quinta-feira, 15 de março de 2018


Gustavo Pacheco

O BARÃO DE PAU AMARELO

                                                               

2016  


Inspirado nos sotaques e expressões pernambucanas, o livro envolve elementos cotidianos típicos da vida rural e urbana. Um detetive da capital, aceita investigar um caso de desaparecimento de uma mulher e seu filho, que seria o suposto herdeiro de um rico senhor de engenho. A missão se torna complexa e intrigante quando novas suspeitas são adicionadas ao caso, interligando com uma investigação paralela de agentes federais disfarçados.

Quem teve a oportunidade de vivenciar a rica gastronomia das cidades do interior da zona da mata, a vida livre do campo e seus hábitos pitorescos, vai encontrar na memória um ambiente aconchegante de recordações, assim como, vivenciará momentos nas ruas, rios e pontes do Recife.

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Boa leitura

Capítulo 1
“A astúcia vem de berço...de qual berço?”
     Já fazia meia hora que aquele som de reco reco da cadeira de balanço do patrão, deixava Júnior Doido mais estrábico do que já era. Ele estava sentado no chão, coçando a cabeça repleta de caspas e observando seu senhor engalfinhando-se com os pensamentos longínquos e de difícil escalagem.
     O coronel Manuel Rufão, conhecido também como Mané Coisa Lesa, é um rico homem da zona da mata pernambucana. É o herdeiro da vez, de uma fortuna de família que atravessou gerações e só fez crescer seus investimentos acertados. De tudo tem muito, de terras férteis até propriedades luxuosas no litoral. O dinheiro corria frouxo, mas a família não era gastadeira e nem pirangueira, é que ela não dava muita atenção a tudo o que a maioria gostaria de comprar e fazer, e por isso, o dinheiro sobrava. Os mais novos viajavam para o estrangeiro e virava doutor, às vezes casavam e ficavam por lá mesmo ou quando voltavam se debandavam para o sul do Brasil. O coronel viajou muito quando era novo e gostava de ler. Tinha uma escolaridade média, mas o suficiente para cumprir a missão que melhor cabia entre os irmãos: Ficar no engenho e tocar a moenda. Isso queria dizer que ele foi o eleito de permanecer naquele mundo interiorano e rural. Para ele não foi esforço nenhum e só viajava por que o pai obrigava: “Estudar é bom! Mas viajar ensina mais” dizia o velho. E foi nesse mundo nordestino, de língua portuguesa e dialeto pernambuquês que Manuel Rufão foi criado. O título de coronel não é de tradição, é só figurativo, pois não existe mais isso.
     O reco reco da cadeira parou. O patrão olhou para o horizonte de cana-de-açúcar plantada e ficou com os olhos fixos. Parecia que ele finalmente tinha visto a peitica cantar naquele fim de tarde.
- O coroné está bem?
     Manuel Rufão não responde de imediato. Dar uma cuspida carregada e babada e arremeda:
   - De tempos em tempos! – dizia ele, pitando um cachimbo de um fumo cheiroso vindo do Recife - a natureza produz na humanidade algo diferente entre os homens. Pode ser um dom ou uma habilidade qualquer, sem chamar muita atenção é claro. Pode até se disfarçar de demência ou criancice, mas todo respeito é bom quando se trata de criação.
- O que o patrão falou? – O olho um pouco estrábico de Júnior Doido quase volta para o lugar só em pensar entender “aqueles versos” que o homem dizia.
     Um momento de silêncio e reflexão. O coronel finalmente havia decorado aquelas frases que leu num livro e agora tenta destrinchar a filosofia da compreensão:
- Você, por exemplo! – disse o coronel de supetão, no que Júnior Doido saltou de susto parecendo um tiziu na estaca.
- O que tenho eu?
- Você é uma pessoa que não estudou e não viajou, mas é um cabra sabido.
- Sabido eu?
- Sim! Por quê? Acha que não sei? -         o coronel olha de soslaio.
- O senhor disse tá dito. O cavalo Lourentino já passou a perna em mim duas vez.
- Ah! Mas isso não vale! Todo mundo sabe que meu cavalo já nasceu mais inteligente que você. Mas não é sabido.
     Júnior Doido balança levemente a cabeça em concordância. Um estalo de lucidez intelectual o fez reconhecer a possibilidade de ser verdade.
- O patrão é homem letrado e viajado. É inteligente e sabido ao mesmo tempo.
     O coronel soprou duas baforadas no cachimbo que parecia um trem de Maria Fumaça saindo da estação. Ele gostou do paparicado do jovem empregado.
- Verdade! Eu sou sim – volta a balançar a cadeira orgulhoso e o som do reco reco da madeira de idas e vindas pega força.
- A astúcia vem de berço! Só tem uma coisa aqui no engenho que só confio em você pra fazer, sabe por quê? Você foi sabido em não trair a minha confiança.
- Mas eu fiz por que eu respeito o patrão e tenho medo do castigo.
- Está vendo! Aí já não é ser sabido, é ser inteligente. Você é um bom rapaz Júnior, continue assim.
- O coronel é bom patrão. Todo mundo diz isso.
- Mas que coisa mais lesa! Vê que não tem cabimento. Se eu baixo a guarda a turma monta em meu cangote. Mas eu sou bom mesmo! Tem muito coronel espinhento por aí. Mas se mijar fora do pinico eu capo!
- Ah isso é verdade também – replica o jovem empregado.
     Um som de telefone celular tocando chama a atenção. Os dois se viram e olham para o aparelho pendurado por uma corda no canto da parede.
- O patrão quer que eu atenda? – perguntou Júnior Doido já posicionando os pés esperando o sinal de largada.
- Vá simbora homi! Tu não sabe que o sinal só pega ali!
     O empregado sai em disparada e chega ao telefone como um raio. Era essa habilidade ou dom que Júnior Doido possuía de melhor. É um velocista nato. Se fosse para as olimpíadas ganharia medalha de ouro.
- Cabra rápido feito perdiz! – elogiou o coronel.
- Quer falar com quem? O coronel tá aqui sim!
- Quem é leseira?
- Seu Alfredo da rodoviária. O detetive do Recife chegou.
- Diga pra ele que Seu João está com o carro parado no bar de Dondinha.
- Seu João está no bar de Dondinha...É sim...o fusca branco...vai!
     Júnior Doido encosta o telefone com cuidado na parede.
- Então! – pergunta o coronel.
- Ele foi chamar Seu João. Tomou todas em Dondinha.
- É assim mesmo! Esperar demais cansa, só tomando uma pra aquietar. E seu João nem precisa dirigir, o carro já sabe vir sozinho. É mais seguro também, quando ele bebe não passa da primeira marcha. Fale com Dona Cecília pra botar o jantar, perfumar o quarto e...
- Sim senhor! - Júnior Doido já partiu.
- Oxe! Que coisa mais lesa! – pensa o coronel enquanto retira o fumo queimado do cachimbo.
     Nesse momento o vigia passa na frente do terraço do casarão.
- Toinho!
- Vou agora coronel! – Ele sobe as escadas e se aproxima do patrão.
- Vá acender as tochas que Júnior vai me ajudar aqui!
- Vou agora coronel! - disse o vigia, encostando uma espingarda na parede.
     Uma hora depois. O fusca chega se arrastando. Seu João sai do carro bêbado feito peru em véspera de festa e vai à parte de traz do motor e abre a tampa:
- Pode sair doutor. O coronel lhe espera.
    Assustado, o detetive sai do carro com sua pequena mala de roupas a tira colo.
- Obrigado Seu João. Foi uma viagem tranquila.
     Do alto do terraço o coronel grita:
- Detetive Augusto! Seja bem-vindo! Venha cá homi! Se aprochegue! João seu filhote de aruá! Da próxima vez abra a porta certa! O detetive não veio sentado dentro do motor.
     O Seu João olhou para o coronel fazendo foco com o olho direito e depois para o fusca. Ele ficou sem entender por que abriu a tampa do motor.
     O visitante vai até o coronel e ele o recebe com um abraço e batidas fortes nas costas.
- Júnior! A pinga!
     O empregado surgiu sorridente num piscar de olhos assustando o detetive.
- Rápido ele não é?
- É...mas não ligue não...é leseira. Vamos jantar. Tem macaxeira com galinha guisada.
- Muito bom! Gosto muito de macaxeira.
- Então somos dois – o coronel entrega o copo de pinga ao detetive. Os dois bebem e ele o convida para entrar.
     Depois do jantar, o coronel aponta o terraço para o detetive ir aproveitar o frescor da noite. Junior Doido já tinha colocado outra cadeira de balanço, mas sem o barulho do reco reco.
- Só a do coronel faz barulho – pensa ele orgulho.
     O detetive senta e agradece. Ele olha discretamente para espingarda no canto da parede, mas o coronel é astuto e percebe logo uma oportunidade de se vangloriar:
- Gosta de arma?
- Não uso. Pensei em entrar na polícia e passar uns tempos?
- E foi por quê?
- Na cidade que trabalhei não tinha mais bandido. E a coisa estava muito parada.
- Sei – o coronel coça o bigode, curioso da história esfarrapada.
- Agora que falei, não vi polícia no distrito?
- Deve ser um problema genérico, um mistério da natureza. Bandido aqui também não se cria – disse o coronel tentando falar difícil.
     O  detetive volta a olhar para arma.
- É uma bela arma? Tem nome?
- Tem sim. Eu chamo de juiz.
- Um nome forte – o detetive engole seco – Mas na verdade eu queria saber o tipo. Nunca vi uma espingarda assim.
- Não! – o coronel segura a arma com as duas mãos e aciona uma alavanca carregando a munição.
- Impressionante! Acionamento por alavanca
- Não é! Também acho. Essa aqui é uma raridade. É uma Winchester 44.
- Já ouvi falar. Americana se não me falha a memória – disse o detetive educadamente sem querer parecer erudito.
- Não sei. Meu bisavô dizia que sim. Está novinha. Seu Toinho passa a noite limpando ela enquanto aguarda uma sentença.
     O coronel desata numa gargalhada seguida de uma tosse rápida.
- Perdão. Quem é Seu Toinho?
- Aquele ali, meu vigia. Seu Toinho! – Grita o coronel - O que faz com esse bacamarte homi! Vai pra festa de São João é? É só para o ano! Sobe aqui!
     O vigia ergue o braço e vem andando devagar.
- Mas que coisa mais lesa meu Deus. Ligue não detetive, ele é assim mesmo. Vive esquecendo as coisas pelos cantos. Ele tem problema com o alemão.
- Alemão? Não entendi? Ele é herói da segunda guerra?
- Não! Que guerra! Eu digo àquela doença que esquece as coisas.
- Alzheimer?
- Essa mesmo! Eu acho que peguei essa triste também por que nunca me lembro do nome.
- O Seu Toinho tem Alzheimer e vigia a sua propriedade com uma espingarda Winchester 44 cujo nome é juiz?
- E num é? Vejo o lado bom, tem coisa que não merece ficar lembrando.
- Ele nunca se esqueceu do coronel?
- E ele tá doido! Quem nesse mundo de sã consciência se esquece de mim?
     O coronel dar outra gargalhada, crente que está deixando o convidado à vontade.
- Se preocupe não detetive. Eu até acho que é pantim desse cabra. O dia do pagamento ele nunca esqueceu, mas vez ou outra esquece do nome de gente que passou da cerca sem se anunciar.
     Do outro lado das terras do engenho, cascos de cavalos são ouvidos a distancia e logo desaparecem.
- O que foi isso?
- Ah! É a carruagem do coronel Machado. Toda sexta no fim de tarde e começo de noite ela vai para o puteiro de Alzira e volta bem cedinho no sábado.
- Puteiro de Alzira?
- É bonzinho. Já foi melhor. As sextas, Alzira abre só para os coronéis da região e convidados deles. Na segunda ela fecha. É dia de arrancar dente na feira.
- Ela é cafetina de noite e arranca dente?
- É! Mas só nas segundas. Tá com dente doendo é? Se for eu mando chamar.
- Não...não. Está tudo bem.
- Então vamos ao que interessa – disse o coronel – Júnior! O licor de jenipapo!
- Chegando meu patrão!
- Detetive Augusto. O motivo de chamar o senhor aqui é pra investigar uma situação que pode salvar a vida de uma pessoa muito importante.
- Do que estamos tratando?
     O coronel pega o cachimbo e um naco de fumo de rolo. Olha para a porta e afasta a cabeça gritando:
- Júnior! Cadê tu abestalhado!
- Cheguei!
- Que demora da bixiga! Serve dois copos pra gente. O detetive gosta de licor de jenipapo né?
- Sim. Aprecio bastante.
- Júnior! Deixe a gente conversar em paz e vá ajudar Dona Cecília com as coisas do detetive.
- Agora patrão.
     Os dois observam a falta de habilidade de Júnior em fazer uma curva quando corre. Quase cai do terraço.
- Qualquer dia esse aí vai se estabacar no jardim!
- Fiquei preocupado com o caso. Salvar a vida de uma pessoa?
- Tá rolando uma história por aqui, mas não é fuxico, é coisa séria. Faz alguns meses que o filho do coronel Machado, o Machadinho, sofreu um acidente de moto e faleceu.
- Que triste.
- Bom moço sabe? Mas só andava atabacado em cima daquela moto. Ligeiro igual ao pai. Terminou acertando um jumento na estrada. Para o coronel aquilo foi o fim da picada, já tinha perdido a esposa dois anos antes. Ela sofria de coração.
- Triste mesmo.
- Num é? Por isso que preciso dos seus serviços. Não se preocupe, sou generoso no pagamento, mas quero serviço bem feito! Despesas extras e tudo por minha conta.
- Mas eu não sei ainda o que o senhor quer. Não disse.
- Iapôis! Disse mermo não.
     O coronel convida o detetive a sentar e baixinho começa a dizer o que queria:
- O coronel Machado é um bom amigo. Uma vez me salvou a vida. Quase fui picado por uma cobra surucucu pico de jaca. A bicha quando foi dar o bote nas minhas fuças, o homi foi mais rápido e largou-lhe a foice, torando a cabeça.
     O detetive Augusto só escutava.
- Ele não deixou mais herdeiros. Relaxou com os negócios e tem gente marreteiro querendo roubar o patrimônio. Há muitos anos eu soube de boato quente, que ele teve um filho de uma quenga que trabalhava pra Alzira e que se chamava Zuleica.
- Zuleica?
- É, mas acho que era nome falso, artístico num sabe? Elas botam outro nome quando cai na vida e termina se acostumando com ele. Disseram que morava para os lados das Alagoas e quando o pai descobriu que perdeu o cabaço deserdou a coitada na rua. De tanto andar veio parar aqui na mão de Alzira. Chegou puxando a cachorra e pouco tempo depois já tinha mais dinheiro do que muito avarento por aqui.
- O coronel Machado sabe disso?
- Nem desconfia. Uma rapariga minha que falou em segredo e depois Alzira me confessou. Ela ofereceu remédio pra Zuleica abortar, mas ela não aceitou.
- Mas se ela era prostituta? Como poderia ter certeza do filho?
- Aí é que tá! Só o coronel Machado é que ficava com ela. Isso foi desde que ela chegou. Alzira a rifou com os coronéis e Machado pagou mais, e ficou pagando bem durante meses e ela de tudo tinha. Os outros cabras sabiam que não podiam querer Zuleica. Tinham medo e respeito do coronel Machado. Eu mesmo ficava de ovo doendo quando pensava nela, a bicha era bonita, tão bonita que dava tesão até num frango que servia as mesas: “A quenga mais bonita que já vi” dizia ele, ou ela sei lá!
- E a criança?
- Quando soube que tava prenha, recebeu a visita de um homi estranho que ameaçou ela.
- Que homem?
- Ninguém sabe. O cabra não era matuto e parecia que veio do Recife a mando de algum que tomava conta das riquezas do coronel.
- E depois?
- Depois falou com Alzira e, todo metido a cavalo do cão, a ameaçou também. Deu um dinheiro bom pra cafetina e fê-la mandar Zuleica embora com o filho na barriga.
- Que horror! E pra onde ela foi?
- Agora é que entra a sua parte! O senhor vai investigar e me dizer o que aconteceu com Zuleica e onde está o filho ou filha dela, o herdeiro ou herdeira do coronel Machado.
- Muito bem. Parece que não é só um boato quente como o senhor disse, mas preciso de algumas pistas. Quando foi que tudo isso começou?
- Faz uns 20 anos.
- 20 anos?
- Mais ou menos isso. Lembro por que foi nessa época que eu trouxe Júnior para viver aqui. Sabe como é? O tempo passa e a gente se perde nas contas.
- Será que Alzira se incomodaria depois de tantos anos em falar comigo sobre o caso?
- Ela vai ajudar, falei com ela e dei um dinheirinho bom. Além disso, falei com o delegado de Cova da Onça pra soltar um malandro que foi preso. É um come dorme de Alzira, se é que o detetive me entende. Mas ela me pediu por tudo que é mais sagrado que o senhor não falasse disso com ninguém! Boca de siri viu! Apenas comigo é claro, o cabra que lhe paga.
- Não se preocupe coronel. O sigilo faz parte da minha profissão. Então fica assim, amanhã eu vou falar com Alzira, será que posso?
- Com ela pode. Só com ela. E vai ser melhor por que as quengas tá tudo cansada de função. Nenhuma delas é daquela época e num sabe de nada. Vá com Seu João de fusca e escolha um lugar tranquilo pra falar com ela.
- Com Seu João?
- Sim! Algum problema?
- Nenhum coronel. É que eu gosto de trabalhar sozinho. Faz parte do sigilo se é que o senhor me entende.
     O coronel faz um bico:
- Entendo sim! E tem mais, seu João é muito conversador e abelhudo, é capaz de bebo dar com a língua nos dentes e, o pior, com as quengas que é outro bando de curiosas. Cuidado com elas viu detetive! Tem mulé ali que já encabulou até serpente no paraíso!
- Terei sim. Não misturo trabalho com prazer.
- Hã! Quero só ver! Mas se precisar forçar a natureza com uma delas não pague. Já disse a Alzira que é tudo na minha conta.
- Não vou transar com elas coronel.
- O senhor que sabe! Prefere cavalo, carruagem ou carro?
- Pra que?
- Pra se movimentar homi de Deus! Tu disse que não quer Seu João no teu encalço?
- Ah sim! Perdão! Eu gosto de montar, prefiro o cavalo. O distrito e a casa de Alzira ficam pertos e assim vou pensando no caso.
- Como quiser! Júnior vai lhe acompanhando só no caminho! Oh Júnior! Eita bicho nó cego!
- Senhor!!!
- Que demora foi essa. Perdeu a marcha foi?
- Não senhor! – Disse o pobre rapaz já botando os bofes pra fora de tão cansado.
- Assim que raiar o dia prepare aquele cavalo manso que comprei do coronel Machado. Diga a Dona Cecília que prepare um farnel e uma moringa com a água fria da jarra. O doutor detetive vai lá no centro. E você vá dormir cedo! Vai acompanhar ele.
- Digo sim coroné! Boa Noite coroné! – Júnior sai às pressas de novo.
- Boa noite menino! Que Deus permita que te cresça a barba! E o senhor detetive? Deseja mais alguma coisa?
- Não coronel. Está tudo certo.
- Então tá bom. Aqui está um dinheiro para as despesas iniciais, se faltar me diga. E como combinado, só dou o pagamento total quando resolver o caso. Vou recolher que aqui a gente dorme com as galinhas e acorda com o galo. Boa noite!
- Boa noite coronel.
     O detetive Augusto acompanhou os passos daquele curioso homem. O coronel era velho, mas era forte. Admirou seu estilo de vida, um pouco arcaico para época de modernidade em que viviam. Não havia a possibilidade de alguém achar que o tempo não saiu do passado naquele engenho, tudo se mantinha o mais original possível. Ele caminhou pelo corredor do terraço, que pelo visto arrodeava a casa e sempre tinha uma visão do alto. Sentiu um cheiro adocicado como mel no ar e, logo deduziu que se tratava do caldo da cana-de-açúcar que alguém estava processando. Um pouco distante dali via uma casa bem iluminada como se fogo estivesse pegando interiormente, era uma casa de fazer rapadura. Seus pensamentos voavam em lembranças de infância quando passava as férias na casa de sua avó materna conhecida como Dona Maria Baixa. Ela sempre preparava farofa temperada com coentro, cebola e tomate picados. Para acompanhar essa iguaria tão simples mais deliciosa, ela colocava pedaços de carne de charque assada e uma caneca de café pisado no pilão que ela mesma batia.
- Come era bom a farofinha de minha vó – suspirou a saudade pensando em voz alta.
- Posso fazer para o senhor levar amanhã no farnel – disse Dona Cecília que se aproximou sorrateira.
- Como?
- Assustei o senhor?
- Não. Está tudo bem. Deve ser a Dona Cecília?
- Sou eu mesma.
- Lembrava da minha vó e das coisas de menino.
- O senhor quer que eu faça uma farofa? Nunca vai ser igual a da sua vó mas quebra o galho.
     Aquela simpática senhora, baixinha e querendo ficar corcunda, escondia os poucos cabelos brancos debaixo de um lenço amarrado na cabeça. Ela tinha uma expressão cabocla e, assim como a vó dele, tinha ancestrais indígenas no sangue.
- Eu gostaria sim Dona Cecília.
- Amanhã eu faço. Seu João trouxe uma charque boa lá da rua.
- Rua?
- Maneira de dizer! Lá do comércio.
- Ah tá.
- Aquela charque que tem a gordurinha.
- Parece ótimo.
- Vem doutor! Vou mostrar seu quarto.
     O detetive Augusto acompanha Dona Cecília pela penumbra da casa, pois já se havia apagado muitas lamparinas. Ele imaginava quantos séculos de história se espalhava nos inúmeros objetos e utensílios da casa. Aqueles quadros com pinturas retratando pessoas há muito tempo falecidas, tornava o ambiente um autêntico mausoléu. O cheiro adocicado ficou lá fora e foi substituído por um aroma de madeira antiga de variadas espécies de árvores. As paredes eram grossas e o teto sem forro ostentavam as pesadas e grossas vigas de baraúna, aquela que cupim não rói.
- Todos os quartos têm janelas? – perguntou o detetive.
- Menos um. O quarto das moças.
- O que é então? Nunca ouvi falar.
- Fica no quarto do coronel. Era onde antigamente as mocinhas dormiam. Não tinha janelas e assim os ciganos não roubavam elas e também não deixavam elas fugirem por causa de louco amor. Tinha que passar ao lado da cama do coronel e da esposa.
- Sério!
- Naqueles tempos, menina de 14 anos já estava se casando e virando mãe, senão se perdia com alguém logo cedo. Mas como não tem mais menina moça por aqui, o quarto hoje é onde o coronel guarda as armas antigas.
     Seguindo Dona Cecília que segurava um candeeiro, o detetive Augusto viu uma bela jovem de pijamas antigos se escondendo por trás de uma porta que fechava lentamente. O olhar daquela mulher, morena e de cabelos negros e longos perturbou o visitante que tropeçou na velha com candeeiro e tudo.
- Desculpa senhora! Está um pouco escuro aqui e não estou acostumado.
     A jovem acha graça mostrando os brancos e alinhados dentes. E com um olhar sensual fuzila o detetive piscando pra ele e fechando a porta do seu quarto lentamente, enquanto humedece os lábios com a ponta da língua. Ela tinha uma beleza típica, da terra, endêmica, tuberosa e que o deixou maravilhado.
- O nome dela é Goreti.
- Como?
- Aquela morena bonita que o senhor viu ali.
     O detetive ficou sem jeito, mas encarou a situação.
- Achei que as moças dormiam no quarto do coronel.
- As moças meu fi...as moças! Aqui não tem mais meninas. Tudo cresceu e foi para capitá e ninguém sabe se volta um dia. Gorete me ajuda na casa, ela é afilhada perdida do coronel que veio de um engenho de um compadre lá das Alagoas.
- Entendo.
- Mulherão! Não quis saber de estudo e nem de casar. É ligeira no serviço, sabe cozinhar, costurar e é limpinha. Não é sebosa feita as quengas de Alzira. Chegou aqui faz dois mês. O coronel nunca me falou dela. É um mistério só!
     O detetive não sabia o que dizer.
- Pronto doutor! Aqui é seu quarto. Tem banheiro dentro com sabonete e toalha. Sua mala eu botei no guarda roupa e troquei os lençóis e fronhas da cama. O travesseiro o senhor escolhe se quer alto ou baixo. Se estranhar a cama grande que é de capim pode ir para outra menorzinha de espuma. Só não vá dormir na cama de campanha se não vai acordar com a coluna troncha. Se quiser mais velas tem na gaveta. Só não acenda a luz elétrica por causa do morcego.
- Cama de que? Morcego?
- De campanha. Aquela ali no canto. Tem duas colchas abafa banana atrás dela. Vai garoar de madrugada.

