos, Porfi e o mesca se afastam da vista de Latem, que pensativo, segue lentamente para a caverna. Camar se aproxima e pergunta onde está Seth:
- Está por perto...está por perto – responde Latem.
     Durante o percurso, Porfi abre o bornal e confere se a pedra está segura. Observa com cuidado e admiração.
- É uma pedra muito bonita, diferente, onde será que Latem a encontrou?
     O mesca volta à cabeça e olha fixo para Porfi.
- Você entende o que digo?
     O mesca do seu jeito confirma a pergunta de Porfi e acelera um pouco o galope.
- Calma amigo! O que você quer? – O mesca para e acelera de novo – Você quer correr?
     O mesca vocaliza, Porfi conhece bem esse som, sabe que o mesca vai sair em disparada na segunda vez que emitir de novo. Ele se equilibra e segura firme na espessa e macia crina. O animal corre com o vento e Porfi se diverte com a investida.
     Ao chegar ao desfiladeiro, Porfi procura a rocha vermelha que terá que subir.
- Achei! Lá está ela! Mas como vamos chegar? Existem muitos buracos grandes no caminho, não podemos pular!
     O mesca novamente faz sinal de que vai correr. Porfi se desespera só em pensar o que o animal está prestes a fazer. Ele segura firme e fecha os olhos.
- Pelos deuuuuuusesssss! – O mesca desce o desfiladeiro em velocidade e quando chega próximo aos pequenos abismos, pula com uma habilidade que nenhum animal de sua espécie jamais ousaria fazer.
     Após um pequeno silêncio, Porfi abre os olhos. Percebe que está mais ofegante que o mesca. Olha para traz com espanto, vendo que haviam passado os obstáculos. A rocha vermelha estava a poucos metros. O mesca se abaixa e Porfi desmonta, ainda com as pernas trêmulas de tanta emoção.
- O que me deixa nervoso amigo, é que teremos que fazer isso na volta certo?
   O mesca aproxima a cabeça do corpo de Porfi e o empurra em direção a pedra. O mensageiro quase se desequilibra com o solavanco.
- Calma, estou indo! Também não quero ficar por muito. Vou subir, fique aqui, voltarei o mais rápido possível.
     Porfi sobe um pequeno monte e ver a rocha vermelha um pouco abaixo. Encontra-se na baixa plana de um vale sombrio, onde outras rochas alaranjadas expelem pequenos vapores quentes saindo de fissuras pelo chão. Antes de descer até a rocha, olha para traz e não ver o mesca.
- Onde será que ele foi? – pensa – Olha para cima e ver a altura em que estavam e antes de descer, escuta um pequeno ruído em um canto de rocha próximo a ele. O coração de Porfi acelera, mas longo tranqüiliza-se ao ver que o lobo Seth está olhando para ele atento.
- Seth! Você está aí? – O lobo joga a cabeça rápido para frente. Porfi entende que tem de seguir só e assim o faz.
     Ao subir na rocha, ele retira um pouco de óleo e acende a tocha fazendo o sinal. Observa com cuidado e prende a respiração quando ver os dois dromis se aproximando as pressas. Imediatamente, apaga a tocha e fica de cabeça baixa, imóvel.
     Os dromis se posicionam de cada lado. Um deles se aproxima e fareja de longe, enquanto o outro olha para o alto do penhasco. Rapidamente, os dromis saem correndo e Porfi relaxa.
- Até aqui tudo bem. Do jeito que Latem falou.
     O líder dos dromis se aproxima devagar e tranqüilo. Porfi admirada a magnificência do animal que para em sua frente. Ele inconscientemente e por instinto de preservação não desvencilha o olhar do dromis. E no surto de ímpeto, como se acordasse de um curto hipnotismo, põem a mão no bornal para retirar a pedra e se desespera por não encontrá-la. Ele procura de todas as formas e não acha a pedra que Latem lhe deu. Porfi olha para traz para ver se caiu.
     O mensageiro se lamenta.
- Falhei na missão.
     Ele escuta a vocalização do mesca, chamando-o. Observa o líder dos dromis, e este levantando a pata, deixa mostrar a pedra.
- Mas como ele pegou? Não lembro de ter colocado lá?
     O mesca vocaliza avisando que vai partir. Porfi olha para traz e ao retornar os olhos para o dromi, ver o mesmo seguindo longe para o outro lado vale. Sem perder tempo, Porfi vai rápido para o mesca que já se encontra próximo a ele. Monta no animal e dessa vez testemunha de olhos abertos, o retorno para montanha, saltando pelos mesmos obstáculos que antes se negava por medo em ver.
     Na caverna, Tiri e Camar escutam o chamado do mesca.
- Ele chegou! Vamos! – Disse Tiri correndo para fora, enquanto Camar continua sentado, distraído com o preparo de um caldo quente.
- Porfi!
- Estou aqui!
- Onde está o mesca?
- Já foi. Ele é rápido!
- Queria montar um pouco nele.
- Se eu fosse você desistiria dessa idéia, não é fácil montar aquele mesca. Quem sabe na próxima missão.
- Como foi? Deu tudo certo?
- Sim, só que Latem não falou de como eu entregaria a pedra.
- Do que você está falando? Era apenas para por no chão.
- Foi incrível Tiri! Você não vai acreditar! Onde está Camar?
- Lá dentro, preparando o caldo, ele disse que Ydegart vai chegar com fome.
- O cheiro está bom. Espero que não demore, por que a fome já veio comigo.
     Na trilha da montanha, a jornada de Tabu não está boa. Ele sofre com fortes dores no corpo. A montaria é severa para um manasis da sua idade. Se não parar e descansar, não conseguirá chegar vivo até a morada de Latem. Precisa achar um abrigo, preparar remédio com as ervas que trouxe. Estava na metade do caminho e ainda não havia se alimentado direito.
     Tabu olha para o céu e ver o animal voador que estava no desenho. Ele pousa adiante e quando o mesca se aproxima, voa de novo para mais adiante, com se marcasse o caminho a ser seguido. O manasis se distrai um pouco pela curiosidade e encontra forças para entender que aquele estranho ser, está lhe guiando para algum lugar.

     O que Tabu ver, é Seth que após deixar Porfi na caverna, se transforma em um falcão. Ele pousa próximo, numa pedra ainda coberta de neve e espera o manasis se aproximar. O mesca para. Tabu desce e vai em direção da ave que não esboça medo nem sinal de fuga. Chegando a poucos metros, ela entra por uma fissura no paredão da montanha. Curioso, Tabu se aproxima para investigar e acha uma estreita passagem que termina numa galeria quente.
- Acho que os deuses estão olhando por mim – pensa o ancião – Estou doente, não vou conseguir seguir viagem.
     O cansaço faz Tabu se entregar a um sono profundo.
     Na caverna de Latem, Tiri e Camar não pisca os olhos, encantados com o relato da aventura de Porfi. Estão envolvidos o suficiente para não lembrar que estavam com fome.
- Você ficou de frente com o líder dos dromis? Não se lembra de ter tirado a pedra e colocado no chão? – pergunta Tiri.
- Não lembro. Acho que ele tem algum poder diferente.
- Poder diferente? Como assim? – pergunta Camar, trazendo um pote de seremet e servindo aos amigos.
- Achei que estava sonhando acordado. Não sei ao certo, foi tudo muito rápido. Quando vi, o dromi estava lá na minha frente.
- Mas gostei da parte em que o mesca corria. Preciso montar nele! – insiste Tiri.
     Passaram-se algumas horas de animada conversa. Os três amigos nem se deram conta de um importante aviso de Latem em relação à seremet, bebida alcoólica, fermentada e forte para quem não estava acostumado em beber. E o inevitável aconteceu, tombaram embriagados.
     Do lado de fora da caverna, alguém se aproxima.
- Acho que Latem não conhece o assovio manasis – pensa Ydegart, que acabava de chegar.
     Ele desmonta do mesca e vai em direção ao interior da caverna e encontra Porfi, Tiri e Camar em sono profundo.
- Estão dormindo? – Ydegart tenta acordá-los, pega o pote de seremet, cheira e faz uma expressão de que não gostou.
- O que será isso? Remédio?
     O cansaço da viagem também havia se apossado de Ydegart. Estava tranqüilo, pois achara Porfi e outros estranhos.
- Acho que devem ser de outra aldeia – pensou, olhando Camar com cuidado – Esse não é Latem.
     Ydegart acha comida e água para o mesca. Ver que o caldo ainda está quente e come um pouco.
- Acho melhor ficar aqui e dormir um pouco, assim que Porfi acordar retornaremos para aldeia e ficarei com Nelin – Ydegart se acomoda no canto da parede e adormece rapidamente.
     Num platô da montanha, Latem conversa com Seth, desta vez em forma de mulher.
- Como está Tabu?
- O conduzi até um abrigo seguro, precisa de ajuda ou morrerá em breve.
- Você está bem?
- Não gosto da idéia de ter os dromis como aliados.
- Entregou a esfera?
- Ele recebeu a esfera e Porfi se comportou muito bem, apesar de quase arrancar minha crina, não gosto de transformar em mesca.
- É um manasis corajoso, tem de admitir.
- Todos somos corajosos quando o medo não deixa escolha.
- Virá ao nosso encontro então?
- Prefiro confiar na sua decisão Latem, apesar das poucas vezes não concordar com elas. Mas esteja certo que o líder dos dromis virá ao seu encontro no final da última tarde. Não preciso lembrar que o nosso tempo está se esgotando. Posso sentir a aproximação das forças de Viga, precisamos concluir o pacto.
- É mais que um pacto Seth. É uma revelação. O povo de Ydegart será a única referência da nossa existência aqui. São seres raros que aumentaria a cobiça e a ira de Viga. Perderam muito da sua origem e tradições, serão recompensados.
- Assim como Ydegart?
- Principalmente ele.
- Mas por que os dromis? São perigosos e podem causar muitos problemas.
- Os dromis são criaturas magníficas Seth. Eles são tão especiais e raros como o povo de Ydegart. São vítimas de um passado remoto, alimentado por sentimentos de poder e dominação. Estou convencido de que evoluíram e saberão repartir esse mundo no futuro.
- Evoluíram? Ainda é difícil de acreditar!
- Esse planeta pertence a eles, tem direito em decidir seus destinos, de existir. Enquanto houver a perseguição de Viga essa e outras galáxias estarão ameaçadas.
- Já houve muita interferência – comenta Seth.
- É exatamente isso que estamos tentando evitar. É impressionante como a evolução e o conceito que muitos entendem como vida se desdobram e se protegem. Aprendemos muito com as nossas próprias criações. E no caso dos dromis, terão uma oportunidade de manter a sua existência.
- São exatamente essas existências que não interessa a Viga.
- Não seja pessimista Seth. Devemos isso a Snefru. Ficará feliz com a nossa decisão.
- Ajudaria muito se ele estivesse aqui – Seth se afasta um pouco de Latem.
- Sua presença e dos demais enfraqueceria a nossa missão e Viga triunfaria. Precisamos sinalizar o novo caminho e você sabe que não estamos sós.
- Vou para casa, Ydegart já deve ter chegado e não confio muito naqueles três, são capazes de incendiar a caverna.
     Seth se transforma no falcão e salta no precipício, voltando com o vento em gracioso vôo para o alto dando um último olhar para Latem.
- Faça isso, nos encontramos em breve, irei ao encontro de Tabu – Latem acena para ave.
     Na caverna, Camar abre os olhos e ver um estranho em sua frente dormindo tranqüilo. Ele chama atenção de Tiri que está logo ao seu lado, batendo forte com o cotovelo e sussurrando.
- O que foi?
- Olhe!
- Quem é?
- Parece um mensageiro manasis.
     Porfi acorda com a conversa baixa dos dois amigos, quebrando o silêncio. Tiri faz um gesto com a cabeça indicando a direção ao estranho. Porfi se levanta, esfrega os olhos e anda em direção daquele que ainda dorme.
- Ydegart...É Ydegart!
     O mensageiro escuta o seu nome e se levanta. Olha para eles.
- Porfi...
- Quando foi que chegou?
- Não sei dizer ao certo, não quis acordá-los, parecia muito cansados, o que beberam?
- Ah....uma bebida boa... seremet.
     Camar pega o pote vira de ponta para baixo.
- Acabou, bebemos tudo. Será que Latem vai gostar disso?
- Latem? Então é aqui que ele mora?
- É sim – responde Porfi.
- Você me chamou de Ydegart? Como sabe? Você já havia partido quando me emprestaram esse nome.
     Porfi tenta acha uma resposta:
- Latem disse para nós e...
- É muito sábio esse ancião! – levanta-se Camar, olhando de soslaio pra Porfi.
- É verdade! Seja bem-vindo mensageiro, meu nome é Tiri, sou mensageiro dos amabis e esse é Camar, nosso sinaleiro.
- Verdades? Sábio? – Ydegart se lembra do que Nelin o havia dito sobre os poderes de Latem.
- O que faz um sinaleiro amabis por aqui?
     Camar olha para Porfi.
- Ydegart, está com fome?
- Sim, um pouco.
- Temos boa comida e também estamos com muita fome, não sabemos quanto tempo dormimos – disse Porfi.
- Nosso sinaleiro também sabe cozinhar bem – Tiri olha para Camar – Então! Vamos preparar algo para o nosso cansado viajante.
     Ydegart observa com curiosidade, percebe o esforço dos seus anfitriões e colabora com um sorriso.
- Vocês não estão me escondendo nada, estão? – Ydegart olha para Porfi – Um manasis não mente certo?
- Aconteceu muita coisa Ydegart, desde que sair da aldeia até aqui. Na verdade há muito que lhe contar, mas acho que Latem sabe mais do que imaginamos. Diremos a você tudo o que aconteceu até aqui, você não vai acreditar!
- Só tem um jeito de saber – encoraja Ydegart – Preciso de respostas.
- Você ainda não recuperou a memória?
- Não, acredito que Latem possa me ajudar. A minha missão só será completa quando retornar com você para a aldeia. Vou me casar com Nelin e todos nos aguardam para a festa da colheita.
     Camar alimenta a fogueira e Ydegart olha com curiosidade. Tiri se aproxima oferecendo água e frutos.
- Retornaremos para nosso povo, mas antes tenho um recado de Latem, ele voltará em breve e precisa conversar com você, tem algo importante para dizer. Mas sente-se, vamos lhe dizer tudo o que sabemos até aqui.
     Ydegart senta-se próximo ao fogo, retira as luvas e algumas vestes e leva a mão para perto do fogo, aquecendo-as. Os três amigos observam o bracelete de metal em seu braço.
- Um belo bracelete – disse Tiri, admirado.
- Presente de casamento – fala Ydegart, enquanto degusta os frutos, aprovando o paladar.
- É bom?
- Diferente, mas saboroso.
     Durante toda a ausência de Latem, os três amigos relatam com detalhes todo o acontecido em suas vidas. Ydegart escuta com paciência e atenção. Algumas vezes seu semblante revela uma compreensão rápida dos fatos e mentalmente, percebe que algo de muito importante está para acontecer. Sua alma se inquieta cada vez mais, quando eles falam do que aconteceu com os amabis e urus, dos gruns, da pirâmide, da origem extraterrestre do seu povo, dos deuses, dos ensinamentos de Latem, do treinamento com armas. Ele tem a impressão que tudo é muito familiar e que suas lembranças vão se revelar a qualquer momento.
     Ydegart chega sorrir, quando Camar descreve sua versão da chegada dos dromis, correndo em desespero para a caverna.
     Um elo de amizade e admiração se constrói entre eles, um sentimento de solidariedade e felicidade que Ydegart disfarça em não demonstrar.
     No certo momento, Tiri que desde o início admirava o bracelete de Ydegart, percebe que o mesmo começa a brilhar.
- Olhe isso!
     Ydegart se espanta e aos poucos o brilho diminui, voltando ao normal. Todos se entreolham. Um cansaço intenso se apodera de Ydegart, suas forças parecem ter sido sugadas e de súbito desmaia. Ele é rapidamente amparado por Tiri e Camar. O lobo Seth entra silencioso na caverna.
     Tabu está adormecendo, encolhido num canto do abrigo que o falcão lhe indicou, está febril e delirante. Não percebe que uma parte da parede rochosa se desintegra. Latem se aproxima de Tabu através dessa passagem.
- Tabu...Tabu
     Ainda muito fraco, o ancião manasis vira o rosto e consegue esboçar um leve sorriso.
- Latem...
- Calma meu velho amigo, está seguro agora – Latem ampara a cabeça de Tabu com as mãos.
- “Algo de estranho aconteceu” – diz Tabu, com esforço.
- Eu sei meu amigo, eu sei - Latem deixa escapar um sorriso amistoso.
- O meu povo.... – Tabu tem espasmos de tosse – O meu povo...
- Você não está nada bem. Preciso que fique bom, para que possa ajudar em conduzir o seu povo.
- O que aconteceu? Onde está meu povo?
- Eles estão bem, posso lhe garantir. Agora feche os olhos, vamos fazer uma pequena viagem.
     Latem toca o dedo indicador direito no chão e eleva o braço sobre a cabeça, tocando novamente o chão do seu lado esquerdo. Um arco de luz se forma sobre eles e depois se abre cobrindo-os em forma de domo. Em frações de segundos, os dois desaparecem na intensa luz que logo se desfaz.
     Nos aposentos de Latem, o gato Mau encontra-se distraído e sonolento sobre macios tapetes de mescas. Uma leve brisa sopra as chamas das lamparinas. O gato balança a cauda e mia feliz. O animal observa tranqüilo a chegada de Latem e Tabu, envoltos numa cortina de luz branca e suave.
     O gato corre ao encontro de Latem, olha para Tabu deitado no chão, subindo em seu tórax e cheirando a sua face. O gato mia olhando Latem.
- É meu amiguinho, ele não está bem, mas vamos cuidar disso.
     Impondo as mãos, Latem emite feixes de luzes que serpenteiam em direção ao corpo de Tabu. Suas vestes começam a se desintegrar e seu corpo despido levita em direção à rústica piscina de águas quentes, ficando a poucos centímetros da superfície. Inúmeras gotículas de água sobem em direção do corpo de Tabu como se chovesse ao contrário. A água muda de cor transparente para um azul esmeralda. Uma coluna horizontal compacta da mesma se eleva atravessando o corpo do manasis e retornando a formação original. Latem fecha os olhos e um pequeno sol se forma sobre enfermo. Microscópicas fagulhas de fogo rodopiam sobre Tabu, revitalizando e secando o seu corpo.