- Ah tá! Obrigado Dona Cecília. Tenha uma boa noite.
- Durma bem doutor.
     O quarto era grande. Poderia ter sido de alguém importante no passado. As janelas estavam fechadas, mas não incomodava, pois ele sentia um pouco a frieza da noite. Lavou o rosto e as axilas na água gelada da pia e conferiu se tinha barba por fazer num espelho grande e também antigo que já descascava. Admirou-se com uma banheira velha e, pelo desenho e material, suspeitou que sua origem fosse europeia.
     Estava muito cansado da viagem e foi logo para a cama de espuma sintética onde seus pés passavam um pouco. Não tinha como encarar aquela cama de capim e aquela outra de campanha parecia mais uma ratoeira de gente. Ele sopra a vela e nem pensa em acender a lâmpada elétrica, pois tinha medo de irritar os morcegos, uma inquietante lembrança de infância na casa da vó. Mas não tinha como evitar escutar seus ruídos.
- Agora lembro por que não gostava de dormir lá – pensava ele já pregando os olhos quando se lembrou da bela e misteriosa Goreti.
     Já era alta madrugada quando ele escutou um som que parecia mais uma gargalhada demoníaca misturado com um grasnado. O susto foi grande e o detetive ficou aterrorizado e sentou na cama. Passou alguns segundos sem reconhecer onde estava.
- Meu Deus! O que é isso!
     Logo em seguida ele escuta tiros e depois tudo volta ao silêncio. O detetive não conseguiu mais dormir. Para falar a verdade, nem se mexeu por conta do susto que levou. Por uma fresta no telhado esperou passar as horas até quando viu o azulado da madrugada que se finda, o arrulhar de uma pomba galega e um rouxinol descarrilhando e limpando a garganta. Só o galo não cantou. Quer dizer, cantou, mas parecia longe.
- Ainda bem que amanheceu – pensou ele que se dirigiu ao banheiro pra aliviar a bexiga, escovar os dentes e lavar o rosto na água fria.
     A luz do dia lançou seus raios pelo quarto. Ele abre uma cortina e com sacrifício retira um pedaço de pau que travava a janela. O ar do amanhecer entra em seus pulmões e revitaliza a alma.
     Já vê e escuta movimentos no engenho. Pessoas e animais vocalizam e circulam de todos os lados. Sai do quarto atraído pelo cheiro de pão e café. A porta da frente já está aberta e o acesso ao terraço está livre. No corredor, dar uma esticada nos olhos forçando a sorte em achar Goreti, mas nada ver. O detetive percebe que vive mais gente naquele lugar do que imaginava. Um deles é o vigia que arrastava um saco e jogava no pé da escadaria.
- Bom dia doutor!
- Olá seu Toinho! Bom dia!
- Escutou o tiro?
- Sim. E um barulho estranho. O que aconteceu?
- Raposa. Acertei uma das grandes. Comeu o galo cantador.
- Foi um susto grande.
- Mas não se preocupe doutor isso é normal por aqui. De vez em quando uma raposa afoita e até mesmo um gato maracajá e o jaguarundi circulam o galinheiro. O senhor já viu esses bichos?
- Uma raposa morta na estrada, uma vez quando criança. Mas a catinga não deixou eu me aproximar.
- Sei como é – disse o vigia – raposa já tem uma inhaca triste e morta! Cantiga desse tipo só sai com cirurgia!
     Seu Antônio faz uma cara de repugnância, parecia que os cheiros nauseabundos desses animais são bem comuns naquelas estradas.
- Não sou muito chegado a bichos, nem mesmo os de estimação. Animal selvagem muito menos.
- Aqui tem muito bicho doutor! E subindo a ribanceira até as capoeiras altas e as matas virgens a gente ainda encontra muita coisa. Tem passarinho de tudo que é tipo, dos mais safados até os difíceis de ver que nem nome tem. Tem outro bicho fedorento que tem por aqui é a ticaca. Mas as perigosas são as cobras, aqui tem cobra surucucu, coral e jiboia perto do rio. Nas matas altas tem bicho esperto feito o macaco saguim, o prego e guariba.
- Guariba?
- É sim senhor, ainda tem por aqui lá na grota. É maior macaco daqui e quando canta parece até um trovão rouco. Quem não conhece fica com medo.
- O senhor não tem medo?
- Nasci e me criei no meio disso tudo doutor. E comadre florzinha me protege. Toda vez que vou à mata ajudar pegar mel de uruçu levo um naco de fumo de rolo, um cachimbo e um mingau de mandioca pra agradar ela.
- Entendo. Minha vó falava da comadre florzinha e que ela assobiava na mata.
- Isso mesmo! O doutor é entendido da coisa. Quer ver a raposa? Eu abro o saco.
- Não precisa Seu Toinho, obrigado.
     Dona Cecília aparece na porta limpando a mão no avental e chamando o detetive para o café da manhã. O cheiro estava muito bom e a comida servida numa grande mesa de baraúna com bancos longos de madeira. Perto dali um fogão à lenha com panelas borbulhando já preparando o almoço.
     Além do pão caseiro, tinha cuscuz de milho, cuscuz ao coco, tapioca, ovo frito de galinha de capoeira, inhame, macaxeira, carne guisada de boi e de galinha, leite fresco, queijo, coalhada, manteiga da terra, bolo de rolo, doce de banana e café moído no pilão e frutas variadas. O detetive se lembra novamente da infância e seu apetite foi tão grande que quase não teve coragem de levantar da cadeira. Ele comeu com nunca havia feito.
- O doutor gostou do café?
- Tudo maravilhoso. Obrigado Dona Cecília.
- Mas o doutor comeu tão pouquinho.
- Pouquinho? Minha barriga está quase estourando.
- Aqui está seu farnel de farofa que lhe prometi. Coloquei umas frutas. Tem jambo vermelho. Coma muito pra fazer bucha e enganar a fome. O doutor vai almoçar aqui?
- O que a senhora está cozinhando.
- Ontem o coronel mandou açoitar um bode. Júnior tá cortando e vai trazer as tripas. O doutor gosta de buchada?
- Eu sei o que é. Já vi, mas nunca comi.
- O coronel gosta muito. Mas se não quiser tem bode guisado e assado.
- Eu pretendo demorar pouco Dona Cecília, mas acho que chego na hora do almoço.
- Se atrasar eu guardo comida para o senhor. Agora de tarde vou fazer um bolo de macaxeira. Gosta de doces? Ali no pote tem mariola e alfenim.
- Ah que delícia! Gosto muito de doces. Meu pai sempre comprava algodão doce, maça do amor ou então pirulitos. Tinha uns coloridos e outros bem compridos.
- Aqui tem também, mas só em dias de festa.
     Júnior entra na cozinha com mais um funcionário franzino trazendo as carnes e vísceras.
- Bom dia doutor Augusto.
- Bom dia Júnior.
- Esse aqui é meu colega, o nome dele é pão com água, trabalha na cocheira.
- Pão com água? É nome dele?
- É apelido. Mas o nome verdadeiro nem ele mesmo sabe direito. É José de alguma coisa. Uma misturada que o pai e mãe fez que nem sabe como se chama.
- Mas por que Pão com água? – pergunta o detetive.
- Deve ser por causa desse nariz e a cara triste que ele tem. É o dia todo assim, não dar um sorriso esse abilolado.
     O detetive cumprimenta o outro rapaz. E Júnior coloca as carnes no balcão da pia e espanta um grupo de moscas varejeiras.
- Tá aqui Dona Cecília. A senhora quer mais alguma coisa?
- Tempero. Pega coentro lá na horta. Traga mais alho e cebola.
- Pão com água vai buscar! – disse Júnior – o coronel pediu pra eu acompanhar o doutor lá na rua.
- Então mande logo buscar, daqui a pouco o coronel vai perguntar pelo almoço.
- Vai Pão com água! Traga o que Dona Cecília pediu.
- Tô indo.
- Eita cabra lento da bixiga! Sei não viu! Só no açoite!
- Deixe dessa conversa menino! Não tem disso aqui não! Fica repetindo as coisa feia do coroné dar nisso! – repreende Dona Cecília.
- Tô brincando tia!
     O detetive estava tão envolvido nas delícias do café da manhã que não se lembrou de perguntar pelo dono da casa.
- Onde está o coronel? Já acordou?
- Oxente! Faz tempo – disse Júnior – Já apeou o cavalo e se mandou para o engenho do coronel Machado. Foi ver o açude e a criação de tilápias dele. Se der certo vai fazer aqui também.
- Muito bem – disse o detetive – está pronto?
- Estou sim. Vou só calçar minhas alpercatas. Pode descer e arrodear que Seu Toinho e Seu João tá segurando os cavalos.
- Seu Toinho não dorme não é?
- Dorme sim. É que ele fica aperreado quando tem visita e fica assim sem dormir, querendo virar tetéu.
     O detetive vai se encontrar com Seu Toinho e Seu João e já encontra Júnior Doido subindo num cavalo.
- Ele é rápido – pensa olhando para os lados vendo crianças atirando pedras num pé de manga.
- Cuidado com esse badoque menino! – alerta Júnior para algumas crianças – O coronel já disse que não quer essas pedra perto de casa. Vou cabuetar viu!
     O detetive se aproxima e Seu João lhe entrega o cavalo.
- Obrigado Seu João.
- De nada doutor. Se tiver sede passe lá na venda de Dondinha viu? Tem cerveja gelada. Eu vou ficar e consertar o fusca, se der tempo chego por lá rapidinho.
- Quebrou foi?
- Coisa pequena. É que deu problema no chicote de embrenhagem e o tabelier tá batendo. Mas de tarde vai tá novo!
- Certo Seu João! Tenha um bom dia os dois.
     Os cavalos da raça manga larga trotaram suave até chegar em Tangará, o menor distrito de Cova da Onça. Em menos de 1 hora eles estariam lá. No caminho, o detetive encontrou cenários rurais interessantes. Passou ao lado de muitas e variadas plantações, campos de pastagens, matadouros, casas de farinha, criações de galinhas, bois e bodes. Atravessou áreas de mata em trilhas curtas, cruzou córregos, passou na beira de rios e açudes.
- O engenho até que não fica longe – disse o detetive.
- Fica não. A gente pegou muito atalho. Eu que me demoro – comentou Júnior ajeitando o chapéu de vaqueiro que ganhou de presente – tem muito lugar pra gente parar e conversar.
- Você conhece muita gente aqui não é Júnior?
- Demais da conta.
- O que você gosta de fazer quando está de folga. Você tem folga não tem?
- No domingo. Vou pescar no açude, caçar com Seu Toinho e namorar na cachoeira.
- Tem cachoeira perto do engenho?
- Tem sim. E muito boa.
- Você tem namorada?
- Namorada não! Elas querem casar e pra casar sou muito frouxo!
     O detetive Augusto acha graça.
- Tem medo de casar Júnior!
- Tu é doido! Prefiro tomar uma injeção do que casar! Gasta muito! As mulé de hoje só fala em comprar isso, comprar aquilo. Aguento não. O patrão me paga um salário e sempre que vai no centro, compra coisa pra todo mundo, de roupa até chapa pra quem tem boca nua.
- Ele me parece ser um homem bom.
- É bom demais doutor. Ele tem aquele jeito, mas só a gente sabe da bondade dele. E o senhor tem namorada?
- Eu tinha.
- Foi embora?
- Ela queria casar e eu....
- Num disse! É tudo igual – disse Júnior de supetão.
- Eu queria casar com ela também Júnior, mas os pais dela queriam que eu fosse morar em São Paulo e ajudar nos negócios da família.
- E o senhor não quis.
- Não Júnior, não quis.
- É uma pena mesmo. Desculpe perguntar, ela é bonita.
- A mais bonita que já tive – o detetive tira uma foto do bolso e entrega a Júnior.
- Meu Deus do céu! É linda demais da conta! Doutor com todo o respeito do mundo, por uma mulé dessa eu vou até para o inferno tomar conta dos negócios do cão!
     O detetive sorriu e concorda com Júnior:
- Ela é sim. E pessoalmente é mais bonita ainda. E por aqui tem mulher bonita? – disse ele oferecendo um pedaço de bolo pra Júnior.
- Tem algumas. Mas é tudo cú doce e cheia de pantim. É menina de família pra casar com homem feito o doutor. Eu prefiro gastar um dinheirinho com as bonitinhas de Alzira. E as trubufu a gente leva pra brincar no mato e na cachoeira.
- E elas vão?
- Vai sim! A gente da presentinho que elas vão. Semana passada eu dei um trancilim pra uma que ficou apaixonada.
- Sério! Olha aí o Júnior sedutor.
- Sedutor eu? Vôte! Quem vai querer um zarolho xôxo e liso?
- Mas você disse que namora na cachoeira?
- É tudo mulé zambeta doutor! A gente vai atrás de tirar um cabaço, mas quando chega lá tá mais furada do que peneira de urupemba.
- A concorrência é grande não é Júnior?
- Demais! A sorte é que tem muito cabra tabacudo por aqui prometendo o que não tem e só levando chifre. Tem outros que já tá noivo faz mais de seis anos. Só enrolando.
- Tem dia de festa?
- A da padroeira. Vem cafuçú de tudo é que lugar. Durante a semana tem procissão, missa, feirinha, circo “tomara que não chova”. Muita gente ganha um dinheirinho. Mas Alzira é que fatura mais. Aquela véia tá podre de rica e, pirangueira é ali viu! Olha ali! Chegamos!
- Onde fica a casa de Alzira?
- Ali no fim da rua descendo.
     O detetive olha com cuidado.
- A casa branca?
- Aquela mesmo! Olha ela lá! A peste já viu a gente.
- Quem é? Tem duas?
- A véia de pitó no cabelo.
- Hum. Certo. Vamos lá?
- Agora é com o senhor? O patrão disse pra lhe acompanhar só no caminho.
- Tá certo Júnior. É melhor assim. E você?
- Vou ali na venda de Dondinha comprar bolo de bacia pra Goreti e pegar uma encomenda pra Seu Toinho. Depois vou tomar uma lapada de cana com mortadela.
- E presta?
- Cana é bom com tudo doutor, até com bolacha.
- Então vou lá. Volto no máximo em uma hora.
- Tem pressa não. Mas cuidado com um frango que trabalha pra Alzira. Ele fica azoretado quando ver homi de fora.
- Terei cuidado. Mais alguma coisa?
     Júnior olha atentamente para o detetive.
- Mais nada não. O doutor é homem e sabe se virar. Quem sou eu pra ensinar missa a vigário.
     O detetive vai descendo com calma a rua e nem precisa conduzir o cavalo, o animal parece conhecer o caminho. Quando vai se aproximando, ele observa que a mulher de pitó é Alzira e a outra pessoa era o ajudante que Júnior tinha dito. A cafetina já saía na porta acenando para o detetive e ele respondeu com cavalheirismo. Ele observa que nas outras janelas o assistente dela aparece saltando e com a mão na cabeça e a boca aberta.
- Bom dia detetive Augusto!
- Bom dia Senhora Alzira.
- Senhora tá no céu, me chame só de Alzira. Esse nome pra virar santa vai demorar muito.
- Como queira.
     O detetive desce do cavalo e beija respeitosamente a mão da Dama da Noite. E o assistente aparece na porta com a metade do corpo. Alzira olha pra trás e reclama com ele:
- Entra frango safado! Canela de sabiá! Tá afetado é?
    O rapaz joga a cabeça para trás, solta um grunhido e entra.
- Desculpe doutor. É que nem sempre aparece home bonito e de bom gosto por aqui.
- Obrigado pelo elogio.
- Mas é verdade. Pode até aparecer um bonitinho, mas de bom gosto é poucos! Aqui a gente conhece um homem pelo sapato que ele calça.
     O detetive olha para os seus calçados e se tranquiliza. Alzira olha para ele como se esforçasse em reconhecê-lo, mas desiste. Ela sempre faz isso.
- O coronel disse que o detetive queria falar comigo.
- Direta ao assunto. Gosto de pessoas assim.
- Não gosto de enrolar e tempo é dinheiro detetive!
- Se preferir eu volto outra hora.
- A hora tá boa. É que tem função mais tarde e eu ainda não fui dormir.
- Serei o mais breve possível.
- Esquente não. Tô acostumada. Pra semana vou pra Recife e descansar na praia de Boa Viagem.
- Uma bela praia.
- O detetive é do Recife?
- Sou sim. Nasci na antiga maternidade do Derby. Só a família de minha mãe é de interior.
- Muito bem. Vamos conversar na casa de minha comadre que fica ali mais em cima. Ela deu uma saidinha pra mode a gente conversar. Aqui as meninas estão dormindo e aquele frango ali vai ficar de butuca ligada.
- Por mim tudo bem.
     O detetive caminhou mais cinquenta metros e entrou numa casa pequena, de porta e janela, muito simples com móveis modestos e desgastados. O ambiente era rico em pobreza, mas muito limpo. Na parede havia uma foto do padre Cícero, um quadro fora de esquadro com o desenho do sagrado coração de Jesus e uma foto antiga, que parecia mais ter sido feito a lápis, de um casal jovem recém-casados.
- Sente detetive. Desculpe não lhe oferecer melhor conforto. Aceita uma fatia de bolo?
- Não obrigado, eu comi no caminho.
- É bolo de barra branca? Quer uma água?
- Estou bem senhora. Não se preocupe.
- Então você quer saber sobre o filho de Zuleica?
- Tudo o que for possível lembrar.
- Sei pouco e já faz mais de 20 anos – inicia Alzira – Depois que soube que embuchou do coronel Machado ficou toda quieta num canto. Tentei falar com ela mas não teve jeito.
- Ela recebeu uma visita de alguém?
- Um homi teve aqui e falou com ela.
- Que homem? Como ele era?
- Um tipo assim feito o detetive. Usava um terno e sapatos bonitos. Trazia uma pasta. Tinha bigode e o cabelo penteava de lado. Parecia ser lá do Recife também.
- Como sabe?
- Por causa do vice. Lembro que quando ele, depois de conversar com ela disse: “Não se esqueça do que lhe disse vice!”
- A senhora tem boa memória. Continue.
- Falei com Zuleica e obriguei ela me contar. Disse que o homi ofereceu muito dinheiro para ela e que se não quisesse tirar o filho iria ter ele longe dali.
- Certo. Mas me diga uma coisa: Esse homem frequentava a casa?
- Nunca vi na vida!
- Então como ele sabia que ela estava grávida? Nem o coronel sabia disso.
- E eu sei lá! Acho que alguém sabia ou espionava ela.
- Tinha alguma mulher dessa época que foi embora depois de Zuleica?
- Todas as meninas foram embora. Não foi tudo de uma leva só, mas aos poucos. Em um mês e meio a casa só tinha quenga nova. Mas é assim mesmo! Os clientes querem novidade!
- Ela tinha alguma amiga, alguém próxima aqui dentro?
- Tinha não! Quenga é concorrente, não é amiga. O mais próximo dela era eu mesma. Em dois dias ela juntou os panos de bunda e foi embora também.
- Alzira. O que vou lhe perguntar é muito importante. Você sabe o nome verdadeiro dela?
- O nome completo eu não lembro. Mas o primeiro nome era Lígia.
- Lígia?
- Sabe dizer se ela precisou ir se consultar com algum médico em Cova da Onça ou se foi a um hospital, dentista? Fez alguma ficha?
- Fez não detetive, lhe garanto que não. As quengas eram insultadas quando aparecia no posto médico. Quem tratava delas aqui sou eu. Para não pegar bucho eu faço os preparados de limão ou mamão verde e dou pra elas. Qualquer coisa mais séria tem sulfa e se for dente eu arranco que nem sente.
     O detetive Augusto engole seco. Ele respira fundo e tentar ganhar tempo para pensar:
- Acho que vou aceitar aquela água que a senhora ofereceu.
- Só se for agora! Mas só não me chame de senhora - Alzira se levanta e vai até uma jarra na cozinha pequena que fica ao lado.
- Desculpe.
- Tem certeza que não quer o bolo? – grita ela.
- Tá certo! Vou experimentar.
     Alzira volta com um pratinho com garfo e uma caneca de alumínio:
- Pode comer tranquilo viu! Aqui é de pobre, mas é tudo limpinho, não tem seboseira não.
     O detetive come o bolo e aprecia o sabor:
- Uma delícia! Muito bom!
- O senhor não é casado né? Deveria arrumar uma mulé pra lhe paparicar.
- Como? – Ele quase se engasga.
- Faz quanto tempo que você não fura?
- O que? Não entendo o que disse.
     A cafetina dar uma risada:
- Meter homi! Comer, fuder! – Ela faz um gesto com a palma aberta da mão num frenético vai e vai apontado pra baixo.
     O detetive fica surpreso, mas logo se acalma. Precisa saber lidar com esse mundo exótico sexual e libidinoso de Alzira.
- Bom! Faz tempo – ele pigarreia.
- Fique vermelho não detetive! – Ela solta outra risada.
- É que você me pegou de surpresa.
- Eu? Oxe! Tô veia mas tenho a pilha boa. Conheço um home quejudo quando vejo um.
- Quejudo eu?
- É não?
- Claro que não!
- Quenga no Recife eu sei que tem. Mas antigamente era melhor. Eu comecei trabalhando como garçonete na Torre de Londres. Depois fui para os drinks da Baiana, Chantecler e Moulin Rouge. Comecei dando na Rua da Guia, foi quando eu conheci um cara que vez ou outra tocava bateria no drink da Baiana. Depois ele arrumou pra mim ficar no Nigth and Day. Ali eu ganhei dinheiro.
- Não lembro.
- Acho que tu não era nem nascido.
- Eu lembro de um barco da CTU que meu pai me levava para passear no rio Capibaribe.
- Ah! Eu sei! Era o Garcia D’Ávila! Gostava de andar não, eu enjoava e quando passava perto das palafitas os maloqueiros jogavam pedras.
- Disso eu lembro – disse ele sorrindo.
- E tu faz como pra aliviar?
- Tenho uma amigas que ligo e a gente se encontra.
- Motel né?
- Moro sozinho e não quero dividir minha vida com ninguém. E motel é feito pra isso né?
     Alzira fica olhando para o detetive e balança a cabeça afirmando alguma coisa:
- Tu é chique mermo. Homi cavalheiro. Pagava direitinho pelo serviço? Ou é daquele tipo que quando mata a galinha guarda o queijo?
- Pagar? Não precisava...são apenas amigas, não eram prostitutas. A gente ficava junto por que gostava.
- Sei.
     O detetive pigarreia novamente e olha para o relógio de pulso.
- Então a senhora, quer dizer, você, não sabe mesmo para onde Zuleica ou Lígia foi?
- Não sei não. Casou é que não foi! Mas acho que ela continuou no ramo pra sobreviver.
- Acha isso? Disse que o homem que a visitou deu dinheiro para ela.
- Eu disse para o coronel Manuel que o dinheiro ela recebeu, mas não foi fortuna. O cabra deu um dinheiro bom pra ela desaparecer. Quenga só melhora quando arruma um homi que banca ela e se casa ou, quando abre um negócio pra ela tomar conta.
- Abrir um negócio?
- Um puteiro, cabaré, casa de recurso! Esse tipo de negócio!
- Ah sim! Desculpe – o detetive volta a fazer anotações.
- Mas nem todas sabem o traquejo da coisa. É mais difícil do que se pensa.
- Imagino.
- É uma vida que às vezes pode ser divertida e se não cair no encantamento pode juntar muito dinheiro. Mas a maior parte do tempo é solitária.
- Você quis dizer, deslumbramento?
- É isso aí. Acha que tá rica e se dana a gastar.
- Não sei se você já sabe, mas hoje em dia as pessoas já aceitam os  profissionais do sexo e eles tem direitos iguais como qualquer pessoa.
- Oxe! Tu já viu quenga ter direito! – Alzira abre a boca com sono deixando aparecer duas cáries e assim fica por alguns segundos.
     O detetive Augusto se levanta. Ele percebe que não há mais o que fazer ali com a cafetina que já dava sinais evidentes de cansaço e entrega um cartão de visitas:
- Alzira, fique com meu cartão. Se lembrar de alguma coisa ligue. Eu lhe agradeço por falar comigo e prometo que guardo segredo.
    Ela confirma com a cabeça balançando e bocejando de novo:
- Ui! Minha nossa! Tô mais derrubada do que boi de vaquejada. Eu ligo sim detetive. Mas não tenho mais nada pra dizer não.
     Nesse instante alguém bate palmas do lado de fora da casa.
- Quem é! – grita Alzira.

- Só eu madrinha! 
- Eu só lá tua madrinha! – a cafetina abre a porta.
- Oi Dona Alzira. Dona Mocinha está? – disse uma jovem que trazia um embrulho.
- Foi ali na venda comprar uma caneca de gás. O que é que tu quer?
- Mãe pediu para entregar essa encomenda à Dona Mocinha e queria saber se ela já pode emprestar o beurço.
- Berço? Que beurço menina? – disse ela bocejando de um jeito que o detetive achou que o maxilar iria cair dessa vez.
- O beurço que a senhora deu faz tempo! Lembra?
- Ah! Vixe Maria eu tô é beba de sono! Não tô me valendo de nada! Ah sim o berço! O nome é berço viu minha filha! Vá estudar! Deixa eu ver!
- Algum problema? Posso ajudar?
- Tá tudo bem detetive é que me enrolei toda por causa do sono. É que as vezes não me acostumo com as falas daqui: É beurço, garlça, maurço! Eu já tô é com as minhas “palpebras” fechando de sono.
     O detetive sorrir concordando:
- É a riqueza do nosso linguajar.
- Detetive me faz um favor! Lá no canto tem um quartinho veja se tem um berço desmontado.
- Pois não – o detetive vai ao local e olha com cuidado.
- Tem? – grita Alzira.
- Está aqui! Um berço antigo. Está desmontado sim.
     Alzira vai até a porta e avisa a moça que o berço está desmontado:
- O berço tá aqui! Manda alguém buscar!
- Tem não Dona Alzira. Todo mundo saiu para o centro.
     O detetive Augusto se aproxima e ver uma bela mocinha por volta dos 14 anos de idade. Ela vestia um gracioso vestido de chitas.
- Bom dia senhorinha!
- Bons dias – responde ela toda tímida.
- Eu acho que posso lhe ajudar em levar o berço. É pra longe?
- É não! É pra aquela casa ali – a moça aponta para a ladeira.
- Aquela perto da venda? – disse ele vendo o fusca com Seu João manobrando na frente.
- É sim.
     Alzira interfere:
- Precisa não detetive eu arrumo um jeito. Você vai carregar um berço sozinho?
- Eu vim com Júnior! Ele pode me ajudar.
- Júnior! Cadê aquele safado?
- Disse que iria me esperar na venda. E a casa é logo ali pertinho. Eu e ele só vamos dar uma viagem para levar o berço.
     Já convencida e sabendo que Dona Mocinha é idosa pra resolver as coisas, a cafetina aceitou a oferta de ajuda do detetive.
- Então tá certo. Ei menina! Vá lá na venda e chame Júnior! Diga que fui eu! E que se não vir apanha!
     A jovem sai às pressas com as mãos erguendo a saia pra não tropeçar nela.
- Quando terminar detetive é só encostar a porta viu! Vou embora – disse a cafetina.
- Não vai esperar? E a porta? Não vai trancar?
- Tem tranca não detetive. E vai roubar o que? E eu tô com um sono da bixiga! E já que não tem carro nem carroça pra levar, você e Júnior leva! Já voime!
     O detetive teve um pensamento rápido:
- Espere Alzira! O homem que visitou Zuleica veio como?
- João disse que veio de carro.
- João? Seu João motorista do coronel Manuel?
- Ele mesmo.
- Você lembra como era o carro?
- Homi deixa eu ir dormir com a graça de deus!
- Desculpe mais é importante!
- Eu nem vi o carro! Mas João sabe, pergunte pra ele. Quando eu tiver com a cabeça descansada e lembrar de mais coisa lhe aviso.
- Está bem. Vá descansar em paz. Ajudou muito.
- Quem descansa em paz é defunto, eu vou é dormir o sono da beleza!
     O detetive entra na casa imaginando que se o estranho visitante que intimidou Zuleica veio de carro, poderia tentar descobrir pela placa o paradeiro e o dono. E se foi de aluguel? Faz tanto tempo. – outro pensamento insiste em desanima-lo.
     Ainda distraído, o detetive vai até o quarto e observa com cuidado o berço. Apesar de antigo é bem conservado. Era de madeira com espelho maciço e grades laterais. Era de uma simplicidade e ao mesmo tempo o fazia parecer nobre se todos os acessórios estivessem completos.
     Algo ruidoso entra na sala e no quarto:
- Cheguei!
- Júnior! Que susto!
- Eita! O meu berço!
- Seu berço?
- Foi meu e de muita gente. Mas Dona Mocinha falou que eu fui o segundo a usar.
- E quem foi o primeiro?
- Foi Machadinho! Filho do coronel.
- E como esse berço chegou aqui?
- O coronel deixou pra quem precisasse. Ele saiu espalhando tudo que é coisa que lembrasse o filho que morreu.
- Que idade teria o filho dele hoje?
- Pelas minhas contas...
- 48 anos – responde uma voz calma e fraca atrás do vão.
- Dona Mocinha! – grita Júnior feliz da vida abraçando-a – Essa aqui é madrinha de muita gente. É a que menos tem e a que mais dar.
     A senhora por volta dos seus 61 anos, baixinha e magra, de cabelos brancos, ralinhos e pele do rosto enrugada.
- Bom dia senhor.
- Madrinha esse é o detetive Augusto. Ele veio do Recife.
     Dona Mocinha levanta até a altura do peito uma pequena sacola contendo um molhe de coentro, um pedaço de charque, um punhado de farinha, cebolas e tomates. Júnior se adianta pra pegar.
- Obrigado menino. Ainda tá com essa mania de não lavar a cabeça direito né? Tá cheio de caspa. – Ela olha para o detetive e fica assim por um tempo enquanto Júnior tenta sacudir a caspa da cabeça.
     Meio sem jeito, o detetive puxa conversa:
- Desculpa está aqui na sua casa assim muito a vontade Dona Mocinha. É que Alzira me deixou ajudar com o berço e...
- Tudo bem Sr. Augusto – responde ela com a voz polida e educada. Não parecia ter o sotaque e linguajar da região.
- É pra levar pra filha de Dona Maria! – disse Júnior.
- Então leve – responde a idosa sorrindo de boca fechada.
- Vamos detetive! – desafia Júnior - Quero ver se tu é bom de munheca ou é só esparro!
     O detetive Augusto começa a ajudar Júnior, mas fica com o pensamento longe, intrigado com aquela estranha e doce senhora. Apesar da idade, existia uma altivez em sem espírito, no modo de andar e nos pequenos e delicados gestos.
- Senhor Augusto! – Dona Mocinha aumenta a voz.
- Senhora!
- Gosta de farinha de bolinho com charque?
- Gosto sim – o detetive não quis fazer referência da comida da avó dessa vez.
- Venha depois de levar o berço com Júnior comer aqui comigo. A comida é de pobre, mas é boa.
     O detetive Augusto não teve como resistir o convite. Na verdade ele queria mesmo ter um tempo com a aquela senhora simpática.
     Chegando ao destino, Júnior e o detetive entregam o berço. Dentro da casa uma jovem grávida está muito feliz em saber que seu bebê tem um berço bonito.
- Todas as mães pobres querem os bebês nesse berço – disse Júnior.
- É mesmo? E por quê?
- Dizem que dar sorte. E eu acredito. Comigo funcionou.
- E qual foi a sorte?
- Oxe! Quer sorte maior do que servir o coronel?
     O detetive balança a cabeça e ergue a sobrancelha.
- Não deu certo para o Machadinho.
     Júnior olha de lado e baixa a cabeça resmungando alguma coisa:
- Deu sim detetive. Ele nasceu em boa família. Morreu por que Deus quis levar. Todo mundo que ficou nesse berço teve alguma coisa boa na vida ou terá num é mermo! Se tiver algum azar, Machadinho levou com ele.
- Pode ser – indagou o detetive, achando que Júnior repetiu alguma frase pronta do coronel Manuel - Dona Mocinha chamou a gente pra almoçar com ela.
- Tô sem fome – disse Júnior – Comi um sarapatel na venda com Seu João.
- Eu vi o fusca. Seu João está na venda?
- Chegou faz um tempinho. O coronel mandou ele vir caso o senhor precise. Vá almoçar com Dona Mocinha, depois passo lá pra levar uns agrados pra ela. A farofa dela é muito gostosa. Vou na venda primeiro. Vou comprar comida pra ela. Vive de favor num sabe?
- Lamentável. Ela parece ser boa gente.
- É muito boa gente. Passo lá depois, mas primeiro vou montar o berço.
- Sabe fazer Júnior?
- Sei sim. Já montei e desmontei “umas dez vez”.
- Vou passar na venda e falar rapidinho com Seu João. Aproveito compro umas coisas pra Dona Mocinha também.
     O detetive Augusto adianta os passos em direção do bar e dar de cara com Seu João virando uma paleta de cachaça e glosando versos:
- “Eu bebo! Não é por vício e não é por nada! É que vejo no fundo do copo o vulto da mulher amada!”.
     Outros homens no balcão aplaudem.
- Seu João!
- Detetive! Acabei de tomar essa golada larga em sua saúde.
- Obrigado. Eu poderia ter um particular com o senhor? É rapidinho.
     Seu João manda encher o copo com outra dose de cachaça:
- Deixe meu copo aqui! Vou ali na esquina ter um particular com o doutor e já volto.
     Eles caminham juntos, o detetive fala do carro desconhecido e explica que Júnior está montando o berço.
     O detetive para e olha firme para o motorista:
- Seu João. O que vou lhe perguntar é muito importante.
- Sim senhor.
- Alzira me disse que no passado, o homem que procurou Zuleica veio de carro.
- Veio sim!
- O senhor lembra que tipo?
- Então! Demais da conta! Era um Studebaker Champion 1942 de cor preta. Uma joia de carro! Nunca esqueci disso.
- Um Studebaker? Mas é um carro muito antigo?
- Também achei isso. Até descobrir que era do pai do coronel Machado. Antigamente ele usava para ir ao médico no Recife.
- Do pai do coronel Machado?
- É sim doutor! O velho não aguentava o desconforto da estrada e fizeram ele comprar um.
- Fizeram?
- O homi que administra a fortuna dele. Um tar de Nirvaldo.
- O que tem haver uma coisa com outra Seu João? Pode explicar melhor?
- Claro que sim! É fácil. Depois que Seu Aprígio, pai do coronel Machado morreu, o Nirvaldo veio pegar o carro e vender num leilão. O coronel Machado estava se desfazendo de tudo.
- Mas foi por causa da morte do Machadinho?
- Não foi não, mas entrou no rolo. Seu Aprígio, quando seguia pra se tratar no médico, ficava lá por uns dias. Ele morava num sobrado no centro do Recife, ao lado da Praça da Independência.
- Sei onde fica.
- Então! Por azar, o pai dele foi atropelado por um carro, outro Studebaker, da mesma cor e tipo.
- Que tragédia? E como se deu isso?
- Era carnaval nos anos 60 pra 70 e estava passando um corso de carros antigos. O velho foi atravessar a rua pra comprar água e não viu o carro. Não teve jeito, o pobre home foi parar em baixo. Foi então que depois o coronel Machado assumiu o engenho e tudo mais.
- E esse homem? O Nirvaldo? Ainda trabalha para o coronel?
- Acho que sim. Mas faz tempo que não vejo ele por aqui.
- Aqui na rua ou no engenho?
- Na rua. No engenho acho que ele continua indo duas vez por ano. Acho que é pra mostrar as contas de riqueza pru coronel.
- E aqui na rua? Ele vinha muito?
- Todo mês. Passava aqui no bar de Dondinha e depois seguia pra Recife.
- Mas de carro?
- Não no Studebaker. Com esse carro só uma vez no dia que foi falar com Zuleica. E depois não veio mais. Até hoje. Mas por que o interesse? Faz tanto tempo?
- É só curiosidade mesmo. É que Júnior me disse que o coronel Machado se desfez de tanta coisa.
- Foi sim. E eu era doido por aquele carro. Mas não podia e nem posso comprar.
- Foi por isso que perguntei – o detetive disfarça – tenho um conhecido que pagaria bem. Ele gosta de carros antigos. É muito importante pra ele sabe?
- Eu sei. Mas faz tanto tempo doutor. Acho que esse carro deve ser difícil de achar. A não ser que o senhor fale com o Seu Nirvaldo.
- E tem como fazer isso sem perguntar ao coronel Machado?
- Tem sim. Uma vez me encontrei com ele na Avenida Conde da Boa Vista, de frente pra o Edifício Sion.
- Sei onde fica. Mas é lá o escritório dele?
- Não sei, faz muito tempo que estive lá. Mas se for alguém da portaria pode dizer. Tem muitos prédios e escritórios naquela avenida.
- Você lembra do sobrenome ou qual era a firma do Nirvaldo?
- Lembro não senhor.
- Mas que mal lhe pergunte.
- Pode perguntar! Comigo não tem papa na língua e nem sou baú pra guardar segredo.
- O que o senhor fazia no Recife nessa época?
- Mané Rufão, o patrão, também tinha seus homi de negócios, mas não gostava de ir no Recife. Ele mandava eu ir pegar os papeis que dizia tudo o que ele precisava. Mas pra voltar no mermo dia era cansativo e perigoso. Eu dormia no Recife e voltava no outro dia e às vezes parava na casa de uma madrinha e passava outra noite.
- Sei – o detetive fez um olhar desconfiado e Seu João deu uma longa gargalhada.
- Nada escapa do senhor né detetive?
- Não seu João. Não quero ser indiscreto, me desculpe.
- Que nada! Nós somos homi e entendemos disso. Tinha um drink por lá que tinhas umas quenga linda. Era mais caro um pouco, mas valia a pena.
- Um drink?
- É como o povo lá do Recife chamava o puteiro.
- Sei. E o senhor dormia lá?
- Não dormia, eu só passava lá pra...o senhor sabe! Mas dormir mesmo só na volta, dava um cochilo na casa de madrinha.
- E como é nome desse drink?
- Ah lembro não! Faz tempo que fechou! O pessoal chamava o Drink do Galego. Eu gostava de ir por causa das mulé, tinha outros dinks lá, mas não gostava.
- Por que não?
- Vez ou outra tinha confusão e parava na delegacia. E o do galego era tranquilo, porta fechada, não podia fumar nem beber.
- Sério! Um drink que não se bebe e nem fuma?
- Eu achava errado, mas quando a gente falava com o galego ele já tinha uma resposta na ponta da língua.
- Como assim?
- Ele dizia que quando a gente queria beber iria pra um bar, rezar pra uma igreja e quando quisesse fuder iria pra lá, no drink dele. Ele falava que a bebida estimula e depois deprime - Seu João fazia um gesto com o dedo imitando um pênis brochando.
- E fumar?
- Ele dizia que era você fumando e o fumo entrado! – Seu João dispara numa gargalhada contagiando também o detetive.
- Muito bom Seu João! Muito bom. Mas me diga, será que nessa época os outros homens de negócios visitavam esses drinks?
- Sei não doutor, mas se frequentasse com certeza seria a do galego. Era a única que não se ouvia dizer nada. Nem na delegacia de costume aparecia. Mas em algum lugar esses homi achava mulé.
- Então está certo Seu João! Sua ajuda foi muito boa. Vou na venda comprar umas coisas pra Dona Mocinha enquanto Júnior monta o berço.
- Agora sim a coisa vai ficar boa! – Anima-se Seu João – Posso lhe pagar uma bebida? Tem uma cana que chegou da Paraíba que é uma coisa!
- Aceito sim Seu João. Vamos ver se é boa mesmo! – o detetive correspondeu da melhor maneira possível com o motorista, que lhe prestou boas informações onde ele poderia achar pistas em resolver o caso.
     Na venda, o detetive Augusto comprou de tudo um pouco para abastecer a casa de Dona Mocinha: farinha, feijão, arroz, açúcar, carne-de-sol, sabão, gás, tripa, queijo, café e rapadura. Provou da cachaça e realmente Seu João tinha razão, o produto era de qualidade.
- Não disse ao senhor? Cana da boa! Pegue aqui o tira o gosto homi!
- O que é isso?
- Tem tanajura frita, tripinha de porco e torresmo. Conhece?
- Parece bom. Conheço a tripinha de porco, lá no Recife vende.
- Dia bom de tomar cana é no dia de feira lá no centro. Tem muita barraca que vende sarapatel, passarinha frita e fígado de porco. Tudo pra tira gosto. A moçada enche o cu de cana e chama urubu de meu loro – Seu João cai numa gargalhada demorada e já mostrando os primeiros sinais de embriagues.
     O detetive apanha o embrulho de compras. Um garoto franzino se oferece em levar por umas moedas e ele aceita o contrato.
- Seu João! Vou levar as compras de Dona Mocinha. Júnior tá demorando muito.
- Oxe! Já vai homi? Tome mais uma coisinha. Olhe! Vou picar um fuminho de rolo pra nós pitar. Seu Biu! Bote uma mais uma dose pra ele.
- Obrigado Seu João! Fica pra depois. Não esqueça de avisar a Júnior.
- Esqueço não! Mas aquele deve tá solto na buraqueira. Aposto que ele já arrastou a fia mais nova de Dona Maria.
- Ele já terminou de montar o berço?
- Oxe! Faz tempo! Aquilo monta o berço de olho virado só na intenção de arrumar tempo pra se agarrar com Ninha.
- Que safado! – pensou o detetive.
- Se brincar vão ter que arrumar outro berço já já – disse Seu João, fumando o cachimbo e cuspindo em seguida.
- Dona Dondinha. A como é as compras?
- A cana é minha – grita Seu João.
- 50 conto – disse a dona da venda, que usando um papel madeira arredonda a conta da soma. O marido, Seu Biu, baixa a cabeça e todo desconfiado, pega uma vassoura de capim e vai varrer a frente da venda. É ele quem serve os homens na bebida e faz o serviço pesado.
     O detetive pagou a conta com a sensação de que foi explorado. Mas não deixou transparecer. Ele desce a ladeira e ao chegar à casa de Dona Mocinha já a encontra com a mesa posta. Ele dar umas moedas ao menino que sai correndo pra comprar um picolé gelado de saquinho na casa da frente, atraindo outras crianças.
- Já iria chamar o senhor.
- Desculpe Dona Mocinha. É que eu estava esperando Júnior e fiquei de conversa com Seu João.
     A senhora sorriu.
- João gosta muito de conversar. É um bom homem.
- Trouxe essas compras. É coisa pouca.
- Sei que é dado de coração e vou aceitar sim.
     Ela abre o embrulho é ver que tem muita coisa do que precisava.
- O senhor adivinhou tudinho – diz ela com um sorriso de que acabou de ganhar na loteria – Dodinha deve ter cobrado os olhos da cara.
- Não se preocupe com isso senhora. A mercadoria vem de longe e as pessoas tem que lucrar um pouco.
- Dondinha sabe que o senhor está a serviço do coronel Rufão.
- E o que tem isso?
- Moço bonito e bem vestido. Eles se aproveitam pra tirar uma coisinha.
- Não entendi ainda.
- O que o senhor pagou vai ser devolvido com juros. O coronel não deixa despesas para os outros.
- Mas fui eu que comprei com o meu dinheiro.
     Dona Mocinha volta a sorrir discretamente.
- Eu sei. Mas ele vai lhe devolver de algum jeito. Foi por isso que Dondinha lhe cobrou mais, ela sabia que era o coronel quem paga. Até as pratinhas que você deu ao menino ele vai saber quanto foi.
     O detetive faz uma cara de espanto.
- Como a senhora sabia?
- Pela algazarra dos meninos lá fora comprando sacolé.
- A senhora é muito esperta Dona Mocinha – disse o detetive com simpatia.
- Obrigada – disse ela enquanto fazia o bolinho de farinha com um garfo e água quente. A fumaça do café cheiroso que saia do pequeno forno a lenha incensava a casa.
- Júnior está demorando – o detetive olha pela janela.
- Ele está com a filha de Maria. Às vezes demora.
- Ele parece bem interessado nela.
- Ele sim. Mas ela sonha alto e se aproveita dele pra fazer seus gostos.
- Aquela menina?
- Ela sim. Boa moça num sabe? Mas a pobreza não segura quem tem ambição não é mesmo? Todos tem o desejo de prosperar na vida e outros gostam da vida que tem. Eu por exemplo – disse ela conformada – sou pobre, vivo da caridade dos outros e gosto da vida que levo.
- Desculpe perguntar Dona Mocinha, mas a senhora não tem parentes?
- Já tenho idade. Se tenho, não me lembro por onde andam.
- Não sabe onde pode existir parentes? Se quiser eu posso ajudar a encontrar.
     A mulher olha com carinho para o detetive Augusto enquanto pousa o bule em cima do fogão. Ela oferece uma caneca de alumínio fumegante de café.
- Cuidado. Está quente.
     Passa alguns segundos e ela nada responde. No entanto ela ver que a boa vontade daquele homem não pode ficar esperando. E se ele puder ajudar mesmo?
- Não lembro de onde eu vim. Às vezes eu sonho com algumas coisas.
- Faz tanto tempo assim?
- Eu perdi a memória faz muitos anos e desde então nem sei quem sou na verdade.
- Chamam a senhora de Dona Mocinha.
- Eu sei detetive, mas é só isso. É um apelido. Fui encontrada quase morta na cana alta perto do acostamento da estrada, na saída da cidade.
- Eu sinto muito. Foi atropelada?
- Disseram que sim. Tenho um pequeno afundamento na cabeça. Outros dizem que alguém bateu com alguma coisa na intenção de me matar.
- Mas o que é isso que a senhora está me contando?
- É uma história triste detetive – continua ela – eu sabia que não sou daqui por que ninguém na região me conhecia.
- E seus pertences?
- Só estava com a roupa do corpo e esse colar de Santa Rita de Cássia no pescoço. Fui ajudada por um cambiteiro que me achou. Ele conseguiu parar um carro na pista e um senhor de bom coração me levou para o hospital. Diziam que era parente do prefeito ou de um político que estava de passeio. Passei por mais de 10 meses internada.
- E como veio parar aqui?
- O cambiteiro todo dia passava no hospital pra me ver. Fiquei sabendo que foi ele que me salvou primeiro. Não lembrava de nada antes disso. A polícia investigou, mas não descobriu o que aconteceu. Com o tempo fomos conversando e nos conhecendo. Ele era mais velho e viúvo cansado de guerra. Quando eu recebi alta do hospital ele me chamou pra morar nessa casa.
- E como era o nome dele?
- Zeca Cambiteiro.
- Ele tinha filhos?
- Ele disse que tinha um rapaz que foi pra São Paulo e nunca mais voltou.
- E onde anda Seu Zeca?
- Morreu atropelado por uma carreta. O jumento se assustou com um exame de abelhas e correu pra pista com ele cima. Foi uma tragédia horrível.
- Meu Deus – O detetive suspira.
- Foi então que fiquei por aqui mesmo, tomando conta da casa dele. Quem sabe o filho volta. Comecei a fazer coisas e aprender outras, mas a cabeça dói as vezes e fica pior quando me falta remédio. O povo me ajuda como pode. O coronel Manuel Rufão me chamou pra morar no engenho, sou amiga de Cecília. Mas não posso deixar a casa de Zeca entregue a sorte. Devo isso a ele.
- Entendo.
- Você quer mais farofa?
- Não. Obrigado Dona Mocinha. Está muito gostoso, mas prometi voltar ao engenho na hora do almoço. Eu comi bastante no café da manhã.
- Cecília gosta de empurrar comida na gente né? – ela sorrir valorizando com as têmporas o sentido real de empurrar comida.
- É sim – retribui o sorriso – É uma senhora muito gentil.
- Aceita mais um pouco de café?
- Só mais um pouco tá certo? Agora preciso fazer a minha viagem de volta.
- Venha me visitar sempre que quiser. Farofa aqui não falta.
     O detetive beija a mão de Dona Mocinha e segue até onde os cavalos estavam. O Seu João olhou para ele e fez de longe um sinal de que Júnior não tinha chegado. Levantou e balançou uma chave, como se preguntasse se queria voltar de carro. Como viu que o detetive o dispensou fez um gesto entendendo o recado.
     Saiu com aquela impressão triste da história de Dona Mocinha. Pensou que seria um caso que ele resolveria para ela: Saber sua identidade, de onde veio e para onde iria.
     Montou o cavalo e quase que atropela um cachorro vira-lata que passava distraído com um saco plástico na boca e com vestígio de pelanca de carne. O distrito entulha seu lixo numa vala próxima a entrada e pelo visto não possui coleta regular. Muitas vezes é espalhada pelo vento ou por animais soltos na rua. Pra saber o lugar certo onde fica os resíduos é só olhar para o céu e procurar os urubus.
     Ao olhar para relógio, o detetive Augusto percebeu que ainda dava tempo de circular o pequeno distrito e quem sabe achar Júnior enroscado em algum sarro ruidoso em um dos apertados becos.
     Passou 40 minutos e sem mais paciência, o detetive resolveu voltar para o engenho sozinho mesmo. Ele se convenceu que até seria bom, poderia juntar alguns fatos na mente e que a bela paisagem ajudaria em relaxar as ideias.
- Mas antes, vou dar uma passadinha na casa de Dona Maria – pensou ele – Júnior deve ter montado o berço antes de sair para namorar com a filha dela.
     O detetive tomou o rumo de uma rua e saiu bem em cima da ladeira de onde avistava, lá embaixo, o puteiro de Alzira, a casa de Dona Mocinha e a entrada do Bar de Dodinha. O dia já estava quente com um sol impiedoso na cabeça. Ele desce do cavalo e vai puxando o animal pela corda do cabresto. Duas crianças brincam de bolinhas de gude em frente à casa.
- Bom dia crianças.
    Um dos meninos, o mais velho, dar uma tacada com dedo na bolinha e quase quebra com um estalo a outra com a pressão certeira de profissional. O garoto menor que estava acocorado se levanta ligeiro, rasteiro e sem cerimônias. Ele vai seguro de si até o detetive com a palma da mão aberta.
- Dá um trocado!
- Eu dou se for chamar Dona Maria.
- Primeiro o trocado – negociou o garoto que no máximo deveria ter uns 8 anos.
     O detetive Augusto cedeu e pagou uma prata adiantada e o menino correu pulando para dentro de casa chamando pela avó. Não demorou muito e uma simpática senhora na faixa de 50 anos, de lenço amarrado na cabeça, de porte médio, pele bronzeada e olhos verdes se aproximou enxugando as mãos num avental.
- O senhor quer falar comigo?
- Bom dia Dona Maria! Sou amigo de Júnior, ele ainda está aí?
- Bom dia. Tá não moço. Faz tempo que ele saiu.
     Ele pensou em perguntar pela filha dela, mas achou indelicado.
- Sabe dizer se ele montou o berço?
- Montou sim. Ficou foi bonito. O senhor quer ver?
     Era isso mesmo que ele queria: ver o berço e tirar umas fotos.
- A senhora não se incomoda?
- De jeito maneira homi. Pode vir, a casa é sua.
     Antes de entrar, o detetive se assustou com o menino que deu o recado pulando feito um sapo e uma cachorra vira-lata que vinha logo atrás dele latindo em protesto. O animal daqueles do tipo mediano, pelo alaranjando curto, orelhas laterais de abano e caídas, bem típico da “raça”. Não avançou nele, mas dava a impressão de que tinha a intenção. O rabo balançando dava alguma confiança de que não o atacaria. O detetive se aproveitou da distração de Dona Maria e fez intenção de bater o pé, o bicho se jogou para traz de um jeito sobrenatural. O animal engasgou a voz com um grunhido de susto e medo, mas corajosa, voltou a latir. Na verdade era uma eficiente máquina de latir.
- Cala boca baleia! E sai daqui menino! Vai brincar de pular lá fora! Oxe! Repare não detetive é assim mesmo! Quando ele era pequeno minha filha ficava brincando de pular com ele no colo e deu nisso. O menino não anda não! Pula! E vive aperreando baleia.
- Baleia? – pensou o detetive – Alguém sabe ou viu uma baleia por aqui? Ele mesmo só viu uma de verdade encalhada numa praia na Ilha de Itamaracá e mesmo assim morta. Fedia tanto que até lembrando sente a catinga.
- É o nome dela! Essa bicha é doida, ligue não.
- Nome engraçado – provoca o detetive.
- Foi meu marido que deu. Tem mais cachorro lá no quintal e tudo tem nome de peixe.
- De peixe? – o detetive fingiu admiração.
- É sim. Além de baleia, tem traíra, xaréu, piaba e por aí vai.
- Ele é pescador?
     A mulher para e olhar com um desdém bem humorado para o detetive:
- De pescador ele só tem o nome. Mas se meu marido Pedro pescou na vida, foi no rio quando menino e olhe lá! O negócio dele é vender caldo de cana na feira com pão doce e bolo de bacia.
- Muito bom – sorrir o detetive que não teve a oportunidade de encontrá-lo na feira e provar a doce bebida.
- A gente tinha um outro cachorrinho não sabe? Daqueles que não acha mais.
- Qual?
- O pequinês!
- A sim! É verdade! Nunca mais vi.
- Então! A gente acordou de manhã com um daqueles na porta de casa. Pedro ficava chamando ele de todo tipo de nome e o bicho nada de atender, foi quando ele disse “entra pra dentro” e ele correu pra dentro de casa.
- Muita sorte. Pequinês é difícil de achar.
- Deve ter sido algum desfortunado q       ue largou o bichinho.
- E onde ele está?
- Oxe! E não morreu?
- Ah que pena. Morreu de que?
- Por causa do nome. Ele só vivia na rua e muita gente tinha inveja de nós por ter um bicho de raça. Vez ou outra aparecia um estranho chamando ele. Mas nem foi por causa disso que ele morreu. Foi cocô.
- Cocô?
- Foi sim. Toda vez que ele chegava na rua se espojava na merda dos cavalos e depois queria entrar em casa. Quando ele corria pra entrar a gente gritava: “Entra pra dentro! Sai pra fora!” E ele saia e voltava, saia e voltava. Um dia o coração não aguentou e ele morreu.
     O detetive ficou olhando pra mulher com a cara de que não acreditou na história, mas ela foi tão convincente, a julgar pela casa que apesar de ser humilde era extremamente limpa.
- Pronto! O berço tá ali!
- É bonito. Júnior montou bem. Posso tirar uma foto?
- Retrato? Oxe! Pode sim.
     Após umas 3 ou 4 fotos, Dona Maria pediu que ele fizesse outras com a filha grávida ao lado do berço, depois com ela, depois com os meninos e antes mesmo dela pensar chamar os cachorros o detetive se dispensou.
- Dona Maria muito obrigado! Mas preciso ir.
- Vou passar um cafezinho.
- Não precisa minha senhora. Muito obrigado!
     Foi então que a filha de Dona Maria entra na sala.
- Tava onde menina? – pergunta a mãe.
- Fui até a esquina com Júnior. Tá desconfiada é?
- Menina desaforada! Você se ajeite! Desculpe moço! Mas essas meninas de hoje é fogo na roupa!
- Tudo bem – responde o detetive que se vira para a moça e pergunta por Júnior.
- Ele me deixou lá em baixo e subiu. Disse que passaria na casa de Dona Mocinha.
- Faz tempo?
- Faz sim.
- Está certo. Obrigado.
     O detetive saiu da casa pensativo que nem deu atenção a cachorra que insistia em latir.
- Acho que Júnior e eu nos desencontramos. Vou embora, lá no engenho a gente conversa.