     O gato Mau corre de repente. Latem percebe a presença de Seth em forma de mulher trazendo uma macia manta de pele, envolvendo o corpo de Tabu que se desloca flutuando para um espaço confortável. Seth acomoda o ancião com carinho e toca em sua testa.
     O pequeno sol se desfaz, as águas se acalmam, Latem baixa os braços.
- Obrigado Seth.
- É um prazer – Seth acende alguns incensos aromáticos e medicinais.
- Como estão os nossos heróis?
- Seus heróis beberam toda seremet.
     Latem se esforça para não sorrir.
- Estão bem?
- Sim. Estão bem acompanhados.
- Ydegart está com eles?
- Agora não mais, desmaiou. O bracelete ativou e alterou seu campo vibratório.
- Precisamos trazê-lo para cá.
- Acho bom, o tempo está mudando, os aliados de Viga já interferem na atmosfera do planeta. A noite chegará logo e o líder dos dromis o aguarda no platô.
- Quero que venha comigo.
- Acho que não é uma boa idéia.
- Você não teve culpa Seth. Cumpriu bem a sua missão. De certa forma, você salvou a sua vida e lhe deu uma nova. Além disso, posso precisar de proteção.
     Seth tenta disfarçar um sorriso com graciosa sensualidade.
- Quem precisa de proteção sou eu, grande Deus Rá!
     Latem arqueia a sobrancelha, virando um pouco a cabeça:
- Isso quer dizer um sim?
- Vamos! Não perderia por nada esse encontro. E você está certo, ele me deve a vida.
- Deixemos Tabu aqui descansando. Abriremos as passagens para que nossos amigos cheguem até aqui.
     Latem abre a palma da mão e surgi uma pequena labareda de fogo. Ele estica o braço em direção a escadaria de pedra. A chama segue pelo caminho indicado e vai dissolvendo as passagens de rochas até a saída da caverna. Os dois deuses  dão as mãos e desmaterializam-se em vapores luminosos.
      Logo a cima, na entrada da caverna, Tiri olha com receio por todos os lados e retorna.
- Onde Seth está?
- Não sei! Acho que foi avisar a Latem quando viu Ydegart desmaiado e...

     Um raio corta o céu da montanha e um trovão ensurdecedor ecoa dentro da caverna. Tiri põem a mão nos ouvidos e corre. Camar se cobriu com uma manta.
- Pelos deuses!
     O mesca também se levanta e vocaliza alto. Ydegart se recupera do desmaio.
- O que houve?
- Você apagou! – disse Camar, gritando assustado por debaixo da manta.
     Porfi ajuda Ydegart a se levantar e segue com ele para a saída da caverna.
- Para onde vocês vão! – grita Tiri, após ouvir trovões distantes.
- Acho que escutei algo – responde Ydegart, percebendo a ansiedade do mesca.
- Cuidado! Pode ser os dromis! – grita Camar, descontrolado.
    Porfi olha para Ydegart.
- Odeio dromis!
     Ydegart ignora o comentário.
- Não é isso Porfi! Olhe!
- Um mesca!
     Ydegart corre em direção a uma incomum e forte ventania e vai buscar o outro mesca para a caverna. Porfi o acompanha com o olhar. Observa o céu escurecendo com ameaçadoras nuvens negras deslocando-se rápidas e relampejando.  Escutam-se vários e fortes estrondos. Ele ver um flash de luz laranja no alto do platô e não consegue visualizar o céu.
- Olhe Ydegart! – Porfi grita, tentando vencer o ruído do vento.
- Estou vendo! Vamos entrar, o céu parece que vai cair sobre nós!

     Ydegart leva o mesca para junto do outro. Porfi com a ajuda de Tiri levanta uma grande pele curtida e fecha a entrada da caverna. A clarabóia da área ao lado, onde costumam dormir, parece um instrumento de sopro ampliando o som do vento. Após alguns minutos, todos se acalmam. Camar abre a manta.
- Que cheiro é esse?
- É kyphi, a fumaça boa que Latem usa – disse Porfi.
     Todos se concentram em farejar o cheiro do incenso que sobe por uma passagem no interior da caverna.
- Olhe! Vem daquela passagem – aponta Porfi.
     O vento derruba a porta de pele lançando-a para cima de todos. Os mesca se agitam e seguem aparentemente tranqüilos para a passagem que fora anteriormente liberada por Latem.
- Para onde eles vão? – pergunta Tiri.
     Ydegart observa os mescas.
- Amigos não podemos ficar, logo vai escurecer, o frio e o vento apagarão o fogo. Aprendi com Ascat que sempre devemos confiar nos mescas! Vamos segui-los!
     A maneira como Ydegart se expressou, revelando segurança e prudência, transmitiu para Porfi, Tiri e Camar uma sensação inconfundível de um autêntico líder. E mais do que isso, eles olham admirados por saberem uma parte do que representa a lenda viva: “O Ydegart está aqui conosco” foi o pensamento coletivo que os emocionava em segredo.
     Ydegart olha para os três amigos.
- Vocês estão bem? – Silenciosos, os três confirmam com gestos.
     Ydegart segue na frente. Percebe que os mescas estão muito adiantados. O cheiro de kyphi fica mais intenso. Eles olham curiosos se apoiando na parede. 
     Uma pequena chama estaciona, flutua e serpenteia suavemente sobre eles iluminando o caminho. Finalmente enxergam luz no fim da escadaria e encontram a larga câmara dos aposentos de Latem. Os mescas bebem água próximo da fonte. A chama rodopia em direção onde Tabu se encontra.

- Olhe! É Tabu! – Porfi corre em direção ao ancião.
- Tabu! Tabu!
     O velho manasis abre os olhos e se alegra em ver Porfi, eles se abraçam.
- Encontrei você! Meu jovem mensageiro!
- Tabu....O que faz aqui?
- Latem me achou, estava quase morto e...onde estou?
- Na morada de Latem.
     Tabu olha sobre os ombros de Porfi.
- Ydegart! Tiri!...Camar? É você?
- Como vai velho amigo, saudações amabis!
- Saudações!
     Tabu se levanta rápido e com desenvoltura. Percebe que está revigorado, sem dores e uma estranha disposição.
     Camar observa:
- Os ares da montanha lhe fizeram bem!
     O ancião sorrir, concordando. Ydegart se aproxima.
- O que houve Tabu? Onde está Nelin?
- Sinto muito Ydegart, não sei dizer. Sumiram todos – Tabu se apressa em se vestir.
- Lá fora, o tempo está muito feio! – argumenta Tiri – Tem alguma coisa muito séria acontecendo e acho que está muito perto de nós.
     Enquanto escutava a conversa, Ydegart caminha atento pela câmara. Olha para a fonte, as águas límpidas. Ele sente uma energia familiar correndo por suas veias. De súbito, o gato Mau pula de uma pedra e desce ao solo. Segue em direção a Ydegart que se mantém imóvel.
- Não tenha medo Ydegart, são inofensivos! O nome dele é Mau!
     O gato mia e encosta na perna de Ydegart. Tiri se abaixa e estende a mão. O gato corre em sua direção e logo em seguida está em seus braços.
- Ydegart! Você é chave de todas as respostas. Precisamos ficar aqui, aguardando Latem. Ele protege o nosso povo desde os nossos ancestrais. Não é um manasis, amabis ou urus. Quando o encontrar, não estranhe a sua aparência. Ele não é deste mundo. Ele sabe da sua condição, sem lembranças, ele vai lhe curar e tudo ficará claro como a luz do dia.
     Ydegart escuta com atenção e silêncio. Apesar de está surpreso e feliz com a possibilidade de recuperar a memória, seus pensamentos estão voltados para Nelin.
     No alto do platô, Latem encontra-se sozinho a espera do líder dos dromis.
     De repente, os fortes ventos param. Um silêncio absoluto e uma luz tênue envolvem o ambiente, criando uma protetora atmosfera numa cúpula de energia. Latem percebe a chegada discreta do líder dos dromis. A sua silhueta imponente se ilumina com os vapores gelados da noite que já se apresenta. O dromi atravessa tranqüilo pelo campo de energia. Seth, em forma de lobo, também aparece por trás de Latem.
     Quando chega a poucos metros, o líder dos dromis se transforma em um homem da raça humana. Ele usa trajes nobres que demonstra a sua antiga origem. Solidário, o lobo Seth se transforma em mulher e fica ao lado de Latem.
- Seja bem-vindo, filho de Snefru – Saúda Latem, numa antiga língua egípcia.
- Recebi a sua mensagem e a esfera. O que me trás a presença de tão poderosos deuses? E qual o motivo de tamanha generosidade?
- Chegou o momento da libertação, nobre Khufu. Devo isso ao teu pai, o criador da vida deste mundo – responde Latem.
- Deusa Seth – Khufu faz uma respeitosa reverência.
     Também usando trajes egípcios, Seth retribui com gestos suaves, sem perder a sensualidade que lhe é peculiar.
- Espero que as nossas diferenças possam ser superadas Khufu – comenta Seth.
- No tempo que eu conheço, foi suficiente para compreender a sua atitude. Fui devidamente castigado pela minha insanidade na Terra.