Capítulo 2
“Investiga que eu acredito!”

     Após uma boa cavalgada, o detetive de longe avistou o morro que após ultrapassa-lo, sabia que chegaria ao engenho e, o mais importante, almoçaria com o coronel dialogando o seu progresso na investigação. Escutou um som típico de água caindo e lembrou na época de sua infância.  O calor estava grande e não faria mal chegar ao engenho já limpo depois de um agradável banho de cachoeira. Entrou por uma trilha estreita e deixou o cavalo amarrado. Andou mais uns 100 metros e encontrou a uma bela queda d’água de aproximadamente 12 metros de altura. Ao seu redor, tinha uma mata nativa bem preservada e uma piscina natural de água cristalina e gelada arrodeada de pedras. Avaliou o ambiente com cuidado e viu que estava sozinho. Tirou toda a roupa e mergulhou na refrescante água, lembrando-se novamente do tempo de menino na casa da avó materna. Nadou um pouco com os olhos abertos em baixo d’água, observado pedrinhas reluzentes, plantas aquáticas, peixinhos guaru, cascalhinho e um par de pés.
- Opa! De quem são esses pés? – pensou rápido e viu que era de mulher. Ao levantar a cabeça estava ela, a própria Goreti, nuazinha e com um sorriso maroto e provocante.
- Com calor detetive?
     Ela fala, pensou ele e que voz linda!
- Sim. Eu estava passando e....
     Goreti oferece a mão pra ele se erguer. Ele observa seus pelos pubianos discretos e cheios de bolhinhas de água. Seu corpo, da canela da perna até a cintura, tinha tantas curvas perigosas que faria qualquer um tombar. Ela tinha um cheiro adocicado sob aquela pele morena que não era de perfume, era o cheiro natural de uma mulher livre e cheia de desejos.
     Não tinha como escapar de tamanha sedução. Quando o detetive pensou em lembrar-se do seu próprio nome, já estava aos beijos e abraços ardentes com Goreti. O ruído das águas da cachoeira abafou os sonoros fôlegos do sexo, fazendo ambos delirarem sem pudor. Os sons da mata arranjados por uma cigarra boi, uma sabiá histérica e outros zumbidos, só eram percebidos quando o vento soprava em suas costas e lhe davam um breve arrepio de frio.
- O paraíso existe – disse ele esfregando os lábios nos seios da bela mulher.
      Ela concorda com um sorriso aberto de brancos dentes e joga o pescoço para trás. Eles se cristalizavam por alguns segundos, quase se fundiram um no outro e logo depois estavam exaustos, abraçados e imóveis.
- Preciso ir – disse ela sem rodeios indo em direção onde havia deixado o vestido – Dona Cecília vai me esfolar viva se eu não voltar logo.
- Para que a pressa? Eu também vou para o engenho e estou com o cavalo logo ali.
- Não! É melhor eu ir sozinha. Também trouxe um cavalo.
    Ela sai da água balançando as ancas. O detetive franziu a testa focando com o olho miúdo e fazendo um bico de excitação nos lábios. Deslumbrou-se com o contorcionismo imoral da bunda dela, que parecia mais duas cuias de cabaça envernizada e polidas no capricho.
- Ei mocinha! Não esqueceu nada?
   Goreti olha para traz e volta para dar um beijo nele, que segura sua mão demonstrando que já se refez e aguenta o segundo tempo de uma nova empreitada.
- Deixa eu ir homi! Despois a gente se deita.
- Quando?
- Eu te procuro.
     Os dois se levantam. O detetive vai para um lado e Goreti para o outro. Os dois só vão se encontrar à noite, pois ela não aparece na cozinha temendo que os olhos deles possam se trair diante de Dona Cecília e do coronel.
- Aquela veia é muito esperta – pensa ela enquanto cavalga rápido, chegando por traz da casa grande. Ao descer do animal, um sorriso no canto da boca carimba a ousada aventura que ela teve e, pelo intumescimento dos seios naquele curto pensamento, ela já se excitou com algo planejado para fazer da próxima vez que estiver com o homem que veio do Recife.
- O detetive não perde por esperar – pensou ela mordendo o canto do lábio.
     Por sua vez, o azuretado detetive Augusto se perdeu numa trilha. Estava tão concentrado nas lembranças daquele momento de amor com Goreti que nem viu que desceu uma trilha fechada. O cavalo percebendo a burrice e indecisão do cavaleiro fuleiro, resolveu a situação tomando sozinho o caminho certo do engenho. Na verdade para o cavalo, o caminho da cocheira é que interessava, onde um molhe de capim novo regado a melaço o esperava.
- Nossa! Parece até que eu estava sonhado – disse ele em voz baixa.
     O cavalo relincha e olhando para trás, joga um olhar no detetive que ele interpreta corretamente de que o bicho está lhe chamando de abestalhado.
- É cavalinho! Ela é incrível.
     Passados um tempo de 15 minutos e mesmo divagando as possibilidades de ficar com Goreti, o detetive chega na hora certa para o compromisso de almoçar com o coronel. Ele amarra o cavalo, olha de lado procurando Goreti e nada ver. O bicho relincha balançando a cabeça e chamando atenção do Seu Toinho que se aproxima.
- Fez bom passeio detetive?
- Fiz sim. O cavalo é muito bom.
- Cadê Júnior?
- Ele não chegou? Não vi em lugar nenhum no caminho.
- Oxe! Agora deu! Vou levar o cavalo pra cocheira.
- Tá certo Seu Toinho. Vou entrando.
- Vá simbora. O coronel mandou avisar que já tá na cozinha.
- Obrigado Seu Toinho.
     O detive foi às pressas para o quarto o trocou de roupa mais rápido do que modelo de passarela. Ao chegar à cozinha se deparou com uma farta mesa e o coronel já degustando uma cachaça.
- Olha ele aí! Num disse que vinha!
- Olá coronel. Desculpe o atraso.
- Chegou na hora! Parece até com aqueles inglês. Senta aqui perto de mim e tome uma dose comigo pra abrir os caminhos pra essa buchada que a veia fez!
- Veia é teu passado! – replica Dona Cecília que parece está acostumada às alfinetadas do patrão.
- Foi tudo bem lá na rua?
- Foi sim. Estamos progredindo.
- Bom! Muito bom! – o coronel da umas tapas devagar nas costas do detetive. Depois grita chamando Júnior.
- Ele não está coronel.
- Oxe! E eu me esgoelando chamando aquele filho do coisa ruim. Não veio com o senhor?
- Não coronel. Desculpe, procurei por ele mais tive que voltar sozinho.
- Fez muito bem...fez muito bem...Cecília! Dê um tabefe nele por mim quando ele chegar. Que coisa mais lesa! Vai ver que se enroscou com alguma doidinha por aí igual a ele.
     Para aliviar a barra do Júnior, o detetive sorrir e meio que concorda balançando a cabeça, mas nada confirmando. Ele brinda com o coronel.
- Esse passeio lhe fez bem, deixou o senhor com a cara boa! Olha só Cecília! Parece que ele viu um passarinho verde!
     Dona Cecília olha compenetrada para o detetive. Seus olhos negros e miúdos se fecham até a metade como se usasse visão de raio X em sua alma.
     O detetive pigarreia incomodado:
- É um lugar muito bonito coronel. Lembrei da minha infância e isso me fez muito bem, o senhor tem toda razão.
     Dona Cecília, arqueia a sobrancelha e enxuga as mãos no avental desviando o olhar do detetive:
- Posso servir coronel?
- Só se for agora? Buchada! Gosta de buchada detetive.
- Eu experimento um pouco, não sou de comer muito.
- Ele é biqueiro coronel, quase não comeu nada no café da manhã.
- Eu biqueiro? De jeito nenhum, comi muito e tanto que até agora nem estou com fome.
- Oxe! – o coronel puxa a cabeça para trás surpreso – biqueiro? Tem comer detetive! Comer pra cagar bem muito.
     O detetive Augusto ainda não está acostumado com o jeito simples de se pronunciar determinadas palavras ou frases pouco educadas naquela região e logo perto da mesa de refeições.
- Só faltava o coronel solta um pum! – pensou ele desolado com a possibilidade que, de fato, acabara de se realizar conforme o sonoro vibrar da tripa gaiteira do coronel.
     O detetive não sabia mais o que fazer no momento, pensar nas possibilidades de um novo pum do coronel com uma carga mais extensa do que a primeira poderia incendiá-los na cozinha devido à proximidade do forno a lenha. Mas antes disso, um gato que acabara de entrar procurando petiscos, saiu inteligentemente em disparada vislumbrando essa possibilidade.
- Coronel! Na mesa homi! Que falta de respeito com os convidados! – reclamou Dona Cecília com muito menos pudor.
- Desculpe detetive! Eu sofro de gases e meu médico disse pra não prender se não enrola as tripas! Essa não fede não, é destilada.
- Sim! Claro coronel! Fica a vontade, não me incomodo com essas coisas.
- Tá vendo veia! Ele não se incomoda! Ele já é de casa!
     Dona Cecília faz um ar de reprovação e serve o resto da comida.
- Vou caçar Júnior. Deve tá na rede espiando o pé de manga.
- Vá mesmo! E diga que tô chamando.
     O detetive Augusto faz um resumo dos seus progressos na investigação e a conversa termina na varanda enquanto o coronel toma um licor e fuma um cachimbo. Pela primeira vez o poderoso dono de engenho presta mais atenção do que de costume.
- Pensando em algo coronel? Qualquer detalhe pode ser importante na investigação!
- O senhor acha então que um antigo funcionário do coronel Machado pode está envolvido com a história?
- Até então não acho nada e nem acredito em nada mas, são pistas bem convincentes para iniciar uma investigação.
     O coronel faz um ar de desafio:
- Sem provas não dar. Então detetive Augusto! Investiga que eu acredito!
- Está certo disso?
- Já vi aquele filho de uma égua manca rodando por aqui. Já fez gosto ruim em meus negócios, dizendo que o mercado está muito exigente e coisa e tal. Bom! Eu não entendi foi nada. Mas o sujeito tem cara de safado. Até Seu Toinho me disse que por nada, teve vontade de dar um tiro nele. Força do hábito num sabe?
     O detetive suspira. Já testemunhou a habilidade do vigia em atirar e matar raposas. E pelo visto o tal de Nirvaldo era uma das bem felpudas. Ele pega o celular e começa a olhar as fotos.
- Nem tente detetive! Aqui não pega, se quiser ligar use aquele da parede. A antena é rural.
- Não é isso coronel, obrigado. É que estou vendo as fotos do berço que Júnior montou.
- Ah! Deixa eu ver!
     O detetive entrega o celular ao coronel e este vai passando as fotos. O detalhe dos seus dedos grossos o faz lembrar-se de um amigo seu que mora em Paulista, cidade vizinha de Recife, cujo apelido é Pata de Onça.
- O detetive já pode viver de fazer retrato.
- Gostou?
- Muito!
- Mas na verdade a peça é muito interessante. O coronel Machado tinha bom gosto em comprar berços.
- Quem tinha bom gosto era a mulher dele, Machado não comprava era nada.
     O detetive sorrir:
- Júnior disse que depois do Machadinho, ele foi o primeiro a usar esse berço e depois vieram outras crianças.
- É verdade – confirma o coronel – Machado fez doação do berço pra servir ao povo do distrito.    
     O detetive Augusto sabia que as suas pistas estavam esquentando e era exatamente isso que o motivara a se entregar em tão entusiasmada profissão. Seu instinto apurado e inteligência já haviam criado uma conexão do berço do coronel Machado com o caso em que está trabalhando. Precisava iniciar uma nova fase de investigação em Recife, precisava localizar o tal de Nirvaldo e acender o elo que o mantinha em contato com Zuleica ou melhor dizendo, Lígia.
- Era muito importante para a minha investigação, se eu pudesse visitar o coronel Machado e conversar com ele, assim eu...
- Tá doido! – disse o coronel de supetão – Ele nem pode sonhar que a gente está fazendo isso.
- Eu poderia me disfarçar de outra coisa.
- Disfarçar de que?
- Não sei. De alguém interessado em investir em algum negócio. Eu só queria um motivo para olhar ele de perto, fazê-lo cair num assunto que levasse ao berço.
- Detetiiiiive! – o coronel deixa sair uma espessa baforada do cachimbo – em breve todo mundo vai comentar da sua presença aqui. O povo é curioso e esperto num sabe? Quanto tempo você acha que vai demorar pra chegar aos ouvidos de coronel Machado que tem um detetive do Recife fuçando por estas bandas e perguntando por uma quenga que faz tempo que sumiu e que ele comia lá na zona?
- Tem razão coronel, não seria nada discreto e nem decente para ela. E se o coronel descobrisse a verdade sobre mim? Poderia dificultar meu trabalho.
- Eu sempre tenho razão – disse o senhor de engenho enquanto balança o cotôco do palito de fósforo queimado, apagando-o.
- Se fosse o coronel Machado que tivesse contratado os meus serviços teria conseguido informações mais precisas de Lígia.
- Ainda não me acostumei com esse nome verdadeiro de Zuleica. Mas meu estimado e eficiente detetive Augusto, não tenha nunca a certeza que um dia Machado iria contratar alguém pra investigar coisa alguma. É homi desconfiado e dado a manias. Se faço isso é como lhe expliquei, é que lhe sou grato.
- Vou retornar para o Recife amanhã. Vou seguir pistas novas e conferir algumas informações.
- Mas já? Já estava me acostumando com a sua companhia.
- Obrigado coronel, eu também aprecio muito a sua companhia.
- O detetive parece cansado?
- Um pouco. O coronel não se incomodaria se eu fosse descansar um pouco?
- De jeito nenhum. Até eu vou encostar o esqueleto na minha rede ali na sombra do terraço. Vou dormir de fazer calo nos olhos e babar de tanto roncar.
- Uma rede. Faz tempo que não deito numa dessas.
- O que não falta aqui é rede. Se o detetive subir pela trilha que fica num barranco no oitão da casa, vai chegar num quiosque cheio de redes. Lá em cima é muito ventilado e no fim de tarde faz frio. É muito sossegado e nessa hora ninguém vai lá incomodar. Seu Antônio é que gosta de ir a noite espiar algum movimento e Júnior vai uma vez por semana limpar.
- Muito bom coronel. Vou aceitar o convite. De fato, estou muito cansado. Não tenho costume de cavalgar e mesmo o distrito sendo perto deixou meus ossos moídos.
- Eita detetive vei mole! – o coronel dar uma risada longa – Vá simbora homi! E fique sossegado lá em cima. Falando nisso, cadê o peste do Júnior que não aparece? Esse menino tá muito treloso!
     O detetive enche uma moringa de água fresca e segue em direção à trilha comendo uma lasca de rapadura. Sobe um barranco de quase 200 metros e lá em cima encontra uma bela vista da propriedade e do entorno. Observa um quiosque bem construído em madeira nobre e coberto de piaçava. Já sentia a temperatura mais amena e os únicos ruídos era de um piado fino e desanimado de um passarinho desconhecido e do vento batendo nas folhas das palmeiras. Fora isso, não tinha zoada nenhuma.
     Embalado pelo balanço suave da rede e com os vapores dos dois goles de cachaça fazendo efeito, o detetive acomoda a barriga ainda cheia do almoço, pois teve que comer mais do que devia para convencer Cecília e o coronel de que estava gostoso. O detetive se rende a um sono profundo e reparador.
     O tempo passa, ele havia dormido por muitas horas e já estava todo encolhido por conta do vento frio que soprava no quiosque. Preguiçosamente esticou os braços e a perna, abrindo assim um canto da rede. Ele se surpreende em ver Goreti, que está sentada em cima de um barrote com o pé encostado em cima e outro flutuando em baixo, deixando uma parte da bela perna desnuda pela saia. Ela está sorrindo enquanto cheirava uma manga espada.
- Você?
- Quem mais esperava?
- O coronel disse que ninguém viria aqui.
- Achou ruim? Quer que eu volte? – disse ela levantando uma das alças do vestido estampando.
- Não! Claro que não! É que alguém pode ver você aqui e pensar mal.
- Você já sabe que eu sou uma menina traquina – Ela morde a manga com casca e tudo, deixando escorrer o sumo da popa pelo canto da boca que escorre a até o peito mostrando os mamilos excitados.
- Está se melando toda – disse o detetive desconversando.
- Gosto de ficar preguenta. Quer uma mordida?
- Parece deliciosa.
     Goreti vai à direção do detetive, senta na rede e serpenteando seu corpo, leva a manga até a boca dele. Ele morde a fruta com gosto e ela fica sorrindo só pensando no próximo bote. Põe a mão suavemente na calça dele e abre suavemente o seu fecheclér. O detetive não resiste e se entrega as investidas daquela mulher que não se pode economizar elogios e poupar descrições. Ele já se viciou nos seus carinhos e artimanhas de sedução de uma maneira que a sua ausência lhe deixava um vazio ecoante, uma tristeza fúnebre, uma abstinência nicotinizada.
- Saudades?
- Muitas.
     Ela entra completamente na rede e com um equilíbrio que deixaria qualquer malabarista circense boquiaberto, faz amor novamente com o detetive, deixando-o mais exausto de que quando chegou.
- Já escureceu! – disse ele assustado – Estamos muito lambuzados.
- Hã hã – responde ela insinuante e despreocupada – Tem uma cacimba lá embaixo, podemos nos banhar.
- Mas antes queira lhe dizer uma coisa Goreti.
- Então diga. Não gosto de rodeios.
- Estou voltando para o Recife amanhã.
- Volta quando? – disse ela sem muito entusiasmo, pondo um biliro na boca, enquanto junta o cabelo fazendo um pitó.
- Não sei dizer. Acredito que só depois de concluir a investigação.
- Faz tempo que não vou ao Recife. Posso ir junto?
- Seria bom demais. Só não sei o que o coronel diria sobre isso.
- O coronel não é meu pai. Vim de Alagoas apenas pra conhecê-lo, mas logo iria embora também. Você mora com alguém? Tem alguma costelinha por lá?
- Não tenho ninguém. Moro sozinho.
- Então. Vou com você, passo um tempinho lá e depois volto pra minha terrinha.
- Eu não sei. Você ficaria algum tempo sem minha companhia e...
- Nem se preocupe – disse ela – Recife tem muitas lojas e novidades, eu ficarei bem. Estou um pouco cansada de engenho.
- O que vai dizer ao coronel?
- Não se preocupe com isso. Vamos nos banhar?
     Ao chegarem ao engenho, o céu já havia perdido a cor crepuscular e o azulado escuro assumia o cenário. O detetive vai direto para o quarto se trocar e Goreti faz o mesmo. Ao chegar ao terraço, o detetive encontra o coronel pensativo e macambuzio.
- Coronel. Boa noite.
- Então! Descansou?
- O senhor tinha razão. Nunca dormi tão bem numa rede.
- Está certo mesmo que vai amanhã para o Recife?
- É o que pretendo senhor. Algum problema? Estou lhe achando com um ar de preocupação.
- É que Júnior ainda não voltou.
- Ainda?
- Ele nunca fez isso antes, não sai da minha cola. Mandei Seu Antônio voltar para o distrito e procurar por ele e nada. Seu Antônio pegou o cavalo e procurou pelos sítios ao redor e ninguém o viu.
- Queria saber se o senhor poderia esperar até sábado?
- Posso sim, mas não acho que Júnior vai passar dois dias desaparecido.
- Ele nunca dormiu fora de casa. Já chegou de madrugada do forró, mas nunca amanheceu longe do engenho. E eu queria mais um pequeno favor.
- Pois não coronel.
- Goreti está indo embora pra casa, mas antes precisa comprar umas coisas no Recife. O senhor poderia acompanhar ela e depois levar na rodoviária?
     O detetive ficou surpreso.
- Faço sim coronel. Não se preocupe.
- Eu fico grato detetive. Sabe como é.  A menina é de interior e os homi da cidade são muito esperto.
- Cuidarei dela. Estará em segurança.
- Olhe só. Vou lhe dar mais dinheiro para as despesas e...
- O senhor já me deu o suficiente coronel. No Recife não terei muitos gastos, moro lá esqueceu?
- Eu sei homi! – o coronel põe a mão no ombro do detetive – mas esse dinheiro ainda não é seu, apesar de que pode usar ele como quiser. Mas nunca se sabe até onde ele é suficiente, além do mais o senhor pode precisar de um ajudante ou coisa parecida pra resolver o caso. Só não pode ser Júnior.
- Farei o que for preciso. Vou me esforçar pra resolver logo essa investigação.
      No canto do corredor, dentro de casa, uma parte da cortina se fecha lentamente. Era Goreti bastante entusiasmada com a ideia de ser a ajudante do detetive.
     Dona Cecília aparece no corredor e avisa que o jantar está pronto. O coronel disse que está sem fome e que o detetive poderia ir jantar com Goreti e acertar com ela os detalhes da viagem. O senhor de engenho fica sozinho e em silêncio com Dona Cecília, que também estava sem fome e angustiada. No fundo do coração, eles sabiam que algo aconteceu com Júnior.
- O coronel vai precisar de mim?
- Não. Pode se recolher se quiser. Se ele aparecer me avise.
- O senhor não vai deitar?
- Estou esperando Seu Antônio pra começar a ronda.
     A fiel empregada se retira e vai para o seu quarto. Pouco tempo depois o vigia aparece e com um movimento negativo com a cabeça, avisa ao coronel que não rastreou Júnior e que o cavalo havia retornado sozinho para a cocheira.
- Onde esse menino se meteu? – pensa ele.
     Na cozinha, o detetive encontra Goreti muito tranquila mordendo uma espiga de milho cozido.
- Quer que eu lhe sirva?
- Não precisa. Não estou com muita fome. Tem outra espiga dessa?
     Goreti se levanta e vai até uma panela de barro e retira com um garfo grande uma suculenta espiga.
- Júnior vai aparecer – disse ela – a cidade toda já sabe e procura por ele.
- Como pode ter tanta certeza? Você nem conhece ele direito.
- Mas sei que homem novo gosta de uma aventura de vez em quando. O coronel deveria saber disso.
- Mas ele não voltou. Sumiu com a roupa do corpo e nem dinheiro levou. Ninguém sabe do paradeiro dele.
- Quando a gente quer sumir de verdade ninguém nos acha.
     O detetive dar uma mordida no milho.
- Acho que vou ser sua ajudante na investigação!
- O que? – Ele se engasga. Goreti se levanta e dar palmadas nas costas dele.
- Não se engasgue que eu ainda te quero – disse ela jogando a cabeça para frente cobrindo o rosto do detive com seus cabelos.
- Eita demônio de mulher! – pensou ele, achando que já estava pegando o jeito do linguajar local pelo clamor da convivência.
- Tá melhor? Beba uma aguinha, vou buscar.
     Ele se levanta e segura as suas mãos.
- Goreti. Você inventou uma estória para o coronel só pra ir comigo ao Recife no foi?
- Ele sabia que já estava perto do dia que voltaria para casa. Mas eu sabia também que ele não queria que eu fosse sozinha...então? Você foi perfeito. 
- Mas esqueça essa ideia de ajudante vice?. Não preciso de ajudante.
- Até agora não – disse ela – escutei sem querer que você gostaria de falar com o coronel Machado.
- Você escuta atrás das portas?
- Na verdade atrás das cortinas. Uma garota precisa saber das coisas para sobreviver.
- Falo sério Goreti! Isso é muito feio.
- Não foi de propósito. A janela do meu quarto fica pertinho do lugar onde o coronel gosta de ficar. Acho que ele fica tomando conta pra ninguém me bulir – ela sorrir com olhar maroto – o coronel fala muito alto! Nossa!
- É verdade. Acho que até as raposas da mata escutam ele.
- Se você aceitar que eu seja a sua ajudante, prometo que lhe boto dentro da casa do coronel Machado.
- Como é?
- Faço sim! E não quero pagamento por isso, quer dizer, só a sua companhia se você quiser, sem compromisso sério.
- Claro que eu quero Goreti, mas pode ser perigoso andar na minha companhia.
- Duas cabeças juntas pensam melhor não acha? E já estive naquele engenho antes e o coronel me conhece.
- Mas o coronel Manuel me proibiu de ir lá! Se ele souber, minha situação se complica! Posso perder a sua confiança.
- Isso não vai acontecer – disse ela persuasiva – você não confia em mim não é?
     O detetive ficou sem jeito, mas, terminou cedendo.
- Tudo bem. Vai ser bom ter a sua companhia e Júnior não está aqui. Como a mocinha vai fazer pra eu conseguir ter um dedo de prosa com o coronel Machado?
- Primeiro nós vamos ao hospital de Cova da Onça.
- No hospital? O que pretende fazer lá?
- Tem uma empregada de muita estima do coronel Machado que fez uma cirurgia de apendicite, chama-se Ivonete. Eu a conheci quando fui ao engenho, acompanhada de padrinho. Fiquei sabendo que ela já recebeu alta, mas o coronel Manuel não sabe.
- Então?
- Então quero que você se ofereça ao coronel dizendo que pode me acompanhar até Cova da Onça.
- E por que você mesma não faz isso?
- Vou fazer, mas de outro jeito. Amanhã depois do café, acompanhe o coronel até a varanda. Como é de costume, ele vai fumar seu cachimbo e vai me ver montada num cavalo. O resto deixa comigo.
- Estou achando tudo muito misterioso – disse o detetive desconfiado.
- Achei que os detetives gostassem de mistérios. Falando nisso, eu tenho um sinalzinho bem aqui, pertinho da minha alegria. Você já notou?
- Não vi todas as estrelas da sua constelação.
- Tenho muitas estrelinhas por ali, mas nem sei quantas são? Quer contar? Vem amolengar minhas estrelinhas.
- Menina... Não provoca.
- Olha só meus cambitos.
- Não acho suas pernas finas.
- É não? – ela põe a unha do dedo indicador na boca.
- São canetudas, bem torneadas com as batatas firmes.
- Uau! Você é um detetive poeta que entende tudo sobre o corpo humano?
-Ainda nem cheguei perto – o detetive se levanta visivelmente excitado e vai andando devagar, arrodeando a mesa em direção de Goreti, mas Dona Cecília aparece na cozinha.
- Goreti!
     Rapidamente o detetive se senta tentando esconder a intumescência fálica atrevida e irracional.
- O que isso detetive? Tá com dor de barriga é?
    Salvo pela circunstância dita.
- Tô sim Dona Cecília! Acho que não estou acostumado com a comida do engenho!
- Eu ofereci milho e outras coisas pra ele comer, mas não quis? – falou Goreti quase rindo.
- Foi não! – disse o detetive piscando os olhos – Será que foi a buchada?
- Agora sim! Sobrou pra minha buchada! Já cagou?
- Hã?
- Vá na casinha do quintal. Lá é bem tranquilo e tem um buraco fundo pra aliviar as tripas.
- Lá fora? Que buraco?
- Nunca usou um cagador na vida homi?
- Acho que não – ele fez uma cara de angústia.
- Então vá logo! Não vou limpar o banheiro de dentro a essa hora mais não. Só vim aqui por que achei que esqueci a porta da cozinha aberta. Minha cabeça não para de pensar em Júnior.
- Eu entendo Dona Cecília – disse ele – Também estou preocupado.
- E tá com uma cara de esgotado. Esse serviço seu acaba com um viu?
- Vai ver que é por isso que deu nervoso nele e atacou a barriga – explica Goreti deixando o detetive ainda mais embaraçado.
- É melhor ir logo pra casinha. O coronel disse que você já é de casa e não tem cerimônia. Vou fazer um chá de boldo para o senhor.
- Não precisa Dona Cecília – interrompeu Goreti – deixa que eu faço, eu também não estou com a barriga boa.
     A velha olha por baixo da sobrancelha:
- Tu eu sei o que foi! Foi manga! Vai gostar de chupar manga assim no raio que o parta!
- Gosto muito – disse ela apertando de leve a barriga sarada com a ponta dos dedos, simulando está com um pouco de dor.
- Oia a outra! Vixe maria! Tá com dor também é?
     Goreti concorda lamentando dissimuladamente com a cabeça. Dona Cecília faz recomendações de não deixar nada sujo na pia e fechar a porta da cozinha quando o detetive Augusto voltar. Ela pega o candeeiro e desaparece na penumbra da casa e resmungando:
- Vôte! Povo estranho.
     Lá fora, o detetive e Goreti ainda se pegaram em beijos e sarros rápidos, mas logo voltaram para a casa grande e seus quartos.
     À noite e a madrugada se passaram tranquilamente. Não houve ruídos estranhos nem de morcegos, de galos e tiros em raposas afoitas. O detetive dormia com sono pesado e parecia uma pedra sob a cama, só a barriga que se movia pra atestar que era humano. De bruços com uma perna dentro da cama e outra fora, o homem estava um bagaço de cansado.
     No outro dia, Dona Cecília é a primeira que acorda. Seu Antônio já está de tocaia numa porta da cozinha que dar para o lado de fora. Ele espera o café aromático e saboroso que incensa a casa grande e se instala nas narinas do povo, obrigando-os a acordar. O coronel também gosta de ir cedo à cozinha, mas nem apareceu.
- Tu viu se o coroné tá na varanda? – perguntou Dona Cecília para o Seu Antônio.
- Tá sim. Passou a noite lá.
- Ôxe! Coitado. Preocupado com Júnior né?
- É sim. Ôa! Faz tempo que não vejo o coronel assim.
- Vou levar o café dele na bandeja - Dona Cecília limpa as mãos no avental e apanha uma bandeja.
- Espera um pouco Dona Cecília.
- Esperar por que Toinho?
- Se levar o café agora ele não vai tomar. Nem lavou o rosto ainda. Deixe pra levar daqui a pouco, o delegado novo de Cova da Onça tá chegando. Ele vai convidar pra tomar café – Seu Antônio olha para um relógio de bolso.
- Delegado novo é? E onde anda Soares? Já iria fazer um mingau que ele gosta.
- Ele foi transferido para o Recife por uns tempos, mas volta.
- Tá certo. Então tome. Leve essa bacia com água e tolha pra ele tirar a remela.
     Dona Cecília tenta disfarçar e se vira pra terminar de cortar as frutas. Seus olhos se enchem d’água. Ela sabe que a presença do delegado no engenho não é coisa boa e que algo aconteceu com Júnior.
     Sem cerimônias, o detetive Augusto entra na cozinha:
- Bom dia Dona Cecília.
- Bom dia detetive. Tá melhor da barriga?
- Estou ótimo obrigado.
- E o coronel?
- Ainda não desceu. Tá com muita fome?
- Muita não. Por quê?
- Então tome esse suco de goiaba pra prender a barriga e passar a fome um pouco.
- Remédio?
- Também, mas eu acho que o coronel vai lhe chamar pra tomar café com o delegado que tá chegando.
- Delegado?
- Seu Antônio que disse. Beba logo e vá ficar com ele na varanda.
- Vou sim. Obrigado por avisar.
     O detetive Augusto poderia sair pela porta da cozinha que seria mais próximo para chegar do lado da varanda que o coronel gosta de ficar, mas preferiu ir por dentro de casa na esperança de achar Goreti.
- Onde se meteu aquela doidinha – pensa ele que quase tropeça na alcatifa.
     Ao chegar à varanda encontra o coronel todo borocochô e Seu Antônio descendo com uma vasilha na mão e uma toalha usada no ombro.
- Bom dia coronel.
- Bom dia detetive. Já tomou café?
- Ainda não.
- Muito bem. Queria que tomasse café comigo e outra pessoa.
- Como quiser.
- É o detetive provisório Cordeiro. Ele já tá chegando, já escutei o som do motor.
- Detetive?
- Ah não! Delegado Cordeiro – o coronel dá um leve tapa na testa – Fico ruim das ideias quando não durmo.
- Desculpe falar, mas o senhor não me parece bem.
- E posso? Preocupado com Júnior. Ontem de noite liguei para o delegado e ele disse que chegava hoje cedinho.
     Um cavalo relincha no pé da varanda. Os cacos são escutados batendo no piso de cimento queimado. Goreti puxa o animal com uma corda curta desfilando na frente dos dois homens. O coronel olha desconfiado e grita:
- Bom dia afilhada!
- Bom dia padrinho.
- Vai passear filha?
- Vou à cidade padrinho.
- Sozinha?
- Sim. Posso ir?
- Claro minha filha, mas sozinha vai me deixar avexado. Já sumiu um acompanhado imagine você sozinha.
     O detetive Augusto achou que foi uma indireta do coronel chamando o a responsabilidade de cuidar Júnior. Mas depois tirou isso da mente, reconheceu que Júnior é que tinha de ficar de olho nele, era a sua responsabilidade.
- Vou chamar quem? – pergunta ela olhando para o detetive.
- Ah! Eu posso ir se quiser, quer dizer, se o coronel não se incomodar?
- Incomodo não. Fico mais tranquilo. Mas deixa o delegado chegar e... – um carro modelo Rural de cor azul e branco entra na propriedade – Olha ele aí! Chegou!
     O coronel acena e o delegado de Cova da Onça desce do carro. Ele limpa o chapéu empoeirado, ajeita a camisa ensacando-a na calça. O homem da lei, aparentando uns 35 anos, retorna o gentil aceno para o coronel.
     Ao olhar de lado, dar de cara com Goreti. Ela fala alguma coisa pra ele que não dar pra ouvir, e o mesmo retribui com um balanço afirmativo de cabeça e continua sua caminhada até a varanda. De onde o detetive Augusto se encontrava não escutou o que ela disse, ele observa que o delegado provisório fica quase 10 segundos hipnotizado com a imagem daquela amazona florestada da zona da mata. Meio sem jeito, ele ver o delegado volver o olhar para o coronel e que também acha o dele. Ao adiantar o passo, é obrigado a parar devido ao cavalo que passa tranquilo em sua frente, puxado por Goreti que fala alto para o coronel:
- Então vou esperar lá na cozinha padrinho!
- Tá certo espere! Bom dia delegado! Venha chegando!
- Bom dia – responde ele baixando e levantando rapidamente a cabeça, parecendo um pouco desconcertado e seguindo os passos da mulher com os olhos fixo no horizonte de seus gemelares glúteos empinados, que dava a impressão que perderia o equilíbrio pelo repuxo de cada passo que ela dava.
     Lá do alto o detetive Augusto sentiu uma furada de ciúmes. Mas não poderia deixar de reconhecer que esse jeito sensual de ser de Goreti era realmente natural e demoníaco. E outra, o coronel nem disse pra ela que ele iria acompanhá-la, mas mesmo assim ela já havia deduzido.
- A bicha é esperta! Safada! Mas esperta – pensou o detetive, indignado por não reconhecer o ciúme que voltava a lhe atormentar após uma breve ponderância dos fatos. Ele estava apaixonado pela aquela mulher e enquanto não admitisse isso sofreria as consequências.
- Suba aqui delegado! Chegou na hora boa! Essa aí arrastando o cavalo é Goreti minha afilhada e esse aqui é o detetive Augusto que lhe falei.
     Após as apresentações e apertos de mãos, o coronel convida todos para entrar e tomar café da manhã. O delegado Cordeiro lamenta o desaparecimento de Júnior e disse que já ordenou diligências, mas que não havia nenhum indício do que havia acontecido.
- É muito estranho delegado – disse o coronel – Júnior não é de fazer isso.
- Concordo – responde ele um pouco incomodado com o bigode – apesar de está há poucas horas na cidade, já me afeiçoei a ele antes mesmo de conhecê-lo. Ele é muito querido por aqui.
- É um bom menino – responde o coronel que quase deu uma impressão de se emocionar.
     O delegado olha para o detetive Augusto e pergunta se ele poderia responder umas perguntas.
- Sim. Estou à disposição – responde.
     O homem da lei abre um pequeno borrão e molha a ponta da caneta na língua iniciando uma anotação. O coronel observa esse gesto de bom gosto, pois confirma assim que o delegado Cordeiro foi mesmo aprendiz do amigo Soares. Ele é que tinha esse vício de molhar a ponta da caneta com a língua antes de escrever. Ele dizia que é o primeiro passo em intimidar um interrogado, deixando-o inseguro.
- Conversei com várias pessoas que estavam próximas naquele dia e só faltava o senhor.
- Pode me chamar de você, assim me faz parecer um idoso.
     O coronel olha para ele desconfiado.
- Sem querer ofender coronel. Mas sim! Pode perguntar delegado.
- Em que momento Júnior saiu das suas vistas?- pergunta ele na bucha.
- Quando foi na casa de Dona Maria montar um berço.
- E o senhor, quer dizer, você foi procurar por ele?
- Precisava. Eu fui com ele e minha intenção era retornar com ele.
- Ele falou alguma coisa sobre ir para outro lugar, se encontrar com alguém?
- Para mim não, mas depois fiquei sabendo que era costume dele se encontrar com a filha de Dona Maria toda vez que iria ao distrito.
     O delegado confirma a informação e o detetive completa:
- Falei com a filha dela que me disse que Júnior retornou para a casa de Dona Cecília. Mas isso não aconteceu, então resolvi voltar para o engenho acreditando no nosso desencontro.
- Muito bem detetive. Então, conheço bem a ética profissional da sua profissão e não vou incomodá-lo com perguntas desnecessárias, mas soube que estava na cidade investigando uma mulher que trabalhou numa casa de prostituição?
- Isso mesmo. Ela trabalhou lá há mais de 20 anos e meu cliente quer saber do seu paradeiro. Desculpe, mas não vejo razão para dar detalhes de algo que não tem relação direta com o sumiço de Júnior.
     O delegado pigarreia.
- Mas é claro. Cidade pequena sabe como é. Apenas confirmando que  Júnior estava acompanhando você em ajudar na investigação.
- Na verdade Júnior não estava investigando, apenas me acompanhando no caminho. Ele mesmo se recusou a mim acompanhar quando fui falar com Dona Alzira.
     O coronel adianta o corpo e a voz:
- Foi ordem minha. Só faça acompanhar o detetive no caminho, mas deixe ele trabalhar sozinho.
     Dona Cecília aparece na sala e pergunta se está faltando alguma coisa. O coronel responde que não e que ela poderia retornar para a cozinha. O delegado se dar por satisfeito e fecha a caderneta.
- Pois bem. Digo ao senhor coronel que por enquanto só nos resta esperar e descobrir novas pistas.
- Só isso?
- Já estamos procurando Júnior em todos os lugares que ele costumava ir, tanto aqui no distrito como em Cova da Onça. Acredito que o senhor já deve ter procurado em suas terras e nas dos vizinhos?
- Fiz tudo isso – responde o coronel desanimado.
- Mas vamos esperar coronel, pelo menos um pouco mais. Se nenhum corpo aparecer, vamos mudar nossa linha de investigação. O senhor já tem meu número de celular e eu tenho o seu. Qualquer informação ou acontecimento entraremos em contato.
- Eu agradeço delegado. O delegado Soares fez muitos elogios a sua pessoa.
- Falou com ele recentemente?
- Falei ontem de noite depois da nossa conversa.
- Ele está bem?
- Sim. Disse que já viu muitos casos parecidos com o de Júnior e que se resolveram bem. E um, em especial, não se deu bem.
- E qual foi?
- O cabra voltou casado com um filho no braço.
     O delegado e o detetive sorriram quebrando o gelo.
- Por que o senhor não fica aqui mais um pouco para o almoço delegado? A viagem até Cova da Onça é cansativa.
- Vou aceitar sem cerimônias coronel e aproveitar a ocasião para fazer o mesmo percurso a cavalo que o detetive e Júnior fizeram. Pode arranjar isso para mim?
- Mas é claro que sim! E ainda faço melhor, vou com o senhor!
     Deu pena de ver quando o coronel abriu a boca para gritar o nome de Júnior como de costume e parou no meu do caminho. Ele se levantou calado, desceu a escada e acenou para um funcionário que o atendeu.
- Diga a Seu Toinho que prepare o meu cavalo e outro para o delegado. Vamos na rua.
- Sim senhor – o funcionário saiu às pressas. O coronel observou a lerdeza dele.
- Se fosse Júnior já voltava com os cavalos prontos – pensou ele, enquanto retorna para a sala.
     O detetive Augusto aproveita a oportunidade e fala com o coronel sobre a ida em Cova da Onça acompanhando Goreti.
- Sim mesmo! O senhor vai né?
- Vou sim. Mas acho que não vou aguentar ir a cavalo. O senhor se incomodaria de ceder um carro para nós?
- Eita! Seu João foi na usina levar o numerário da semana para os funcionários e os boia fria que corta a paia da cana. Ele ainda vai na rua pagar minhas despesas.
- Posso dirigir outro carro, não me incomodo.
- Faria isso?
- Sem problemas coronel.
- E não é! Tá certo detetive. Fale com Seu Toinho e pegue a minha caminhonete.
     Tempo depois, o detetive e Goreti seguiam para o centro de Cova da Onça. Passaram por várias fazendas, engenhos, pontes, plantações e pequenos povoados. Durante a viagem, Goreti se comportou e eles falavam mais sobre a visita do delegado e como ela o faria entrar na casa grande do coronel Machado.
- Você vai se vestir de médico – disse ela bem à vontade.
- Médico?
- Vou entrar no hospital e marretar um jaleco!
- Vai o que?
- Sim e uma maleta médica.
- Vai o que? Tá doida? – Ele freia o carro.
- Deixa eu explicar. Vou entrar no depósito e pegar o que precisamos e depois volto para a gente ir direto para o engenho do Coronel Machado.
- Você vai roubar equipamentos médicos importantes?