- Não foi castigo – intervém Seth – Foi uma necessidade e um aprendizado para você com a permissão do seu pai. Uma difícil missão que me foi confiada. Os aumarantes jamais permitiriam que você se apoderasse completamente dos poderes herdados de Snefru e ameaçar a integridade da Deusa Luna.
- Não sou um deus – disse Khufu, humildemente – Não possuo tantos poderes como acreditam.
- Mas tem poderes extraordinários para um semideus – esclarece Latem – Seu pai o aguarda antes de atravessarmos a fronteira, espera que você colabore com a nossa jornada.
- Estou aqui para servi-lo – Khufu faz nova reverência – Através dos olhos do gato Mau, recebi seus ensinamentos, orientações e minha independência.
- Usará de sabedoria para servir a todos e a si mesmo Khufu. Salvamos a sua vida e a raça humana foi preservada. Impedimos que fosse aprisionado pelos aumarantes e de ter a sua memória apagada ou mesmo permanecer em letargia.
- Ou pior! – comenta Seth – Poderia engrossar as fileiras de semideuses que servem a Viga.
     Khufu abre a palma da mão e a pequena esfera acende.
- Sou muito grato e sei que posso retribuir. Com esta esfera, sinto forças extraordinárias, que fluem solidárias ao meu desenvolvimento. Serei cauteloso em usar esse poder, precisarei sempre dos seus conselhos Deus Rá. Percebo também, que o nosso tempo neste planeta chegou ao fim.
     Khufu olha para o céu:
- Vejam! Os aliados de Viga já estão nesse mundo, uma guerra está acontecendo do outro lado do planeta e os dromis, são uma das poucas criaturas legítimas desse mundo que está para ser extinta.
     Latem se aproxima de Khufu:
- Essa esfera que está em seu poder é um presente do seu pai. Ele o ama como tudo o mais que criou e conheceu. A fonte do conhecimento que Snefru gostaria de compartilhar com você está contida na esfera. Ela te revelará tudo que precisas para reconstruir e viver entre os dois mundos, como foi a sua primeira intenção. O Planeta Gir e a vida que nele existe, inclusive os dromis, seguirão o seu destino natural, como os muitos corpos celestes espalhados por esse universo. Aos olhos do gato Mau, sempre receberás os meus conselhos, quando assim precisares e quando ainda eu estiver neste plano.
 - Um novo mundo? Voltarei à Terra?
- Sim por que não? É parte da sua missão, se você aceitar. Poderá visitar Gir, sempre que quiser e com os poucos conselheiros dromis que ainda lhe restam.
- Envergonho-me deles. Não fui forte o suficiente para orientá-los. Lamento por terem provocados tantos transtornos.
- Não precisa se envergonhar. Foram rebeldes e péssimos conselheiros na Terra e aqui em Gir. Você deu-lhes o livre arbítrio para decidir em que caminho queria seguir e eles fizeram a escolha.
- Seguiram o caminho da ambição, a mesma que quase me destruiu.
- Escolheram viver como seres livres, renegando direitos, deveres e responsabilidade. Rebelaram-se e criaram outro clã. Tinham medo do futuro e não queriam se culpar por isso. Fizeram o que achavam que era o certo.
     Seth lamenta o passado:
- Infelizmente, tive que matar muitos dromis.
     Khufu faz um gesto e cinco homens se materializam por trás dele, discretamente trajados e silenciosos.
- Nem todos se rebelaram. Esses são os meus fieis conselheiros.
- E todos os legítimos dromis? – pergunta Seth.
- Estão as dezenas aqui na montanha, seguros e assustados.
- Dezenas? Não imaginava que causei tantas baixas, na verdade nunca me preocupei em contar.
- Os crocodilos fizeram bem seu trabalho – responde Khufu.
- Foi necessário – interrompe Latem – Serão devolvidos ao seu mundo de origem.
- Sabemos disso, poderoso deus. Mas, qual é a minha missão?
- Retornará a Terra, seu lar de origem e lá viverá com seus conselheiros na forma humana e original. A espécie dromis existirá definitivamente aqui, sobe a sua proteção. Eles reinarão livres nesse planeta, mas sempre terão de ter cuidado e manter distância dos futuros habitantes conscientes. Escolha um líder legítimo para eles seguirem.
- E os gatos?
- Uma parte deles retornará a Terra e alguns ficarão. Os dromis vão entender que não precisam ter medo dos frágeis gatos.
- Já escolhi um novo líder para os dromis. Seth o conhece bem. Ele sempre escapou de suas espreitadas, é forte e inteligente.
- Fez uma boa escolha – concorda Seth.
- O meu antigo e primeiro povo sempre admiraram os gatos e com os dromis não será diferente. Cuidarão dos poucos que aqui ficarem com os devidos respeitos – promete Khufu.
- Mas antes, preciso que você ajude conduzir Ydegart e seu povo para o seu planeta natal, onde estarão seguros em completar a sua evolução – orienta Latem.
- Mas como poderei fazer tudo isso? Meus poderes são limitados.
- Temos amigos que nos ajudaram nessa viagem.
     Seth se aproxima de Khufu:
- Você ajudará em conduzir povos especiais e fundamentais para uma futura existência nessa galáxia. As civilizações da federação não têm conhecimento da existência de vida consciente aqui, dos dromis e o do povo de Ydegart em especial.
     Latem fornece mais informações:
- Houve uma necessária intervenção no passado, realizada por um casal de deuses. Tiveram a valiosa ajuda dos deluvianos, seres por mim criados. Eles estão agora, na órbita desse planeta, lutando em grande vantagem contra as forças de Viga, eliminando-os.
- Em breve, chamará a atenção da federação – alerta Khufu.
- Sabemos disso. Mas não os encontraram aqui. Os deluvianos com ajuda dos gruns, que foram enviados pela Deusa Lilith, fizeram um excelente trabalho.
- Um pouco traumático – reconhece Seth - Todos os vestígios da presença do povo de Ydegart, casas, utensílios e objetos pessoais foram apagados. Ficaram apenas as inscrições nessa montanha. Em cada clã do povo de Ydegart, deixamos anciãos que preservavam e repassavam parte da sua cultura. Um dia, tudo será revelado e compreendido.
     Latem se aproxima da parceira:
- Em muitas vezes, Seth tinha que usar seus poderes para garantir a união dos clãs, chegando assumir a forma deles. Entre os manasis, assumiu a identidade de Domar, um órfão que desde jovem foi adotado pela matriarca Julaia e com a chegada de Zuila, uma importante aliada, conseguimos completar nossos objetivos. Zuila é conhecida entre os manasis como Nelin, é uma das fieis colaboradoras de Lilith e esposa de Ydegart, recebeu ensinamentos e domínios sobre os gruns, criaturas oriundas de um reino vizinho a está galáxia.
- E como seguiremos para a Terra e como poderei visitar Gir?
- Em outro passado, havia um pequeno planeta que teve a sua superfície transformada em puro carbono e pertencia à órbita do sistema solar onde a Terra ainda faz parte. Era conhecida em remotos tempos entre os terráqueos como Planeta Éris. Em nosso tempo sideral e em várias dimensões do universo, o diamantino planeta vermelho de condução chama-se Estrela Navan. Seu núcleo e poder são gerados pela esfera embrionária de um deus com o mesmo nome. É considerada uma lenda em muitas civilizações e também é o maior pesadelo de Viga e dos seus aliados. A esfera Navan é conduzida pela raça deluviana e será o transporte que você, seus conselheiros e o povo de Ydegart utilizarão para chegar aos seus destinos.
- E quando será?
- Muito em breve. Assim que os deluvianos derrotarem as forças de Viga, que pretendem destruir esse planeta, eles virá resgatá-los.
- Estaremos preparados ao seu chamado.
- Nos primeiros momentos de luz do segundo dia, nos encontraremos novamente aqui e em pouco tempo já estarão seguindo de volta ao lar.
- E os dromis? Outras investidas de Viga poderão acontecer.
- Você poderá acompanhar o desenvolvimento dos dromis da Terra, pelos olhos dos gatos que aqui ficarão. E usando o poder da sua esfera, visitará o Planeta Gir e outros pontos da Galáxia de Áxis, transportando-se e materializando-se pelas diversas pirâmides construídas pelo seu pai e atravessando o tempo.
- Que mundo encontraremos na Terra? E quando verei o meu pai?
- A Terra já não é a mesma, houve grandes mudanças climáticas, mas serão bem recebidos pela nova raça que o habita. No tempo do Planeta Terra, milhões de anos já se passaram desde a sua época em Kemet.
     Latem entrega uma fina e pequena placa de cristal com um hieróglifo.
  - Kemet? – alegra-se Khufu.
- Sim. Entregue a Gumenzid, líder dos Deluvianos e condutor da estrela. É uma chave programada por mim, que vai lhe conduzir de volta ao seu mundo.
- Somos gratos.
- A sua presença e de seus conselheiros na Terra será fundamental para auxiliar em garantir a sua sobrevivência e de um novo destino que os aguarda. Você  poderá encontrar o seu pai um dia. O importante é lembrar sempre, que na Terra ou fora dela, enquanto seus conselheiros estiverem sob a influência da esfera, seus corpos não sofreram degenerações, mas não quer dizer que serão imortais, estarão unidos por uma vitalidade comum. Só poderão se transformar em dromis quando estiverem aqui, mas isso deve ser evitado.