- São equipamentos com defeitos, não faria isso seu bobo.
- E como você sabe disso?
- Vi crianças brincando com equipamentos assim no povoado de Desterro que fica aqui perto.
- E o Jaleco?
- Homi relaxa! Assim você me deixa nervosa.
      O detetive se acomoda na cadeira e equilibra uma mão no volante e outra ajustando o retrovisor. Passa a primeira macha e põe o carro em movimento.
- Muito bem. E qual vai ser meu nome?
- Vou achar um crachá.
- E o que um médico vai fazer no engenho do coronel Machado.
- Vai olhar Ivonete e seu filho.
- Médicos geralmente não possuem tempo de sobra pra visitar paciente que já recebeu alta e que mora em engenho distante.
- Concordo. Mas esse médico vai investigar se o bebê teve algum problema por conta do zica vírus.
- É uma boa justificativa.
- Ainda bem que chegamos num acordo – disse Goreti aliviada.
- Mas não vamos demorar né?
- Não Augusto, um pé lá, outro cá.
     Foi a primeira vez que Goreti o chama pelo nome e isso lhe fez muito bem.
- Foi tão natural – pensou ele, olhando-a com carinho.
     Ela olha para ele de volta e pergunta:
- Carece de alguma coisa?
     O detetive se distrai e não ver um buraco na estrada de barro. O impacto provoca um forte catabil, fazendo eles quase baterem a cabeça no teto do carro.
     A desinibida Goreti achou divertido, mas, o detetive não se perdoou por sua perigosa distração. Alguns minutos depois, entraram na pequena e modesta cidade de Cova da Onça. Deram uma volta no pátio da igreja e na praça que fica no centro. Depois estacionaram o carro discretamente embaixo da sombra de uma árvore, numa rua ao lado do hospital municipal.
     Sem perder tempo, Goreti entra no hospital. O detetive Augusto fica dentro do carro aguardando e vigiando o movimento da rua. Ele se distrai com a vida simples e corriqueira das pessoas. Observa um pequeno grupo de idosos jogando dominó na praça, dois meninos passando com badoques e um saco de pedras, uma carroça sendo puxada por dois bois, um homem com um balaio grande na cabeça e um grupo de cabras perdidas sendo açoitadas por crianças. Ao longe na porta da igreja e, a julgar pela roupa preta e longa, ver o possível padre da cidade.
     Começa a sentir um pouco de sono diante de tanta calmaria e desperta quando um caminhão carregado de galinhas de granja passa devagar ao lado do carro, deixando o cheiro das penosas em sua narina. Um homem à cavalo, desce do animal em frente de um boteco e pede uma lapada de cana. A calmaria recomeça e o sono chega.
- E o tempo não passa?– disse ele pensando como Goreti faria o justificado furto.
     Passado uns 40 minutos, o detetive se impacienta e sai do carro pra pegar um ar fresco. Ele anda um pouco e olha para a recepção do hospital.
- Nada! Cadê aquela maluca?
     Sem ele esperar, escuta um assovio vindo na direção do carro. Era Goreti com uma sacola na mão. Ele segue apressado e para fazendo-a entrar no carro.
- Onde você estava? Fiquei preocupado.
- Sair por uma janela da enfermaria.
- Demorou muito!
- Pra pegar as coisas foi rápido. É que minha saia subiu e minha calcinha ficou presa num prego da janela. Fiquei meio pendurada.
- Como é que é? – O detetive está quase sorrindo.
- Minha calcinha! – Goreti levanta a saia rasgada e mostrando os pelos pubianos – Tive que tirar a calça lembra? Não iria vir de cavalo.
- E deixou a calcinha no prego como prova do roubo?
- É uma calcinha comum, comprei na feira e ninguém vai se ligar nela. E além do mais, você me prefere assim né?
     O detetive coça a testa e olha de lado para a mulher.
- Você vai sem calcinha para o engenho do coronel Machado?
- Não vejo problema por que não pretendo me abaixar. Pelo menos enquanto estiver lá. E minha saia não é tão curta assim. Vamos! Liga logo esse carro!
- Sim senhora madame – responde ele dando outra olhada rápida para o ventre de Gorete e ela percebendo no canto do olho, cinicamente contribui abrindo um pouco as pernas, provocando-o.
- Cuidado com outro buraco viu? E assim que chegar num lugar sem ninguém coloque o jaleco.
- Como conseguiu esse material?
- Um amiguinho deixou fácil. Eu só precisa pegar e sair.
- Amiguinho?
- Um técnico de enfermagem, ele é gay, não se preocupe.
     Até a metade do caminho, dava-se a impressão de que estavam voltando para o engenho do coronel Manuel Rufão. Um grande paredão de pedra é que marcava a divisa nas duas propriedades e um pequeno rio as separava dos domínios territoriais do município. Existia um atalho de uma estrada de barro que passava 500 metros da casa grande do engenho de Manuel Rufão, mas eles preferiram evitar, a poeira levantaria suspeita.
- Eles conhecem a diferença de poeira de carro e de charrete – disse Goreti.
- Impressionante.
     A entrada do engenho do coronel Machado é muito bonita, mas ao contrário do seu vizinho é descuidada. Parece que não tem funcionários caseiros e a chegada até a casa grande é bem interessante. O carro passa por baixo de uma longa alameda de pau-d'arco-amarelos dando ao ambiente uma beleza singular.
- Que bonito, nunca tinha visto algo assim – disse o detetive entusiasmado.
- Concordo. Fiquei maravilhada quando vi a primeira vez. Só que agora está mais florido ainda nessa época do ano.
- Que árvore é essa?
- Os moradores chamam de Pau Amarelo.
- Muito interessante. Lembre-me de tirar uma foto na volta.
- Vou pensar no caso – responde Goreti.
- Parece abandonado.
- O coronel Manuel disse que desde a morte do filho que o coronel Machado se desgostou do engenho. Dizia que como não tem herdeiros, não tinha interesse de manter a propriedade.
- O que ele pretende então? Vender?
- Ouvir dizer que sim – comenta Goreti – muitos funcionários já foram demitidos, a cana-de-açúcar não é mais processada.
- Mas eu soube que tem um projeto de criação de tilápias aqui na propriedade?
- Também ouvir dizer, não conheço. Mas acho que deve ser alguma ideia da empresa que ajuda o coronel Machado na administração.
     O detetive Augusto pensa um pouco.
- Uma forma de entrar algum dinheiro, uma atividade alternativa?
- É bem por aí – responde Goreti.
- E se vender, o novo proprietário vai ter uma atividade implantada em plena produção.
- Um bom negócio né?
- Um excelente negócio – disse o detetive desconfiado.
- Está tudo bem?
- Está sim. Mas não vejo a hora de ir ao Recife. Tenho certeza que vou descobrir muita coisa.
- Vamos descobrir. Não esqueça que vou com você.
     O carro para próximo à casa grande. Goreti desce do veículo, seguida do detetive. Um senhor aparentando 60 anos e com um ciscador na mão se aproxima silencioso.
- Bom dia!
- Bom dia Seu Mário – responde Goreti.
- A menina procura o patrão?
- Sim! Ela está?
- Está na sala olhando os quadros. Ele hoje está mais triste do que nunca.
- O senhor sabe onde acho Ivonete?
- Ela foi simbora.
- Foi embora? Eu sabia! Ivonete é muito arengueira. Logo logo arrumaria uma bronca.
- Não foi arenga menina Goreti. O pai da criança veio buscar ela e o filho.
- Não me diga! O safado resolveu assumir?
- É o que parece, mas também não dava mais pra ela ficar.
- E por que não?
- O patrão demitiu quase todo mundo. Só ficou eu e minha mulher Sônia que faz de tudo, de cozinheira a arrumadeira.
- Como é que é?
- As coisas não estão boas por aqui menina – o idoso se apoia no cabo do ciscador olhando para o detetive vestido de médico.
- Parece que não – responde Goreti.
- Esse doutor é novo?
- É sim. Vai demorar pouco. Veio olhar Ivonete, mas ela já foi, então não adianta mais.
     O idoso adianta o passo em direção do detetive.
- Ave Maria! Faça isso não! Faz dias que estou querendo ir ao médico e Sônia também! O Senhor é médico particular ou do SUS?
     O detetive fica um pouco confuso em responder, mas Goreti está atenta a tudo.
- Ele é as duas coisas – responde.
     O idoso olha desconfiado.
- Sei. Eu tenho dinheiro se quiser, são das minhas economias, não tenho vícios e nem o que gastar por aqui num sabe?
     Goreti escuta tudo, mas seus olhos parecem vislumbrar cada canto do terraço da casa.
- Não precisa Seu Mário! O doutor vai lhe atender de graça.
- Ah que bom! E minha senhora também?
- Também.
     O detetive pigarreia e quebra o silêncio.
- O senhor e sua esposa trabalham aqui há muito tempo?
- Desde que a gente nasceu.
- Interessante.
- Muito – responde o idoso automaticamente deixando o detetive sem graça.
- Eu e minha mulher sabe de muitas coisa daqui.
    Goreti se volta e olha para o idoso:
- Seu Mário! Onde foi que o bebê ficou?
- No berço, onde todo bebê fica.
- Mas Ivonete não tinha berço.
- Mas o coronel arrumou outro.
- Ah que bonitinho! – Goreti faz teatro - Queira tanto conhecer o bebê no seu berço. Mesmo que seja emprestado.
     A esposa do Seu Mário aparece na varanda limpando as mãos no avental.
- Goreti minha fia!
- Oi Dona Sônia!
- Chegue cá minha linda, me dê um abraço.
- Venha comigo – Goreti chama o detetive baixinho.
   Eles sobem uma curta escadaria.
- Ah que saudades! Por onde você andou moça bonita? E quem é esse doutor tão bem apanhado?
- Como vai Dona Sônia? – pergunta o detetive disfarçado de médico.
- Uma dorzinha aqui e ali. Eu conheço esse sotaque. O senhor é do Recife não é?
- Sou sim e...
     Goreti interrompe:
- Ele veio saber se Ivonete e se tinha um algum surto de dengue por aqui também.
- Dengue? Tem não minha fia! Com a graça de Deus esse bicho não fez estrago por aqui. Ivonete foi embora com o pai do menino.
- Eu soube, Seu Mario falou.
- Queria tanto ver ela e o bebê.
- São lindos né? Vi muitos. E aqui cuidei de Machadinho desde o início.
- E coronel? Vim até aqui e não ver ele e viagem perdida – disse Goreti.
- O doutor quer ver também?
- Sim! Seria uma honra! – responde o detetive.
     Dona Sônia se afasta com os convidados, mas antes pede pra que o marido avise ao patrão que tem visitas.
     O detetive ficou impressionado com a residência. Não entraram pela porta principal, o coronel Machado, que também é barão, deu ordens de mantê-la sempre fechada. Entraram por outra passagem lateral e foram dar no quarto dos fundos.
     Não demorou muito e Seu Mário avisou que o coronel Machado está na sala e quer falar com eles. Disse também que era pra esposa preparar um refresco.
- Então está certo. Vá com eles e chego já com o refresco.
     Seu Mário acompanha o casal até a sala de visitas. Mas uma vez o detetive fiqua impressionado com a riqueza do lugar. Ele contemplava um luxo em pinturas, porcelanas, tapetes e artefatos curiosos e exóticos.
- Vejo que o doutor aprecia uma boa pintura – Uma voz calma e pausada chama outra vez a sua atenção.
- Bom dia coronel Machado. Esse é o Doutor...Doutor – Goreti se enrola dessa vez.
- Doutor César, coronel – o detetive adianta o braço e aperta a mão do coronel. Goreti olha de lado estranhando o nome.
- Um nome imponente para um médico.
- Qual a sua especialidade?
- Clínico geral senhor.
- Ah! Muito bom. Pretende ficar aqui na nossa humilde Cova da Onça?
- Na verdade estou de passagem. Venho apenas identificar alguns casos de dengue na região. Já estou retornando para o Recife.
- Recife! Uma bela cidade. Quando tenho oportunidade de ir, gosto de ficar um tempo no cais do porto admirando os navios.
     O detetive olha rapidamente para Goreti.
- É um bom lugar, sem dúvida.
- E você menina bonita, Goreti não é? Lembrei de você na hora que vi.
- Sim coronel.
- Onde anda Mané Coisa Lesa?
- Como?
- O coronel Manuel – Ele deixa sair um leve sorriso.
- Ah sim! Está bem. Na verdade ele nem sabe que estou aqui. Vim apenas acompanhar o Doutor...César – disse ela olhando jocosamente para o detetive Augusto, pois sempre achou que esse era o seu nome principal e não, César.
     O detetive quase deixou escapar um sorriso, mas a presença do coronel Machado era naturalmente intimidante, deixava qualquer um cabreiro, não por se tratar de um sentimento ruim ou medo, mas sim pela atmosfera imponente de homem culto, estatura baixa com um bigode curto lembrando certo ditador nazista, mas de bons e moderados gestos e, a julgar pelos objetos de arte da casa, muito viajado.
- Em Recife existem muitas obras de arte que também gosto de visitar. O detetive já teve oportunidade de conhecer o Museu do Estado?
- Sim umas duas vezes coronel. De fato, um lugar ímpar. Mas com todo respeito, aqui causou mais emoção aos meus sentidos.
     O coronel Machado gostou do comentário polido e reconheceu no falso médico um homem bastante gentil.
- Tudo isso é fruto de minhas viagens e de meus ancestrais pelo mundo. E o Coronel Manuel Rufão me acompanhou em algumas delas. Aqueles quadros são dos meus pais e avós. Aquele ali foi do primeiro a receber o título vitalício de Barão de Pau Amarelo, no qual cheguei a herdar. Mas com o fim da monarquia isso não vale muito.
- Que interessante! – Disse o detetive.
- Muito – respondeu o coronel Machado quase em sincronia com Seu Mário que tudo escutava e, em particular, aprendeu a imitar essa resposta do seu patrão.
     Dona Sônia chegou com a jarra de refresco de cajá e alguns biscoitos. Fez sinal para que Seu Mário se retirasse. Sempre achou o marido abelhudo demais.
     Depois de degustar os biscoitos e o refresco, o coronel Machado conversou um pouco sobre suas viagens, aventuras e antepassados. Mas quando chegou na parte que se tratava do seu filho, seu semblante modificou em dor como se crucificado estivesse.
     O detetive Augusto e Goreti nem sequer pensaram em se atrever a perguntar sobre o assunto, mas alguma confiança e alento a visita deles lhe proporcionou. Estava na frente deles um homem fragilizado pela tragédia familiar e que de súbito faz uma revelação:
- Estou me preparando para vender o engenho e tudo que existe nele.
     O detetive e Goreti se olham e ficam aguardando mais detalhes em silencio.
- Depois que meu filho se foi não tenho mais ânimo nessa vida.
     Estava mais que evidente que a condição de médico do detetive Augusto facilitou o desabafo do coronel. A visita estava mais proveitosa do que se esperava e o detetive tinha que agir sem levantar suspeitas.
- Entendo perfeitamente senhor coronel. Eu faria o mesmo.
     O dono da casa olha para ele com mais simpatia ainda.
- Apenas teria cuidado, como tenho certeza que o senhor está fazendo, de que o próximo e feliz proprietário tenha a necessária sensibilidade para zelar por esse legado – completa o detetive.
- Para zelar eu até acho que ele tenha, mas a sensibilidade é algo que não se pode esperar de todo mundo.
- Desculpe, mas eu não compreendo.
     O coronel sorrir com descrição.
- Nem poderia. Eu falo do homem interessado em comprar tudo isso. É um velho amigo e conhecido meu. Seu nome é Nirvaldo, é o administrador dos meus negócios. Ele é um admirador antigo desse engenho e tenho certeza de que cuidaria de tudo, pois acha bonito, mas não conheceu na alma tudo o que esse patrimônio representa.
- Falta-lhe a sensibilidade – arrisca o detetive com mais segurança.
- Sim meu jovem médico, exatamente isso. Falando nisso qual é a sua idade?
- 30 anos senhor – responde ele.
- Só dois anos mais velho que eu – responde Goreti rindo.
- Bom! Fique a vontade em procurar os focos de dengue, os moradores e funcionários são apenas os que vocês viram até agora.
- Obrigado Coronel, mas o que vimos aqui já foi o suficiente.
- Como queira e... Doutor César! Antes que me esqueça, poderia examinar Dona Sônia e o marido antes de ir?
- Pois não coronel. E aproveitando a ocasião, o senhor também não gostaria de uma avaliação? – O detetive se arriscou ao extremo, causando uma reação em Goreti.
- Eu acho que o coronel está muito bem – disse ela.
- Um pouco mais triste do que outros dias – responde ele – Mas a visita de vocês me fez bem. Tenho preocupação com meus últimos empregados. Depois que eu vender pretendo morar na Europa e eles ficarão aqui, vai fazer parte do acordo de compra e venda.
- Vou examiná-los agora mesmo coronel, pode ficar tranquilo.
    Goreti aproveita a oportunidade para dar um abraço no coronel, coisa que nunca fez. Mesmo discretamente e quase imperceptível, ela notou o motivo da melhora dele, olhando suas lindas pernas e a saia rasgada, mas foi cavalheiro suficiente em não perguntar o que houve.
- Parece um abraço de despedida?
- O Senhor disse que vai vender o engenho e eu estou indo de volta pra casa.
- É uma pena.
- Também acho. Da próxima vez que eu visitar o padrinho, aqui já deve está com outro dono. Como é mesmo o nome dele?
- Nirvaldo.
- Isso mesmo! Nirvaldo. Ele é administrador de terras é?
- É advogado, mas resolve coisas assim também. Tem um escritório no Recife. Por quê?
- É que lá na minha cidade é difícil achar profissionais assim.
- Entendo. Se quiser tenho um cartão dele aqui.
- O coronel me faria um grande favor.
     O dono da casa vai até uma escrivaninha e retira um cartão de visitas.
- Aqui está. Quem sabe você não arruma bons negócios? O Nirvaldo gosta de pagar comissão.
- Quem sabe? Estou parada e sem emprego. Obrigada coronel.
- Não há de que menina.
     Ela olha para o detetive e diz sensualmente:
- Vamos Doutor César Augusto?
     Goreti e o detetive se retiram da sala e vai até o terraço. Ela mostra o cartão para ele:
- Nirvaldo Administração e Advogados. Você é incrível Goreti e pode ter certeza! Você não está mais desempregada. Quer dizer, você e suas belas pernas.
- Você viu o olhar dele? Que véi safado!
- Não vi, quer dizer, o meu olhar se encontrou com o dele.
- Como é?
- Ele ficou com a sua perna direita pra olhar e eu com esquerda.
- Dois safados!
- Não se esqueça do Seu Mário.
- Tá inventando?
- O pobre ficou plantado na sala de butuca ligada, nem piscava. Se não fosse Dona Sônia...
- Então são três safados!
- Não diga isso! Somos homens decentes, é da nossa natureza de macho olhar, sabe disso.
- Sei! – disse ela com desdém.
- Também com um par de pernas dessas?
- Nirvaldo vai receber uma visitinha em breve – disfarça Goreti.
- Pode ter certeza disso – o detetive continua olhando as pernas dela.
- Agora vá na cozinha prescrever um remedinho para Dona Sônia e o marido!
- O que vou fazer? Não sou médico lembra? – disse ele cochichando.
- Sei lá? Tome o pulso, olhe nos olhos, mande-os esticar os braços. Avalie os dedos e as línguas.
- O que?
- Faça qualquer munganga e recomende evitar comer gordura e se tiver dor, tomar um analgésico com chá de folha de laranja antes de dormir.
- Ei mocinha! O médico aqui sou eu viu?
- É disso que tenho medo! Não vai matar eles! Faça o que eu disse. Foi o que o médico recomendou para Dona Cecília, deve servir pra eles também.
- Tudo bem. Volto já.
     Pouco tempo depois, o detetive Augusto e agora, sua inteligente assistente Goreti, retornam para o engenho do coronel Manuel. No carro ela só recebe elogios e começam a elaborar um plano bem feito para chegar até o Nirvaldo.
- Não vejo a hora de retornar ao Recife – disse ele.
- Para o nosso plano dar certo, preciso de roupas novas e algumas joias.
- Pode ser roupas afolosadas?
- Você deve está de brincadeira comigo doutor César Augusto!
- Só Augusto, por favor! – sorrir o detetive.
- Então pare de me azucrinar o juízo homi e dirija direito.
- Goreti falo sério! Não existe investigação que se sustente com você usando essas roupas. Você já seria linda toda coberta com uma burca árabe, imagina com roupas sensuais.
- Nada a ver.
- Tudo a ver! A gente não aguenta, você nos leva ao limite – sorrir.
     Goreti não resiste e convida o detetive para uma última visitinha na cachoeira onde começou a safadeza.