- Estamos prontos para cumprir essa missão, Deus Rá. Mas, aos olhos do Gato Mau, vejo que alguns dos seus protegidos estão em perigo.
    Há centenas de quilômetros dali, uma guerra aérea está terminando. As vermelhas e luminosas naves-esferas oriundas da Estrela Navan, perseguem e destroem entre as montanhas, um resistente grupo de esferas negras inimigas.   
     Próximo ao solo, centenas de gruns aliados da Deusa Lilith realizam um embate sangrento com outros gruns, fiéis as forças de Viga.
     Um pequeno grupo inimigo de guerreiros aturianos, usando de última tentativa de salvar suas vidas, montam em gruns e voam para locais de difícil acesso. Eles conseguem escapar das esferas vermelhas, mergulhando e camuflando-se nas escuras e geladas águas dos lagos pantanoso. No entanto, para muitos foi um erro fatal, tornando-se vítimas fáceis dos desconhecidos e grandes crocodilos que os engolem com facilidade. Os que sobreviveram, partem desesperados e voando para fora d’água escapam por poucos centímetros das abocanhadas e afiados dentes das feras aquáticas.
     Ao se aproximarem de uma parte alta da montanha, os aturianos em pleno vôo raso, pulam dos gruns e correm.
     Contorcendo-se, eles se escondem nas fissuras de pequenas grutas do paredão rochoso. Nos lagos, algumas esferas vermelhas assistem o banquete dos crocodilos, certificando-se que nada sairá vivo, enquanto outras perseguem e matam os gruns inimigos.
     Uma minuciosa varredura é feita na montanha pelas esferas vermelhas. Nenhum inimigo vivo é achado. As esferas se reúnem no céu e como se obedecessem a um chamado, partem enfileiradas em direção ao espaço, recolhendo-se na Estrela Navan.
     Um grupo de gruns aliados reúne-se no solo, posicionando as cabeças para o alto e emitindo grunhidos excitados. Um estrondo ecoa pelos vales e montanhas e um grande halo luminoso vermelho recai sobre eles, fazendo-os desaparecer em milésimos de segundos.
     Os aturianos são geneticamente desconhecidos. A espécie primitiva e original encontra-se extinta devido ao próprio mecanismo evolutivo que rege suas estruturas corporais. Um contato físico e prolongado com outro ser vivo, permite uma transfusão osmótica através da pele e suas células assimilam algumas características deste ser, podendo ser hereditárias ou não, conforme as condições do planeta em que vivem. São seres miméticos, podem se camuflar com as cores do ambiente, desde que estejam calmos e emocionalmente equilibrados. Não sente frio ou calor, o que não impede de morrerem em função disso. Podem ser adaptar e respirar em qualquer atmosfera e enxerga na mais profunda escuridão. São tolerantes a luz e a dor e raramente sentem fome, e quando o alimento é escasso, comem pequenas partes dos seus próprios corpos que se regeneram em poucos minutos. Podem ser mover e saltar rapidamente e os que possuem ventosas nos dedos, se deslocam e escalam qualquer superfície. Outra impressionante característica de raças anturianas é de imitar sons e vozes.
     No combate, a fuga dos aturianos foi além da zona de conflito. Atingiu a região montanhosa próxima de onde se encontra a caverna de Latem.  
     Percorrendo os estreitos túneis, os aturianos encontram com seus faros apurados, as trilhas comumente utilizadas pelos gatos que vivem nessa região.
     Uma grande quantidade de gatos se aproxima enfurecidos na tentativa de espantar os invasores que não se intimidam. Alguns aturianos famintos chegam a matar alguns gatos, sugando seus fluidos como se fossem esponjas. Outros preferiram atacar os anilos, fazendo do contato físico com esses animais, a inevitável transferência de características e estímulos mutantes.
     Um líder dos aturianos que se adiantou na exploração das cavernas, chama os demais para o seguirem. Ele havia encontrado um caminho para um ambiente seguro e compartilha com o grupo as partículas de cheiro que captou, esfregando as palmas das mãos nas narinas dos seus companheiros. Os aturianos já sabem que não estão sozinhos naquela montanha e que essa informação seria valiosa para os aliados de Viga, que os recompensariam. Uma invasão inusitada no Planeta Gir, não totalmente controlada pela Estrela Navan, pode por em risco a missão de resgate do povo de Ydegart.






Capítulo 4

O RETORNO DE YDEGART


     Já é noite no Planeta Gir. Os transtornos atmosféricos e eletromagnéticos provocados pela batalha haviam terminado. No céu, alguns conglomerados de nuvens ainda exibem um misto de cores, resultado da poeira de explosões das esferas inimigas.
     Na câmara de Latem, onde manasis e amabis se encontram, os mescas se agitam. Tabu se aproxima dos animais e tenta acalmá-los.
- Estão agitados, sentem cheiro de predadores! Algo de ruim se aproxima!
- Dromis! São os Dromis! – diz Camar, aflito.
- Odeio Dromis! – completa Porfi.
- Não acredito que sejam dromis – disse Tiri – Latem falou que eles não entram aqui, tem medo dos gatos e...
      Tiri não chegou a concluir as suas palavras quando todos escutaram vários miados de gatos e chiados de anilos. O som surgia de vários pontos da câmara.
- Eles devem está caçando – afirma Porfi.
     O Gato Mau se arrepia e corre para perto da fonte. Seus olhos emitem um suave brilho, como um espelho que reflete as imagens do ambiente. Ele mia para os mescas que partem em sua direção. Os animais entram na água e o seguem conformados. Eles atravessam uma cortina d’água e uma projeção de uma falsa parede que se dissolve, fazendo-os cair e desaparecer por um escorrego de pedra limoso nas profundezas escuras da montanha.
     Tabu se aproxima e observa.
- É um local de fuga! Eles fugiram! Isso não é bom, devemos ir também!
     Os outros também vão olhar.
- Não acho uma boa idéia! Devemos ficar e esperar – aconselha Camar.
     Ydegart procura algo na câmara:
- Seja lá o que for não temos como nos defender.
- Temos armas! Vamos pegá-las – avisa Tiri, o que os demais concorda e o segue.
     Tabu se aproxima.
- Você já se sacrificou muito pelo seu povo Ydegart, chegou o momento de nos sacrificarmos por você. Vá! Siga os mescas! Salve sua vida! Tentaremos distrair essa ameaça!
     O ancião se põe a frente de Ydegart e este pousa a mão em seu ombro.
- Ainda não sei quem fui Latem. Mas sei até onde posso ser. Agora sou um manasis e a esse povo devo a minha vida.
     Do alto e da escuridão da câmara, uma forma aturiana com garras e calda de gato se precipita em direção as costa de Tabu. Ydegart grita e puxa Latem para perto de si e cai com ele.  Ydegart empunha o braço para cima como instinto de defesa e um feixe de energia plásmica sai do bracelete que Nelin o havia dado de presente de casamento. O mutante aturiano se desmancha em poeira.
     Mas logo em seguida, outro selvagem mutante salta imediatamente sobre eles e cai morto antes de concluir o bote, uma flecha atravessou sua cabeça. Ainda no chão, Latem e Ydegart se espantam com o que vêem. Porfi já armava o arco e flecha acertando outro aturiano que pulara para atacar Camar, que acabava de empalar outro inimigo com a lança.
     Enquanto isso, Tiri girava a espada cortando com rara habilidade as gargantas dos agressores que lhe atravessavam o caminho. Os três amigos mataram os primeiros aturianos, que naquele breve momento, haviam entrado na câmara.  
     Tabu e Ydegart se levantam.
- Onde eles aprenderam a lutar assim! – pergunta Tabu.
- No momento, queria saber o que tem nesse bracelete – Ydegart observa o seu presente de casamento com atenção.
- Uma arma Ydegart, uma arma poderosa, digna de um líder – responde Tabu.
     Se perder tempo de comemorar o feito com os amigos, Porfi escala com destreza uma pequena parte da parede da câmara e escuta ruídos ecoando de vários buracos.
- Aqui tem mais dessas coisas! Estão chegando por toda parte! São muitos, não vamos conseguir!
- Vamos sim Camar! Pegue o bum! – Tiri se apressa em acender uma vareta no fogo, queima os pavios das bolas de couro e arremessa para Camar. Ele atira dentro das fendas. Porfi faz a mesma coisa em outro local.
     As explosões fazem a câmara tremer e se desestabilizar. Gritos de dor e pavor se escutam pelos labirintos ocultos da montanha. Mas nem todos os buracos são possíveis atingir e colocar explosivos, são demasiadamente altos. Do teto da caverna, outras mutações de aturianos com asas de anilos surgem sorrateiras, arrastando-se pelo alto como morcegos, espalhando-se as dezenas.
- Mas o que isso! – grita Camar.
     Ydegart não espera entender do que se trata e logo direciona o bracelete para o alto queimando os estranhos seres que voam prá todos os lados chamuscados e agonizantes.
- Tem outro buraco aqui! Debaixo da escada! – grita Camar.
- Jogue a areia venenosa dentro dele Camar! – grita Porfi terminando de jogar o último explosivo. O impacto deste último o desequilibra e ele despenca da pedra. Ydegart corre para socorrer o amigo e ao estender os braços para amortecer a sua queda, o bracelete acende anulando a gravidade e Porfi cai suavemente em seus braços.
- Obrigado!
- Não precisa! – responde Ydegart assustado, feliz por não ter queimado o amigo.
     Ainda sem acreditar no que tinha visto, Camar põe rápido o saco de areia venenosa sobre o buraco e com a ponta da lança abre um rasgo. O pó cai por completo sobre os primeiros aturianos que se rastejavam procurando fendas fáceis e mais baixas. O horror dos sons de sofrimento provocado pelo veneno era indescritível. Logo surgiram dos buracos as primeiras vítimas, com a pele em ardência e queimaduras que eclodiam bolhas purulentas. Os inimigos se contorciam no chão ainda tentando alcançar fonte de água para aliviar as dores. Mas Camar antecipava seus sofrimentos, espetando seus corpos com a ponta da lança.
     Tiri corre, subindo pela escada.
- Vamos sair daqui!
- Para onde? A noite já chegou está frio lá fora! – alerta Porfi.
     No meio da confusão, não perceberam que Camar já havia subido até a entrada da caverna. Ao chegar à saída, seus olhos se arregalam de medo. Ver Dromis atacando os aturianos que tentavam entrar na caverna. Um dos dromis, um líder diferente, rugiu para Camar e este desce as escadas gritando como louco.
- Dromis! Dromis! Dromis!
- Dromis? Isso está ficando muito ruim e... Camar para onde você vai? – grita Tiri.
     Camar sem perder tempo e sem pensar, atordoado pelo desespero e pavor que nutre pelos dromis, pula na cortina d’água por onde os mescas passaram e cai no escorrego gritando.
- Seguir os mescas!
     Tabu olha para Ydegart e este balança afirmativamente a cabeça. Ele senta no passo do escorrego com ancião Tabu em seu colo e se precipita para dentro do túnel d’água, não havendo opção para Tiri e Porfi do que fazer o mesmo.
     Latem e Seth se materializam na câmara.
- Imprevistos acontecem – fala Seth com ironia – Eu avisei que estávamos correndo riscos.
- Houve uma batalha e tanto por aqui, minha casa está uma desordem – desconversa Latem.
- Foram atacados por aturianos!
- Seja quem foi Seth, já estão eliminados.
- Seguiram pelo túnel d’água. Esqueceram as armas, mas lutaram bravamente, aprenderam bem a manejá-las.
- Se eles não seguiram o Gato Mau, o risco de descer para o lado errado do rio é... Os crocodilos! Preciso impedir que sejam devorados!
     Seth se transforma em lobo e subindo as escadas em largos saltos, sai da caverna passando pelos dromis que abrem caminho. Salta em direção ao abismo precipitando-se no ar e se transformado de imediato num falcão. Um dromis entra na câmara, desce pela escada e toma a forma de Khufu.
- Creio que seus amigos por enquanto estejam seguros Latem. Seus crocodilos estavam ocupados, fazendo a digestão próximo ao pântano. Vão demorar um pouco para vencer a correnteza e chegar até eles.
- O apetite dos meus meninos é bastante voraz Khufu. E eles nadam bem.
- Tenho a impressão que o nosso tempo aqui está mais escasso do que imaginávamos.
- Já estou mais que convencido disso – responde Latem.
- Aos olhos do gato, eles seguiram por outro caminho, consigo ver além dos mescas, Tabu e Ydegart - vislumbra Khufu.
- Os outros três seguiram direto para rio. Seth cuidará deles.
     Do lado de fora da montanha, Porfi e Tiri chegam nadando na margem do rio.
- Foi por pouco, onde está o resto?
- Não sei Porfi. Estava escuro, acho que nos desencontramos.
- Onde está Camar?
     Eles gritam chamando por Camar. E logo adiante ver o amigo exausto, tremendo de frio, segurando-se numa pedra.
- Camar!
- Porfi! Eu não sei nadar! Ajude-me!
- Tenha calma! Já estou indo!
     Porfi mergulha no rio e nada ao encontro de Camar. Com esforço, consegue suspendê-lo na pedra.
- Pronto Camar! Agora é só seguir andando com cuidado pelas pedras que você chega naquela margem.
     Camar não tem forças para prosseguir. A pouca luminosidade que existe vem do reflexo de dois pequenos planetas que ficam próximos a Gir.
- Não consigo, estou se forças!
- Tudo bem amigo. Vou tentar voltar pelas pedras e lhe erguer com Tiri, não saia daqui!
- Não acho uma boa idéia voltar a nado Porfi. Está muito cansado também e a correnteza aqui é forte.
- Tenho que tentar!
     Porfi se liberta da pedra e as previsões de Camar estavam certas. Porfi não consegue vencer a correnteza e dessa vez o leva para junto do paredão sem saída. Porfi consegue se segurar em outras pedras mas está encurralado. Na margem Tiri grita desesperado, fazendo gestos com o braço.
- Porfi! Porfi!
- Eu estou bem! Preciso descansar um pouco!
- Não é isso! Olhe! Um crocodilo!
- O quê?
     Um enorme crocodilo se aproxima em direção a Porfi. Tiri leva as mãos na cabeça e catando pedras, joga no animal na intenção de afastá-lo.
- Suba Porfi! Suba!
     Porfi tenta escalar o paredão, mas logo cai. O crocodilo mergulha para escapar das pedras jogadas por Tiri, reaparecendo a poucos metros de onde Porfi se encontra.
- Odeio crocodilos! – Porfi fala baixo e conformado com seu destino, se encosta assustado no paredão.
- Porfi! – grita Camar, vencendo os limites físicos. O medo do crocodilo e a intenção de salvar o amigo, o faz tentar um último esforço. Ele consegue subir e corre rápido sobre as pedras.
- Pelos deuses! – lamenta Tiri, na margem do rio.
     O crocodilo chega perto do rosto de Porfi encarando-o. Em seguida, mergulha enfiando a cabeça por entre as pernas de Porfi suspendendo-o em seu dorso. Porfi entende que o animal não quer devorá-lo e observa que outros crocodilos mal intencionados se aproximam, mas não avançam. Camar e Tiri não conseguem acreditar no que seus olhos vêem.
     Porfi chega à margem do rio em cima do dorso do crocodilo. Assim que chega ao raso, ele pula do animal e sai correndo para perto de Tiri que já o guarda a certa distância. O crocodilo fica na água, imóvel.
     Camar chega correndo e abraça Porfi.
- Pensei que ele iria te devorar!
- Eu também, mas acho que esse gostou de mim.
     Por trás dos arbustos altos, o líder dos dromis surge acompanhado de Latem.
- Na verdade, sabia que você monta bem mescas, corajoso Porfi, mas nunca imaginei que poderia montar um crocodilo – sorrir Latem, enquanto o crocodilo bate a cauda na água em sinal de protesto.
     Os três se viram.
- Latem! Esse bicho salvou minha vida e....
- Salvou mesmo!
- Latem! Tem um dromi enorme ao seu lado – diz Camar já pensando em preferir correr para o rio e ficar sob a proteção do crocodilo.
- É o líder dos dromis. É um amigo, está do nosso lado, assim como aquele crocodilo.
- Para mim são todos iguais, nunca parei prá olhar com calma qualquer diferença entre os dromis.
- Já é noite e o frio vai aumentar, precisam secar e recuperar as forças.
- Não podemos voltar à caverna! Tem criaturas estranhas por lá e....
- Já sabemos Camar. Vocês venceram e todos estão mortos. Seguiremos agora para o abrigo da pirâmide.
     Nesse momento surgem mais três dromis seguindo lentamente pela margem do rio e desviando do crocodilo que os olha de soslaio.
- Ah não! Mais dromis!
- Fique tranqüilo Camar esses dromis não são mais nossos inimigos. São nossos aliados. Subam nos dromis, eles o levaram até a caverna.
- Eu não vou conseguir!
     Tiri e Porfi confiam na palavra de Latem e se aproximam dos dromis que se deitam para que eles possam subir.
- Vamos lá Camar! Feche os olhos e pense que é um mesca!
     Com esforço, Camar atende ao pedido. Os animais seguem rápidos em direção ao abrigo indicado por Latem.
- Mau está aqui! Está guiando Ydegart e Tabu até nós – Informa o líder dos Dromis por pensamento.
- Gosto desse gato.
     Em pouco tempo, o felino corre para Latem. Ydegart e Tabu se escondem desconfiados do dromi.
- Não se preocupem amigos, se aproximem!
- Dromis não são perigosos?
- Sim Tabu, só para os que estão contra nós.
- Tivemos muita sorte em sobreviver lá em cima. Estou velho para essas coisas.
     Ydegart observa tudo com cautela.
- Aproxime-se! Estava a sua espera. Sei que existe muita confusão em sua mente, mas logo tudo será esclarecido.
- Desde que fui acolhido pelos manasis não tenho lembranças do meu passado, quem realmente sou, meu verdadeiro nome, de onde pertenço. Humildemente Latem, suplico a sua ajuda. Precisava lhe encontrar, soube que tem poderes de cura!
- Terá toda ajuda que precisa, mas também precisamos muito de você, seu povo precisa da sua liderança.
- Tudo é muito confuso, muito rápido, acho que vou enlouquecer.