Capítulo 3
A Veneza Brasileira

     Os dias em que permaneceu no engenho e no pequeno município de Cova da Onça, que juntando a população total não passavam de cinco mil habitantes, deixou o detetive Augusto saudoso da sua cidade natal.
     Como havia prometido, Goreti foi com ele ao Recife, resolver o caso do filho do coronel Machado. Dessa vez não foram de ônibus, preferiram viajar de trem.
- O coronel ficou triste com a nossa partida – disse ela.
- Júnior não apareceu. É isso que lhe deixa triste - responde o detetive.
- Tem razão. Mas acho que ele está vivo.
- O que te dar tanta certeza?
- Ninguém tem motivos pra fazer mal a ele.
- É um bom motivo. Falando nisso, que tipo de roupa você quer que eu compre? E as joias precisam ser verdadeiras?
- Vou me disfarçar de madame rica, interessada em comprar algum engenho no interior.
- E quem será essa misteriosa madame?
- Uma mulher rica e viúva de passagem pelo Recife.
- Explica melhor.
- Achei faz algum tempo esse recorte de jornal falando de uma mulher cujo marido havia falecido de causas naturais. Olha só a foto dela.
     O detetive estica o braço para ver o recorte quando tudo fica escuro devido à passagem do trem por um curto túnel. Quando volta ao normal ele arregala os olhos.
- Minha nossa! Onde você achou isso? É a sua cara!
- Mas ou menos, sou mais magrinha – responde ela – leia a matéria que está grifada.
- “A viúva do engenheiro, a jovem Melissa Silmarem, pretende voltar para o Recife de onde nasceu e investir em novos negócios” – ler o detetive – “Mas não se sabe ao certo quando isso vai acontecer.”
- Então?
- Você vai querer se passar por essa mulher para chegar até o escritório do Nirvaldo?
- Momento perfeito.
- Mas se a verdadeira Melissa aparecer?
- Não vai?
- Como tem tanta certeza?
- Um passarinho me contou que ela está em San Carlos de Bariloche esquiando com um novo pretendente. Não vejo razão de vir ao Recife.
- E esse passarinho quem é?
- O namorado rico da amiga de uma prima que está divorciada e passeando na Argentina.
- Parece quente.
- É quente! Pode confiar.
- Se não for uma informação certa vamos entrar numa fria.
- Só precisamos de uma lista de engenhos que estão à venda, só isso. Eu vou lá, digo o que quero e marco outro dia. Ele vai reconhecer e acreditar que sou a Melissa. Vou dar um tempo para ele confirmar e ligar para mim. Falando nisso, preciso de um celular e um número novo.
- Tem mais alguma coisa faltando? Madame Melissa.
- Já que perguntou, preciso de um carro luxuoso com motorista e não me venha com essa cara, sei que o coronel deu carta branca pra gastar o que for necessário para resolver o caso.
- Tudo bem senhora. Vou providenciar tudo, menos o motorista, eu mesmo vou dirigir.
- Achei que diria isso.
- Não sei como essa encenação toda vai ajudar, mas é uma boa ideia para darmos um passo em direção aquele escritório – comenta o detetive.
- Qualquer informação ou detalhe é importante, temos que está de olhos abertos.
- Goreti, você pode até achar que isso é fácil, mas não é. Eles são homens espertos e até onde percebi são inescrupulosos e até perigosos...
- Pode ser, mas como você disse, são homens e disso eu entendo. Não vamos manter a farsa por muito tempo, só precisamos abrir um espaço.
- Deus nos proteja! Essa maluca vai aprontar!
- Confie em mim – Goreti sorrir.
     Ao chegar à cidade do Recife, eles vão direto para o apartamento do detetive Augusto. Eles sobem dois vãos de escada até chegar à porta.
- Não repare, não sou dado a luxos – disse ele.
- Já me conhece o suficiente pra saber que eu também não – responde ela.
     Ao abrir a porta, Goreti é convidada a entrar e se surpreende com a boa arrumação do ambiente.
- Gostei de ver detetive, tudo limpinho.
- Tem uma faxineira que vem duas vezes na semana e eu não sou muito bagunceiro.
     Ela anda devagar pela sala e abre uma janela deixando o vento entrar.
- Preciso ir ao banheiro tomar um banho demorado – disse ela.
- Tem toalhas limpas e sabonetes, a casa é sua. O quarto é logo ali a direita mas só tem uma cama de casal e um guarda roupa com muito espaço.
- Para mim está perfeito.
- Vou aqui em baixo no mercadinho fazer umas compras e volto logo.
- De jeito nenhum. Vai tomar banho comigo e depois vamos juntos fazer as nossas compras, de casa e de trabalho. Amanhã sem falta, preciso que resolva logo o que lhe pedi.
- Por que tanta pressa?
- Estarei num salão de beleza. Vou cortar e mudar a cor do cabelo, fazer as unhas etc, coisas de mulher.
- Ah não! Vai se transformar em outra mulher?
- Preciso de um novo visual. Quero o mesmo tipo de corte da Melissa.
- Acho que consigo tudo amanhã – disse o detetive entregando uma considerada soma em dinheiro para a parceira.
- Amanhã você só vai precisar cuidar do carro de luxo. Trocarei de roupa dentro dele e sairei mais deslumbrante que a verdadeira Melissa.
- Ainda acho tudo muito arriscado, mas vamos lá!
     No outro dia tudo estava arranjado. O carro, as roupas e as joias, tudo alugado ou comprado e feito na maior discrição como deveria ser. O detetive Augusto estava impecavelmente bem vestido como motorista particular, de bigode postiço e dirigindo um Master Deluxe 1941 de cor preta. Goreti ficou encantada quando viu.
- Uau! Que lindo!
- Obrigado! Sei que fico bem de bigode.
- Estou falando do carro.
- Ah sim! É um modelo antigo muito usado para casamentos. Não saiu barato.
- Pensei em algo mais moderno mas...tem espaço suficiente para eu trocar de roupar.
- Tenho algo em mente. O Nirvaldo é colecionador e gosta de carros antigos, talvez ele não veja, mas sempre tem motoristas aguardando seu patrão em algum lugar, posso me infiltrar entre eles e saber de alguma coisa.
- Apagou os rastros? Ele é esperto, pode investigar.
- Tomei minhas precauções. Aluguei com documentos falsos e troquei a placa. Não é certo fazer isso, mas é por uma boa causa. Nada que ele possa nos relacionar a locadora de automóveis e por coincidência, andei pesquisando imagens da senhora Melissa Silmarem e descobri seus gostos por esses veículos.
- Perfeito. Estamos indo muito bem? Agora vamos dar uma volta que preciso trocar de roupa.
- Como queira madame.
     O carro segue do bairro de Santo Antônio em direção à zona sul e retornando pelo Recife Antigo, passando pelo Marco Zero e Forte das Cinco Pontas, Avenida Agamenon Magalhães e finalmente chegando na Avenida Conde da Boa Vista. Nesse tempo, Goreti conseguiu trocar de roupa e se maquiar com destreza atiçando a curiosidade do detetive que escutava no rádio o locutor anunciando uma música de nome “Recife manhã de sol”.
- Adoro essa música dar pra altear um pouco mais? – pediu Goreti, no que o detetive obedece e ela canta com uma bela e afinada voz:
“Vejo o Recife prateado.
À luz da lua que surgiu.
Há um poema aos namorados...”
- Essa música é linda – disse o detetive.
- Essa vai ser a nossa música – disse ela toda feliz.
- Sabe daquilo que falei que não sou dado a luxos? – pergunta ele.
- Sim. O que tem?
- Acho que eu não sabia o que estava dizendo – sorriu – Esse carro, uma mulher linda no banco de trás cheia de joias e com uma voz linda...
- Acho que pode me incluir também – disse ela fazendo pose e se divertindo.
     O que o detetive Augusto não sabia, além de que Goreti cantava divinamente, é que o Master Deluxe 1941 chamaria tanta atenção por onde passava, principalmente naquele horário da manhã.
     Um repórter autónomo conhecido pelo nome de Vitor Caré e um assíduo frequentador de um quiosque de café expresso na Avenida Conde da Boa Vista, viu o perfil de rosto de Goreti quando ela passava.
- Não é possível! Melisa Silmarem? – disse ele em voz baixa travando a xícara de café e quase queimando os lábios.
     Os furos de reportagem que lhe deram fama duvidosa estavam em exatamente caçar celebridades. Ele ficou eufórico e agradeceu aos céus:
- Para onde ela está indo? – pensou ele deixando uma nota em cima da mesa, ajeitando a alça da maquina fotográfica no ombro e subindo rapidamente em cima da sua lambreta branca de faixa azul clara. Ele foi quase atropelado por um trólebus, um daqueles ônibus elétricos e passou raspando num vendedor de pipocas que ficou arretado da vida.
- Tá doido seu avexado!
    O sinal fechou. E Vitor acompanha o carro com a vista e esticando o pescoço. O movimento do carro desacelera, ligando a seta e entrando num estacionamento particular. Ele fica nervoso por conta da demora do semáforo e do engarrafamento, principalmente, por que não precisava ir de lambreta. O carro havia passado apenas duas ruas e entrou.
- Um empresarial de negócios? Só pode ser ela mesma!
     O afobado repórter para a lambreta em local proibido e nem ver o guarda passando uma canetada na multa. De longe, observa o motorista abrindo a porta e oferecendo a mão para bela ricaça sair do carro.
- Nossa! A viuvez lhe fez bem, que Deus me perdoe – ele se benze clicando uma foto - Ela está mais bela do que antes.
     Sem perder tempo, ele corre o máximo que pode. Não queria abordá-la de supetão, queria saber o motivo dela está no Recife, pois ele ouvira falar que ela estava na cidade de Encarnacion, precisamente na praia de San Jose, no Paraguai.
     A grade de ferro sanfonada de um antigo elevador se fecha com ela dentro. O motorista vai para o estacionamento onde existe um reservado para esses profissionais. Ele ainda grita pedindo para segurar o elevador, mas ninguém lhes dar ouvidos. O máximo que ele pode descobrir é o andar em que ela parou, pois estava sozinha.
- 3º andar!
    Ele vai à recepção e procura se informar.
- Bom dia! Poderia me informar qual empresa funciona no 3º andar?
     O porteiro não responde, mas aponta um grande painel com informações correspondente a todos os dez andares do prédio.
- Ah tá! Obrigado – Ele volta para chamar o elevador apertando o botão várias vezes.
- É assim mesmo!          Ele demora – disse o porteiro – só precisa apertar uma vez. O elevador não está nem um pouco preocupado com sua pressa.
     O repórter não se deixa intimidar:
- É uma emergência!
     O porteiro aponta a escada, ele aceita a sugestão, afinal, são apenas três andares, mas que ao subir, pareciam vinte.
- Gente mais doida! – pensa o porteiro.
     Ainda bastante ofegante, o repórter tenta ajeitar a máquina fotográfica e apalpa os bolsos lembrando que deixou o micro gravador em casa.
- Preciso parar de fumar – disse ele confirmando o letreiro com o nome da empresa que ocupava todo aquele andar: Nirvaldo Administração e Advogados.
     Vitor percebe que aquele escritório é muito grande e precisa ser discreto em achar a “Melissa”. Por sorte, ele consegue evitar a recepção driblando uma secretária. A maioria dos funcionários parecem muito concentrados no trabalho e não notam a sua presença. Esperto, o repórter procura se ambientar e senta num confortável sofá. Com uma revista aberta sob o rosto, ele procura identificar onde sua “presa” se escondeu.
     Após alguns minutos, ele consegue localiza-la no que foi facilitado pela ambientação do escritório, cujas divisórias são de vidro. Ele observa um homem maduro beijando a mão dela, numa clara demonstração de satisfação e oferecendo uma cadeira.
- Senhora Melisa Silmarem. É uma honra, queira sentar-se, por favor.
- Obrigado senhor...
- Nirvaldo, seu criado. Aceita uma água ou café?
- Uma taça de champagne caia bem nesse calor recifense.
- Posso providenciar. Normalmente bebemos champagne quando comemoramos alguma coisa.
- Então por enquanto prefiro não beber nada – disse ela altiva – mas providencie mesmo assim, poderemos comemorar caso você consiga fechar um negócio para mim.
- Do que se trata?
- Não sei como as notícias correm por aqui, mas faz alguns meses que fiquei viúva.
- As notícias chegaram sim. Meus sinceros sentimentos.
- Pois bem, vou direto ao assunto. Gostaria de comprar um engenho – disse ela de chofre.
- Um engenho?
- Isso mesmo, um engenho bem conservado que não seja “cheguei”.
     Nirvaldo se adianta na cadeira se mostrando interessado e passa a palma da mão sob a boca como se quisesse limpar algo.
- A senhora sabe que investir em cana de açúcar já não é um bom negócio como antigamente.
- Vou investir em turismo rural.
- Turismo?
- Isso mesmo. Na Europa eu conheci muitos casos de sucesso, além de que, existe uma grande curiosidade estrangeira de vivenciar experiências em nosso país.
- Soube de alguma coisa assim lá no sul e alguns investimentos em Pernambuco. Acho que li numa revista. Bom, não é um tipo de negócio que normalmente fazemos mas...
- Só consiga o engenho, dos negócios cuido eu – disse ela secamente sem perder o charme.
- Bom, não é fácil conseguir engenhos assim rapidamente. Preciso de algumas informações, por exemplo, em que região, até quanto seria o valor e infraestrutura local. Sem falar que engenhos são difíceis de serem vendidos, são passados por herança.
- Quero um engenho na Zona da Mata, que ainda tenha alguma cana, matas conservadas e que possa criar atividades alternativas.
- Que tipo de atividades seriam essas?
- Ainda não sei. Poderia criar abelhas e produzir mel, cultivar flores tropicais ou algo do tipo.
     Nirvaldo mais uma vez se remexe na cadeira.
- Poderia cultivar peixes. Tilápias por exemplo, é um excelente negócio e tem demanda de mercado.
     Fisguei ele! – pensa Goreti feliz da vida e fazendo uma cara de surpreendida com algo de bom gosto.
- Que massa! Gostei da sugestão. Acho que posso reconsiderar a questão da gestão dos negócios com o senhor.
- Como queria senhora, é o que fazemos de melhor. Negócios são criados pra dar dinheiro e lucros.
- Era o que meu finado dizia.
- E quanto ao valor do engenho?
- Na verdade tenho pessoas de minha confiança em outros estados procurando boas propostas de engenhos e fazendas. Eu queria que fosse aqui, na minha terra de nascença e que fosse um engenho.
- Entendo perfeitamente. Tenho algum prazo para isso?
- Sim. Até amanhã.
- O que?
- Sou uma mulher ocupada senhor Nirvaldo. Vim dos cafundós do Judas até aqui no Recife pra matar a saudade de comer um bom cuscuz com galinha guisada no almoço lá no Mercado de São José.
- Entendo senhora.
- E ainda comer uma deliciosa tapioca na Sé de Olinda vendo o por do sol. Seu escritório foi bem recomendado por outro lá em São Paulo e aqui estou.
- Lembra quem recomendou?
- Não sei quem foi. Um dos meus administradores que disse.
- Ah tá. Muito me honra a indicação.
- O senhor tem um belo escritório e boa reputação senhor Nivaldo – disse Goreti olhando tudo ao redor – Sei que a missão é muito difícil, mas lhe garanto que estou disposta a pagar bem e o que for preciso por um engenho aqui em Pernambuco.
- Verei o que posso fazer – disse ele – E como faço para lhe avisar?
- Uma caneta e papel, por favor.
- Aqui está.
     Goreti escreve o número do telefone celular e entrega ao fascinado Nirvaldo que não tira os olhos dela.
- Ligarei o mais rápido possível.
- Espero que sim. Se o senhor conseguir esse engenho até amanhã, prometo que falaremos de negócios num jantar.
- Isso seria maravilhoso – disse ele – E com direito a champagne?
- Quantas garrafas aguentarmos beber – disse ela discretamente e com charme.
- Então pode marcar o jantar – disse ele confiante.
     Vitor, o repórter, estava impaciente. Precisa criar algo que aproximasse ele daquele escritório. Rapidamente se levantou e voltou à recepção e se aproximou.
- Bom dia.
- Bom dia senhor – disse uma simpática jovem que não tinha ainda notado a presença dele.
- Sou repórter e estou interessado em fazer uma matéria sobre investimentos em Recife.
- Como posso ajuda-lo?
- O administrador daqui é o senhor Nirvaldo não é?
- É sim.
- Posso agendar um encontro com ele?
- Acho que não precisa, ele já está vindo. Por que não fala com ele agora?
     O dono da empresa vem acompanhando a bela e misteriosa Melissa até a porta do elevador.
     Eles se despedem:
- Agradeço a visita senhora. Ligarei em breve – disse Nirvaldo.
     Melissa esboça um leve sorriso e olha rapidamente para Vitor.
     A porta do elevador se fecha e os dois homens parecem que estão anestesiados com a visão e o aroma do perfume daquela linda mulher. A recepcionista pigarreia a garganta e os acorda do curto transe.
- Senhor Nirvaldo. Esse repórter deseja falar com o senhor.
- Pois não?
     Eles apertam as mãos.
- Meu nome é Vitor Caré e precisava de um minuto do seu precioso tempo.
- Do que se trata?
- Uma matéria sobre investimentos e negócios no Recife. Seria do seu interesse? É que pretendo inaugurar uma coluna no jornal para tratar de assuntos assim, acredito que seria um bom negócio para a sua empresa ser a primeira a fazer comentários.
- Parece ótimo! Vamos ao meu escritório conversar mais um pouco. Aceita um café ou água?
- Água seria ótimo. Mas não querendo parecer invasivo, aquela bela senhora não seria Melissa Silmarem?
     Nirvaldo sorri orgulhoso.
- É sim. Vocês repórteres são rápidos hein!
- Desculpe? Não entendi.
- Seguiu ela aqui apenas para ter certeza não foi?
- Até que poderia se fosse verdade. Nem imaginava que ela estava por aqui.
- Relaxa. Estou brincando. Nem eu sabia. Ouvir dizer que ela estava passeando na cidade de Paramaribo no Suriname.
- Foi o que escutei também – disse Vitor se garantindo que não estava tão mal informado sobre celebridades e lamentando não ter conseguido seguir a Melissa.
     Sem perder mais tempo, Vitor acompanha Nirvaldo até a sala dele e por lá fica por quase 30 minutos. Ele tentou descobrir alguma coisa, mas não tem sucesso.
     Já com o carro em movimento, Goreti pergunta ao detive Augusto como foi com os motoristas.
- Foi tudo bem. Conheci um senhor que trabalha no mesmo prédio que se lembra de um Studebaker Champion 1942 de cor preta.
- Seria o de Nirvaldo?
- Aposto minha vida nisso! E como foi lá em cima?
- Foi tudo perfeito. Ele fisgou a isca e para não perder um jantar comigo, vai oferecer o engenho do coronel Machado. Você tinha razão, ele vai comprar o engenho e tentar vender para Melissa por uma baba.
- Não lhe disse? O cabra é esperto.
- Mas no final aconteceu um imprevisto.
- Coisa séria? Ainda temos tempo de desistir dessa loucura.
- Encontrei um repórter daquelas revistas de fofocas. Ele reconheceu Melissa e por pouco não segurou a grade do elevador quando eu estava para descer.
- Se ele publicar que Melissa está no Recife vai causar um rebuliço danado.
- Acho que ele não vai se queimar de cara. Parecia um tipo curioso que gosta de investigar até o fim.
- O que ele fazia no escritório? Não me diga que tenho um concorrente de profissão?
- Boa pergunta. Acho que estava me seguindo. Deve ter me visto na rua.
- Paparazzos! Sempre tem um na esquina. E agora? O que faremos?
- Devolva o carro imediatamente. Ele é lindo, mas chama muito atenção. Amanhã vou ao encontro com Nirvaldo de taxi.
     O detetive quase freia em cima de outro carro:
- O que? Com aquele buliçoso?
- Avalie só! Agora vou ter que aguentar ciúmes de detetive? – disse ela debochando – Tome uma garapa pra se acalmar.
- Não nego e não engano que sinto. Mas não vou arengar com você por causa disso. Aquele homem é perigoso menina! E vão se encontrar onde?
- Num arrasta pé é que não é! – responde ela pegando um biliro na bolsa e predendo nos dentes enquanto ajeita o cabelo – alguma sugestão de restaurante chique e discreto?
- Vou pensar. Preciso abastecer o carro e devolvê-lo com o tanque cheio.
     O carro entra lentamente num posto de gasolina e o detetive chama um bombeiro que anda diferente por que é cangalha. Ao olhar pelo espelho retrovisor, percebe que Goreti já se transformou nela mesma.
- Onde está Melissa? – pergunta ele melhorando o humor.
- Arribou! Dá fé! Foi procurar um restaurante.
     O bombeiro se aproxima.
- Bom dia! Completar?
- Sim. Por favor.
     Enquanto procura a carteira para retirar um dinheiro, o detetive não percebe a aproximação de um esmolé.