- Temos pouco tempo e alguns segredos para revelar. O universo é complexo meu amigo, repleto de aprendizado e beleza além do que os sentidos e a razão nos fazem crer, para muitos sem explicação, para outros transparentes como a água. O que é extraordinário e mágico pode ser natural e até corriqueiro para os que vivenciam. Tudo que existe está envolvido num conjunto de hierarquias de objetivos que nos conduzirá a um final comum.
     Latem se aproxima do dromi:
- Aqui está uma pequena amostra do que falei, começando por esse dromi, que na essência possui outra forma, anterior a essa e mas familiar, deixo que ele se apresente.
     Latem olha para o dromi e este se transforma em humano.
- Saudações, meu nome é Khufu.
     Espanto e recuo de Ydegart e Tabu. Balançam a cabeça em retribuição da saudação, mas por instinto e surpresa do que por educação e respeito.
- Ele se parece com você Latem? É humano?
- Sim velho amigo. É uma das muitas raças humanas.
     Latem se aproxima da margem do rio, entra na água e acaricia o crocodilo, enquanto outros da espécie se aproximam, parecendo animados com a sua presença.
- Muitas vezes não percebemos, mas temos sempre amigos ocultos e desconhecidos que nos ajudam nos momentos difíceis e se alegram nos bons momentos.
     Mentalmente, Latem pede a Seth para conferir do alto se a região está segura dos aturianos. O crocodilo afasta-se lentamente de Latem e os demais o seguem mergulhando para o fundo do rio.
- E aquelas criaturas estranhas? De onde vieram? Quem são eles?– pergunta Tabu.
- São aturianos, criaturas de outros mundos. Servem a Viga.
     Por um instante, o nome Viga fez algum sentido para Ydegart.
- Esse nome? Depois de muito tempo, alguma coisa me parece familiar.
- O nome sim, mas nada de familiar – responde Latem, olhando para o céu e observando o sinal do falcão - Nossos amigos já chegaram e por enquanto não há ameaças.
- Vamos montados em dromis? – pergunta Tabu.
- Temos uma maneira mais rápida de fazer isso – disse Latem, que levanta os braços para o alto, fazendo surgir e descer um halo luminoso sobre eles. Em pouco tempo, a luz se intensifica e todos desaparecem.
     Na caverna da pirâmide, eles reaparecem. Durante as primeiras horas, todos se dedicam em recuperar as forças. Latem oferece roupas secas e farta quantidade de alimentos, na maioria frutos.
     Fora da caverna da pirâmide, Ydegart cuida dos mescas, os alimentado.  Silencioso, Ydegart está envolvido em pensamentos. Tabu observa a aflição do amigo e se aproxima.
- Está tudo bem?
- Onde está nosso povo? Onde está Nelin? Onde está a minha memória?
- Não se aflija Ydegart. Sinto que estamos muito próximos das respostas.  Também tenho muitas dúvidas e desde a época dos nossos ancestrais, existem muitos mistérios que não foram esclarecidos.
- Mistérios?
- Sim. Tenho certeza que todos eles têm ligação com a sua história de vida.
- Sinto falta de Nelin, às vezes tenho a impressão que ela está aqui, nos observando de algum lugar dessa montanha.
- Precisamos de respostas e acredito que eles as possuem.
     Latem chega sorridente e tranqüilo. Põem a mão sobre o ombro de Ydegart.
- Chegou o momento amigo, seu tormento e de seu povo acaba hoje.
     Ydegart anima-se com um leve sorriso de agradecimento. Latem ordena que Porfi, Tiri e Camar apanhem as tochas.
- Seguiremos todos para o interior da caverna da pirâmide,
- Estou velho e muito cansado com tantos sustos – avisa Tabu.
      Camar se aproxima de Latem:
- Também digo o mesmo.
     Antes de seguirem, Tiri pergunta a Porfi:
- Onde estão as armas?
- Não sei! Acho que deixamos na caverna, não lembro de ter descido com elas.
- Estamos bem protegidos com Latem, acho que não precisaremos mais delas.
- Espero que não.
     Ao se aproximarem de uma grande passagem na caverna da pirâmide, observam o lobo Seth no alto de uma pedra. Latem olha para ele e diz mentalmente para fique de guarda para evitar imprevistos. O lobo acompanha o grupo até sumirem na escuridão. Seth olha para os mescas e estes entendem as ordens para se abrigarem numa furna segura.
     Durante uma longa descida, as tochas iluminam as pinturas na parede, que conta mais histórias do povo de Ydegart.
     Latem abre um compartimento na parede e convida para o seguirem.
     Uma longa escadaria decrescente é percorrida. Ao chegar ao fim, encontram um extenso salão. Latem ergue o braço e pequenas chamas surgem acendendo dezenas de lamparinas. Depois, as chamas se juntam formando uma só. Elas se elevam para o alto e assim todos podem compreender onde realmente estão. Todos chegam ao centro de uma pirâmide.
     O piso é desenhado com vários círculos em faixas simétricas, um dentro do outro, conduzindo para o centro. Latem se aproxima desse centro, toca o chão, e um pedestal circular de puro cristal se eleva a poucos centímetros do piso. Ele levanta os braços e as chamas que estão no alto se unem numa só, aumentando de intensidade um pequeno sol, girando em seu próprio eixo.
     Fora da caverna, o lobo olha para o céu e ver a Estrela Navan também aumentando o seu brilho, iluminando todo o hemisfério do Planeta Gir. Ao longe, ele escuta sons guturais e ver que centenas de gruns se aproximam e aos poucos vão pousando agitados em pedras escarpadas, próximos à entrada da caverna. Montado em um dos gruns, encontra-se Nelin. Ela desce do animal e anda em direção ao lobo.
- Estou aqui. Chegou o momento.
     O lobo salta da pedra se transforma em Seth.
- Estão todos lá embaixo. Finalmente Ydegart se libertará do seu entorpecimento. Entre, mas por enquanto seja discreta.
- Obrigado Deusa Seth. A nossa missão finalmente estará terminada e devo-lhe uma eterna gratidão.
- Estava lhe aguardando, irei acompanhá-la.
     Nelin ordena para que os gruns protejam a caverna e eles obedecem com alguns grupos voando e rodopiando. Nada escapa aos seus olhares.
     No interior da pirâmide, Latem estica o braço com a palma da mão aberta convidando Ydegart para se aproximar e subir na plataforma de cristal. Ansioso e compenetrado, Ydegart vai ao encontro de Latem.
- A verdade será revelada. Aqui, seus amigos e parte do seu povo serão testemunhas de um renascimento. A sua mente foi envenenada pelos poderes dos que servem Viga, para que você atendesse os seus propósitos. Decidido em proteger seu povo e sua família, você aceitou poupar muitos daqueles que amava. Um pacto foi realizado, você salvaria seu povo e em troca serviria a Viga. Mas para isso, precisaria de uma parte do poder e este poder não poderia conviver com as lembranças do pacto. O poder foi corrompendo o seu interior e as suas virtudes até que você não tivesse mais noção de tempo. Você se tornou um escravo de luxo, que reinava absoluto em muitos domínios e dimensões desse universo. Muito tempo se passou para você Ydegart, tempo que é difícil mensurar, carregando na mente imagens flutuantes, a deriva pelo tempo-espaço que impulsiona a vida, a morte e a eternidade. Venha! Aproxime-se deste centro. Confie no poder que lhe trouxe até aqui, o seu poder, e deixe retornar a verdadeira e primeira natureza do Ydegart. Em seu ser, encontram-se todos os caminhos e respostas que lhe guiará a saída para o seu reencontro. Feche os olhos Ydegart! Sinta todos os valores de sua natureza divina, natureza essa que está em toda parte. Respire, respire profundamente.
      Uma atmosfera de emoção, paz e harmonia são sentidas por todos. Latem, consegue hipnotizar Ydegart, que se encontra em postura ereta e semi consciente. Latem se afasta do centro e da área dos círculos. Levanta os braços e a bola de fogo que se encontra no alto, desce lentamente e envolve todo o corpo de Ydegart. As chamas frias não o machucam, não ofusca e não o queima.  Aumenta cada vez mais de intensidade, neutralizando a influência de Viga sobre ele.
     Sem que outros percebam, Nelin e Seth se aproximam por trás. Manchas negras escapam do corpo de Ydegart e são queimadas por fagulhas que as perseguem para o alto.
     A bola de fogo emite diversas cores. Lentamente se eleva, fazendo Ydegart levitar por alguns segundos, trazendo-o de volta a chão. Latem olha para Nelin e faz sinal para que ela se aproxime. Nesse momento, os demais percebem a sua presença, mas não esboçam reação. Ele levanta novamente os braços e a bola de fogo se fragmenta e se dissipa.
     Nelin aproxima-se de Ydegart que ainda está inconsciente. Toca no seu rosto suavemente e o beija. Ele abre os olhos e sorrir sonolento, como se acordasse de uma prolongada hibernação enquanto viveu como o impiedoso Dracórius:
- Zuila.
- Ydegart.
     Eles se abraçam. Lágrimas escorrem dos seus rostos.
- Eu me lembro de tudo. Como fui capaz de ser tão cruel.
- Não foi culpa sua, olhe em sua volta, o pensamento o trouxe!
- Como conseguiram?
- Os deuses Rá e Seth conseguiram.
     Latem se aproxima, Ydegart vai ao seu encontro e se ajoelha.
- Deus Rá, perdoe-me.
     Indulgente e com a aura radiante, Latem se abaixa e faz Ydegart se levantar.
- Não há nada o que perdoar. Seja bem-vindo.
- Lembro-me de tê-lo procurado por todo universo e nunca o encontrei.
     Ydegart olha para os demais presentes, seu semblante é tranqüilo e amigável e eles se aproximam abraçando-o com efusiva alegria.
- Você teve muita sorte Ydegart – ele levanta a cabeça sob os ombros dos amigos.
- Deusa Seth!
     Porfi, Camar e Tiri ficam confusos com a bela humana que se apresenta com o nome de Seth. Eles olham para Latem que responde seus pensamentos balançando levemente a cabeça, afirmando que sim: A mulher e o lobo são os mesmos. Eles permanecem em silêncio e atentos.
- Não consigo lembrar-me de como escapei de Dracon – comenta Ydegart.
     Seth se aproxima:
- Não poderia. Os teus poderes foram bloqueados.
- Lembro que fui ferido por um humano, o General Nergal. E houve uma grande explosão. Fui abandonado pela Deusa Lilith.
- Você não foi abandonado, ela que o salvou.
- Mas como?
- A verdadeira Deusa Lilith foi transportada do mundo aumarante, para a verdadeira Lua Negra, momentos antes da explosão de Dracon. Você achava que servia a ela, mas na verdade, sua mente entorpecida servia a Viga e era esse o plano. Muitos povos do universo também acreditaram que a Deusa Lilith seria a responsável por tantas atrocidades e sofrimentos. Outros deuses se unem na tentativa de enfraquecer sua força e seus aliados. No instante em que tudo foi destruído, ela retardou a estrutura de tempo e conseguiu salvar todos com a ajuda da Deusa Nanna.
- Meus irmãos...estão mortos...Detra, Draves.
- Infelizmente sim. Apenas Forseti sobreviveu.
     Latem observa Ydegart com atenção:
- Quando vocês foram abduzidos no Planeta Sir, Viga obrigou você e seus irmãos que servissem aos seus propósitos de destruir as criações dos deuses. O pacto foi que o povo de Sir, ancestrais dos manasis, amabis e urus, teriam abrigo em um planeta seguro. Eles foram transportados para este planeta, pouco depois da decadência da cultura dromis. Para isso, teriam que anular os poderes do Deus Navan e dominar a sua esfera natal. Não havia vida consciente naquele remoto lugar do universo, onde deixei minha esfera, o sol deles, como sinal de minha passagem. Navan tinha uma importante missão em criar os aumarinos. Viga os localizou e enviou seus aliados para destruí-los.
- Tempos depois. Retornamos seguindo um sinal que encontramos de uma sonda desconhecida – Lembra Ydegart.
- Sim. E mais uma vez falharam – comenta Seth.
- Sinto profundamente por tudo isso...
- Não foi sua culpa, já dissemos – disse Zuila – Tivemos uma nova oportunidade. Servir a Deusa Lilith todo esse tempo e quando ela o salvou lhe transportou para esse mundo. Na noite em que as pedras de fogo caíram do céu, você chegou com os vestígios da explosão de Dracon. Recebi a confirmação da Deusa Seth que você finalmente havia retornado. Eu só precisava de uma oportunidade para cuidar dos seus ferimentos e conduzi-lo até Latem. Todo esse tempo, tive o apoio e proteção de Rá e Seth. Viver entre os manasis era o meu maior orgulho, pois eram descendentes do nosso povo draconiano. Ajudei a cuidar deles até a sua volta.
- E agora? – diz Ydegart.
     Enquanto fala. Latem se afasta um pouco para um lugar mais reservado.
- Precisa reconduzir seu povo draconiano a sua verdadeira terra natal. A Estrela Navan está aqui para transportá-los. Seu povo está seguro e bem cuidado pelos deluvianos.
- Estrela Navan?
     Zuila tranqüiliza Ydegart sobre os fatos que ele ainda desconhece.
     Camar até então observa tudo com curiosidade, não resiste em participar da conversa:
- Um momento, quer dizer que aquela história nas pinturas do deus que foi visitar a filha e tudo mais era você Latem?
- Sim amigo. Sou eu.
- Eu disse nada de sustos lembra?
- Lembro, mais ainda não posso prometer isso.
     Um círculo desce do teto e dentro dele um ser gigante. Ele olha para Latem e inclina levemente o corpo para frente.
- Navan Deus Rá.
- Navan Gumenzid – Chegou o momento. Conduza esse belo povo para casa.
- Por favor queiram se aproximar desse círculo – orienta o deluviano.
     Um novo feixe de luz se projeta sobre eles, ficando para trás apenas Latem e Seth, que se transportam para a superfície.
- E os gruns? – pergunta Seth.
- O que tem eles?
- Zuila havia dito que Lilith queria eles aqui em Gir por algumas semanas. Ela quer ter certeza de que nenhum aturiano esteja vivo.
    
- Deixemos que Lilith decida sobre seus gruns. E os Dromis? – pergunta Latem.
- Querem colaborar com os Gruns nessa caçada. Parece que as espécies se identificaram bem.
- Então que seja. Nossa missãoa qui terminou.
- Podemos ir?
- Sim, Lilith nos espera.
     Latem e Seth observa a Estrela Navan deslocando em velocidade e evaporando no espaço por entre um círculo vermelho. Imediatamente, a Estrela Negra chega próximo a órbita do Planeta Gir.
- O nosso transporte chegou – disse Latem.
- Já era tempo - responde Seth, anciosa.
- Você não colocou no convite de casamento onde seria festa? Colocou?
- Não, achei que deveria ser uma cerimônia...digamos...bem íntima. O que acha?
     Latem se apresenta novamente com a aparência mais jovem:
- Acho perfeito. Tryrari possui belos oceanos e praias paradisíacas com águas mornas.
     Escuta-se um estrondo. Uma aurora multicores se forma na atmosfera do Planeta Gir.
     Latem e Seth dão as mãos. Um círculo desce do ceu envolvendo-os e transportando-os para a Lua Negra que segue viagem para uma galáxia vizinha.
     Enquanto isso no Sistema Draconiano, no Planeta Sir, um grupo de viajantes é saudado por centenas de naves e escoltas ao redor da Estrela Navan.
  



   Em solo, o povo ancestral dos manasis, amabis e urus se unem em cerimônia onde o jovem soberano Dizart Dracórius oferece as boas-vindas e acolhimento.
    Ydegart encontra-se distraído com Zuila e Julaia quando Ascat se aproxima.
- Bom trabalho mensageiro! Provou muita coragem e valor.
- Não conseguiria se não fosse a ajuda do meu povo – eles se abraçam forte.
- Estou curioso com a uma coisa? De quem era aquele convite de casamento que você tinha quando o encontramos?
- Sinceramente não sei.
- Achei que tinha recuperado a memória?
     Ydegart olha para Zuila:
- Não sei. Conversei com anciões amabis e eles também desconhecem esse casamento.
- Bom! Acho que podemos conviver com esse mistério – sorrir Ascat – Vamos! Quero lhes mostrar uma bebida que é feita com umas sementes estranhas que Camar trouxe do nosso antigo mundo.
     Ao chegar a um abrigo improvisado, Ydegart tem uma surpresa. Seu irmão Forseti o aguarda.
     Envolvidos em forte emoção, se abraçam.
- Seja bem-vindo a sua casa meu irmão.
     Ydegart observa o abrigo com detalhes.
- Acho que podemos fazer melhorias... Aqui por exemplo: poderia levantar...

     Forseti quase não escuta o que o irmão fala. Sabe que ele sempre foi muito engenhoso em aprimorar as coisas e criar soluções rápidas para enfrentar dificuldades. Ele pensa que talvez tenha sido essa habilidade nata que os aliados de Viga tenham percebido em escolher ele como um líder em Dracon. Ver Ydegart feliz e recuperado deixa Forseti repleto de esperanças. Um grandioso futuro aguarda o povo draconiano.
Mais adiante, Porfi, Camar e Tiri observam de um penhasco o amanhecer de um abundante vale rodeado de rios e lagos.
- Sentirei falta daquele mundo – disse Porfi.
      Camar tem dúvidas:
- Depois que conheci os Dromis não tenho mais certeza. Esse mundo também é bom.
- Também não odeio Dromis
- Estou com fome!
- Camar! Pelos deuses você só pensa em comida! E você Tiri. De que sente falta?
- De Mau, o gato. Já me informei, não existem gatos por aqui.
- Tinham tantos por lá? – disse Camar sorrindo.
- Não deu tempo de pegar ele e afinal aquele gato era de Latem. Já estou conformado.
- Será que algum dia voltaremos? – pergunta Porfi.
- Perguntei a um daqueles gigantes. Não entendi direito a resposta. Ele disse que precisamos de um transporte veloz e que estamos mais distantes do que a nossa imaginação pode alcançar.
     O sol draconiano nasce, enchendo a paisagem nebulosa de beleza e harmonia, convidando ao silêncio.
     Novamente envergando o espaço-tempo, a Estrela Navan se movimenta e desloca-se para outro ponto do universo. Segue para outras missões, para outras revelações.


FIM


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