- Moço! Me dar um trocado?
- Eita! Deixa eu ver visse?
     O bombeiro ver a situação e reclama:
- Ei boy! Deixa de gréia! Pega o beco! Vai incomodar outro!
     O menino sai desconfiado e vai amucegar a traseira de um ônibus que sai desembestado.
     Quando o carro se aproxima da rua onde o detetive Augusto mora, ele para o carro e diz para Goreti seguir por um beco.
- Pode ir tranquila e no final vire a esquerda que vai dar na entrada do prédio.
- Para onde você vai?
- Entregar o carro o mais rápido possível e reservar um restaurante para Melissa.
- Vai almoçar comigo?
- Não vai dar. Vou até o Recife antigo resolver as coisas e almoço por lá mesmo. Nesse tempo fique descansando e se prepare mais cedo para o jantar. Assim que chegar em casa reserve um taxi.
- Tudo bem, mas não se atrase. Vou a esse encontro nem que seja sozinha.
- Vou passar o resto da tarde observando os movimentos do Nirvaldo mas, se houver atraso, o dono do restaurante se chama Jairo.
- E onde fica?
     O detetive entrega um papel:
- No Recife Antigo.
- Não marque muito tarde. Não é um jantar romântico.
- 19 horas está bom.
- Perfeito.
     Enquanto isso no escritório, o repórter Vitor não consegue uma brecha de informação útil com Nirvaldo. Após uns 20 minutos, ele se levanta e arroxa no ombro a fivela da alça da máquina fotográfica. Apertam as mãos e acertam outro dia para discutirem a matéria. Vitor segue para seu apartamento e escritório.
     A secretária retorna para o escritório trazendo alguns papéis para Nirvaldo assinar e ele pede para trazer a pasta da procuração de compra e venda do Engenho Pau Amarelo. Depois, liga para o coronel Machado avisando que não havia conseguido compradores com o perfil que ele queria e resolveu ele mesmo comprar o engenho. A secretária retorna com a papelada, ele assina, tampa a caneta e se encosta sorrindo na cadeira giratória.
- O senhor está bem? – pergunta a secretária que nunca viu o chefe sorrindo.
- Estou ótimo! Faça uma ligação para o gerente do meu banco, preciso autorizar uma transferência.
- Sim senhor. Mas alguma coisa?
- Quero ficar sozinho. Cancele os compromissos dessa tarde e marque para amanhã.
- Mas senhor! Tem uma reunião importante com os representantes do condomínio que vai ser desapropriado.
- Invente qualquer coisa. Só vou atender a ligação do banco e pronto. Não quero ser incomodado.
     Nirvaldo se levanta e fecha as persianas de sua sala. Vai em direção a um armário, retira uma garrafa de uísque e prepara uma dose. Volta para a cadeira giratória e degusta a bebida com prazer. Minutos depois atende o telefonema do gerente do banco e transfere uma quantia para a conta do coronel Machado com menos da metade do que vendeu para Melissa Silmarem.
     Em seu apartamento, Vitor faz uma seleta lista de possíveis locadoras que poderiam alugar carros de luxo. Após a terceira tentativa consegue uma pista confiável e convence o proprietário a fornecer o nome e número de telefone de quem alugou o carro em troca de uma matéria exclusiva.
- Tem certeza que foi esse carro? – pergunta Vitor.
- Absoluta. Estava reservado para um casamento, mas foi devolvido.
- O que houve então?
- Não vai mais haver casamento, não disse a razão.
     O disco do telefone de Vitor começa a rodar e alguém atende do outro lado.
- Alô!
- Bom dia. Senhor Tenório?
- É ele.
- Aqui é da locadora de veículos.
- Pois não.
- É que tenho aqui um pedido de cancelamento e estou ligando apenas para confirmar. Tem certeza que podemos riscar seu nome da reserva?
- Pode sim. Vou ter que adiar para a semana que vem.
- Algum problema com os nossos serviços?
- De jeito nenhum! Seu serviço é ótimo. É que meu futuro genro tomou todas na despedida de solteiro e chegou na minha casa de cueca na mão e toda suja de batom. E pior, quem atendeu foi a sua futura sogra. O senhor é homem e pode imaginar a bagaceira né?
- Eita! A noiva não gostou!
- Pense na confusão! O pobre coitado teve à última noite de raparigueiro.    
- Então está certo senhor. Ficaremos aguardando a sua ligação.
     Vitor desliga desanimado mas, seu instinto de repórter fala mais alto. Do outro lado da linha, o detetive Augusto pergunta nervoso:
- E aí Jairo?
- Era ele sim, o repórter. Queria saber do carro.
- O bicho é desenrolado! – comenta o detetive.
- Mas quanto a isso nem se preocupe.
- E se ele ligar de novo?
- Só eu atendo esse telefone, o número do restaurante é outro.
- Ah que alívio. Agora só falta marcar o jantar.
- Vamos lá!
     O dono do restaurante e amigo de infância do detetive Augusto liga para o escritório do Nirvaldo para marcar o jantar encomendado pela senhora Melissa Silmarem. A secretária atende e diz que o patrão pediu para não ser incomodado. Jairo insiste e convence a jovem a pelo menos avisar do que se trata. Ela vai devagar em direção ao escritório e bate na porta morrendo de medo de levar um carão.
- Já disse que não quero ser incomodado! – grita Nirvaldo.
- Desculpe patrão, mas é do restaurante!
- Que resenha é essa?
- O jantar com a dona que o senhor conversou hoje de manhã.
     Nirvaldo dá uma carreira e abre a porta.
- Por que não passou pra minha sala?
- O senhor disse que não era pra chamar – disse a secretária encolhendo o pescoço dentro do ombro.
- É eu disse!
- Falou o que? Perguntou se o senhor aceita o convite para as 19 horas.
- Diga que aceito. Anote o endereço e quando eu sair me entregue.
- Sim senhor – disse a secretária toda encabulada, que confirma com Jairo.
     Do outro lado da linha os dois amigos comemoram.
- Então?
- Confirmou.
     O detetive Augusto junta as mãos.
- Jairo você é 10!
- Vou fazer de tudo pra deixar ela protegida e a casa vai está cheia.
- Alguma comemoração?
- Acertei de última hora com uma agência de viagens. Um grupo de terceira idade de norte americano estará desembarcando no porto no fim da tarde e depois virão direto para cá. Mas não se preocupe, reservei uma mesa estratégica que ficaremos de olho.
- Arretado! Vou fazer uma campana e venho para cá visse?
- Vou ficar tucaiando por aqui também.
     Nesse meio tempo, Vitor praticamente vendeu a alma ao diabo para conseguir informações sobre o verdadeiro paradeiro de Melissa Silmarem.
- Onde? San Carlos de Bariloche? Tem certeza?...Sei...Sei...Muito obrigado!
     O repórter encaminha o telefone para perto do gancho e erra o local. Ele pisca o olho rapidamente e acorda do transe:
- Se Melissa está na Argentina, quem é a fí duma égua que se passa por ela? E por qual motivo?  Mas Deus do céu! A danada é igualzinha! 
     O detetive Augusto retorna para o centro da cidade e fica do outro lado da rua observando a janela do escritório do Nirvaldo. Vez ou outra bota a revista na cara para disfarçar as suas intenções. Do outro lado da rua um senhor atravessa com cuidado e vai em direção a uma lanchonete e reconhece o detetive.
- Boa tarde senhor. Tá lembrado de mim?
     Ainda tentando disfarçar o detetive responde desconfiado:
- Ah! Boa tarde. Lembro sim...só esqueci seu nome.
- Damaceno.
- Isso! Como vai seu Damaceno.
- Vou bem obrigado. Está esperando alguém?
- Ninguém. Passando o tempo olhando a revista.
- Está de folga né?
- Hoje sim.
- Foi bom encontrar o senhor. Não deu tempo de lhe pedir uma coisa.
- Pode dizer.
- Aqui no meio da rua é ruim. Deixa eu lhe pagar um lanche?
     O detetive teve que aceitar o convite. Ainda era cedo para o Nirvaldo sair e da lanchonete até poderia ser mais confortável e discreto observar a saída do prédio. E ainda tem Seu Damaceno, que pode dizer novas informações.
- Vamos comer sim! Dizem que aqui tem um pastel muito bom.
     Eles se sentam e começam a conversar.
- Não perguntei seu nome.
- Augusto.
- Posso lhe chamar de você?
- Claro que sim.
- Queria lhe pedir para conseguir uma vaga de motorista numa dessas locadoras de carros antigos.
- Não gosta do seu emprego?
- Meu emprego é bom, mas só era interessante quando eu viajava.
- E o senhor viajou muito?
- Pelo nordeste viajei coisa pouca. Mas pelo interior do estado conheci muitas cidades.
- Homem de sorte. Mas por que não viaja mais?
- Primeiro pela idade e segundo por que tenho recordações ruins.
- Algo sério?
- Quando perdi minha esposa não quis mais viajar.
- Perdeu sua esposa?
- Na verdade ela desapareceu.
- Eu sinto muito.
- Eu também. Ela era uma mulher muito boa e inteligente. Trabalhava ali na frente, naquela farmácia – aponta o idoso.
- Ela era farmacêutica?
- Era ajudante do Seu Rui. Ela fazia o controle do estoque dos remédios e aprendeu muita coisa.
- E o que tem haver o desparecimento de sua esposa?
- É que eu estava viajando quando ela desapareceu.
- Entendo. Mas não foi culpa sua. Alguém sabe de alguma coisa?
- Ninguém sabe de nada. Isso faz mais de 20 anos.
- Faz um bom tempo. E nome de sua esposa qual é?
- Lourdes, mas todo mundo chamava de Dona Lourdinha.
- O senhor procurou a polícia?
- Seu Augusto eu fiz de tudo, mas ninguém sabia de nada. Já fiz tanta promessa pra Santa Rita de Cássia. Minha esposa era devota dela.
- Mas não é possível que ninguém tenha uma informação.
- Tem não senhor.
- Mas ela não tinha uma amiga mais próxima ou coisa assim?
- Coisa assim é pode até ser.
- Não entendi?
- Ela não tinha amiga próxima, a não ser uma comadre de casamento que na verdade é prima dela. Mas as meninas do drink sempre a procuravam pra comprar remédio pra doença venérea ou quando tava de boi, você sabe como é: com a fita vermelha.
- Sei.
- Algumas ficavam chateadas com ela, mas logo depois perdoava.
- Mas por quê?
- Ela reclamava quando elas tomavam remédio pra abortar. Lurdinha dizia que não era remédio era veneno e que não era aborto era assassinato.
- É uma situação difícil.
- É mesmo. Quenga doente ou com filho é problema. Tinha até uma nesse tempo que já chegou com um menino, mas depois levaram ele. Coitado aquilo não era lugar pra criança.
- Não é mesmo.
     Entre uma conversa e outra o detetive levantava o olhar para a rua, mas precisamente na portaria do prédio. Numa dessas olhadas ele ver Nirvaldo saindo mais cedo e todo arrumado entrando num carro sozinho e conversando com outro homem.
- Está vestido para um encontro – pensou ele – Mas ainda é cedo.
     O senhor Damaceno volta ao assunto do emprego.
- Então posso confiar no senhor?
     O detetive não escuta direito.
- Você está bem? Parece meio avoado – o idoso olha para a rua.
- Vou indicar seu nome na locadora.
- Eu agradeço. Mas o que tanto você olha?
- Ah! Não é nada e que achei alguém parecido com um amigo.
     Seu Damaceno olha para a rua de novo e ver o Nirvaldo saindo e dirigindo um carro.
- Não é Seu Nirvaldo é?
     O detetive engole seco:
- Quem?
- Ah deixa pra lá. Uma pessoa legal como você não teria um traste daquele como amigo.
     O detetive pensou em ligar para Goreti, mas sabia que ela não sairia dentro do horário, tinha algum tempo. Foi quando resolveu se interessar pelo assunto do Seu Damaceno em relação a Nirvaldo.
- Não o conheço. Quem é ele?
- É um homi de negócios. Ficou muito rico à custa dos outros.
- Ele fez algum mal ao senhor?
- Não me ajudou quando precisei achar a minha esposa.
- O senhor trabalhava pra ele?
- Era motorista dele, mas faz muito anos. Ele tinha um belo Studebaker. Eu adorava dirigir aquele carro, mas nem isso ele deixou mais, me demitiu na mesma semana que Lourdinha sumiu. Fiquei arrasado e quase me entregava de vez na bebida.
- O senhor era motorista dele...como é mesmo o nome?
- Nirvaldo. Seu Nirvaldo.
     Alguma coisa estava acontecendo ali. O detetive Augusto olhou com surpresa para o senhor Damaceno que entendeu a expressão dele como uma decepção. Voltou a olhar para Nirvaldo e viu ele entregando algo para o outro homem.
- E tem mais! Acabou com a única amizade que eu tinha, quer dizer de Lourdinha. Uma das quengas, aquela que tinha um filho que levaram.
- O que tem ela?
- Nirvaldo mandou a dona do drink demitir a mulher. A pobre coitada foi a única que olhava pra mim e tinha pena.
- E por que ele fez isso?
- Sei lá! Parece que ele tinha alguma coisa com ela. Nunca perguntei a minha mulher.
     O idoso continua a relatar seu sofrimento com o desaparecimento da esposa, tira do bolso uma foto antiga e mostra para o detetive. Ele olha rapidamente para a foto e volta o olho para a rua e ver que o carro de Nirvaldo liga a seta e sai pela direita. Mas antes de retornar a vista para a fotografia, estica rapidamente o pescoço para frente e foca o olhar como se fosse uma luneta. Um homem numa lambreta, de boné e máquina fotográfica arrodeia suspeito uma banca de revista.
- O que? Não pode ser! É ele!
     O seu Damaceno vira a cabeça para a rua sem saber quem olhar na multidão:
- É o seu amigo?
- É sim! Está saindo! Preciso ir! Desculpe! Falo com o senhor depois.
- Espera um pedacinho! Tenho mais coisa a dizer! – grita Seu Damaceno – olhando o pastel intacto do detetive Augusto – Ele nem comeu a merenda.
     Depois de esbarrar num tabuleiro cheio de relógios de um camelô e quase derrubar um vendedor de amedoim, o detetive Augusto corre para seu apartamento. Ao se aproximar ver de longe Gorete, disfarçada de Melissa, entrando num taxi. Ele grita o máximo que pode.
- Ah! Não! Goreti!!! ....quer dizer Melissa!!!!
     O taxi segue adiante. Goreti resolveu sair mais cedo para evitar a contramão do trânsito no Recife Antigo.
- Acho que ela vai dar voltas e ficar em algum lugar perto! – Ele olha para o relógio – Perdi a hora! Aquele fotógrafo vai seguir Nirvaldo e vai achar Goreti.
     Ele pensa em pegar um taxi, mas naquela altura do campeonato já não dava mais. Um carro bateu numa moto no cruzamento e o transito se complicou.
- Goreti é uma mulher de sorte! Pensamento positivo! – diz ele, que resolve ir correndo e atravessando pontes até chegar ao extremo leste do Recife Antigo.
     Apesar do seu excelente estado físico, o detetive Augusto teve que parar e respirar um pouco.
- Só falta atravessar a última ponte e estarei lá - pensa ele ofegante.
     Com esforço, anda um pouco e para numa barraquinha e compra um copo de água mineral. Enquanto bebe, põe a mão no bolso da camisa e retira a foto que Seu Damaceno mostrou.
     O detetive olha com atenção e admira o rosto da mulher que tinha traços delicados. Ele foca o olhar, mas não consegue identificar. Vai no bolso da calça e retira uma pequena lupa e põe sobre a foto:
- Santa Rita de Cássia? Pera aí! É o mesmo colar de Dona Mocinha! Meu Deus! Será que?
     Após várias olhadas o detetive não tinha mais dúvidas, sempre foi bom fisionomista. A mulher da foto era a Dona Mocinha que conheceu em Cova da Onça. O detetive fica aos pulos e feliz da vida, orgulhoso de si mesmo. O destino havia colaborado e ele conseguiu resolver um caso que intimamente ele queria cuidar, mas não sabia por onde começar.
- Acho que tem muito mais coelho nesse mato – o detetive se lembra do que Seu Damaceno falou da criança de uma das prostitutas.
     Mas o tempo não ajuda, precisa correr. Ele agora foca no que é mais importante naquele momento, avisar a Goreti de que Nirvaldo está sendo seguido pelo repórter Vitor. Também precisava alertar Jairo no restaurante. Seu celular havia descarregado e depois de procurar por um orelhão encontra um telefone.
- Jairo! Sou eu!
- O que houve? Andou correndo?
- Escute! O repórter está seguindo Nirvaldo numa lambreta. Está de boné cinza, jaqueta marrom clara e uma máquina fotográfica.
- Certo! Onde você está?
- Estou do outro lado da Ponte Maurício de Nassau, chego já! Faça alguma coisa!
- Deixa comigo. Vou avisar aos meninos pra dar uma “chega pra lá” no cara! Ele já andou perturbando por aqui uma vez. E a bonitona?
- Já saiu! Tá na área! Cuide dela.
- Deixa comigo.
     Na hora marcada, Nirvaldo chega ao restaurante. Havia saído mais cedo para comprar um presentinho caro. Estava cheio de intensões com a Melissa Silmarem.
     Na porta é recepcionado por Jairo que o encaminha para uma mesa.
- Casa cheia hein? – disse Nirvaldo.
- É verdade senhor. São turistas americanos, mas são discretos e acredito que não vão atrapalhar seu encontro. Lá está sua mesa.
     Após se acomodar e admirar o ambiente rústico, um garçom se aproxima.
- Deseja alguma coisa senhor?
- Um uísque duplo.
     Ao voltar para o balcão, Jairo ver pela janela que um dos seus seguranças fazia um sinal de positivo e que já ameaçaram e botaram o repórter pra correr. Ele responde com um balançar de cabeça que entendeu. Um garçom se aproxima do ouvido dele e diz:
- Soube que o cara correu feito louco.
- Quem disse?
- Cheirosinho. O canário de uma muda só, o que reside sempre na mesma roupa.
- O mendigo?
- Ele mesmo.
- Humm – Jairo deixa passar um sorriso no canto da boca – Mas não bateram nele?
- Nada! O cara é fraco e frouxo. Gritou arretado da vida homenageando a santa mãezinha do segurança, mas quando ele bateu pé, o covarde saiu correndo e deixou a lambreta na esquina.
- Ameaçou chamar a polícia?
- E ele tá doido! Qualquer coisa digo ao meu primo delegado que ele tava perturbando! E ele sabe que é verdade.
- Muito bem. Vamos ficar atento naquele ali que também não é flor que se cheire – disse Jairo apontando com queixo para a mesa de Nirvaldo.

Capítulo 4
Entre Pontes e Becos

      No restaurante, os turistas idosos estavam bastante animados com a promessa de uma noitada diferente em terras tupiniquim. O ansioso Nirvaldo não parava de balançar a perna direita rapidamente num frenético tic nervoso. Ele retira e guarda várias vezes do bolso uma pequena caixinha com um belo anel de ouro com uma pedra solitária de brilhante. Ele deseja encantar a linda mulher com esse presente.
- Mas ela é milionária! Deve ter dezenas de anéis assim – um pensamento pessimista insiste em lhe tirar o humor.
     Finalmente um farol de carro ilumina a janela. O maitre se encaminha até a porta, confere rapidamente a gravata no reflexo de um quadro espelhado e ajeita um fio do cabelo.
     Lá fora, Nirvaldo observa Jairo, o gerente e proprietário do restaurante, pessoalmente abrindo a porta do taxi para Goreti, disfarçada de Melissa Silmarem, descer com grande estilo e sensualidade.
     Visivelmente empolgado com a beleza daquela mulher, Jairo faz um esforço para ser o mais discreto possível. Ao oferecer a mão, ela retribui estendendo a dela:
- Seja bem-vinda senhora.
- Obrigada senhor...
- Jairo. Meu nome é Jairo senhora, seu escravo – disse o gerente usando seu melhor charme.
     Quando a porta do taxi se fecha e esse vai embora, Jairo discretamente cochichou em seu ouvido:
- Sou amigo de Augusto. Estarei de olho em vocês.
     Com a mesma discrição ela pisca o olho confirmando que entendeu o recado.
     A mulher entra no restaurante refletindo uma postura de autoconfiança, um andar elegante onde os braços quase não se mechem dentro de um vestido preto bem comportado e saltos baixos. Imediatamente chama a atenção dos vovozinhos americanos, deixando-os de olhos duros:
- Look there at that woman! (Vejam aquela mulher!)
- My god! What amazing thing! (Nossa, que coisa impressionante!)
     Goreti sorrir educadamente. Ela exagera um pouco e tenta incorporar perfeitamente a mulher rica, educada e nascida de berço.
     Sem perder tempo, as atentas esposas vovozinhas já ensaiam alguns beliscões enciumados em seus garotos trelosos. Mas reconhecem a beleza da mulher brasileira.
     O gerente encaminha Goreti até a mesa reservada. Ao se aproximar, Nirvaldo se levanta e a cumprimenta. Depois afasta uma cadeira convidando-a sentar.
     Ela agradece e ele retorna para sua cadeira.
- A senhora está linda – disse ele sorrindo e quase gaguejando.
- Obrigada. Espero que não tenha se chateado com meu pequeno atraso.
- De forma alguma.
- É que o trânsito do Recife está cada vez pior.
- Uma cidade que cresce a olhos vistos – comenta ele – É o preço que se paga pelo progresso.
- Entendo – ela passa os dedos atrás da nuca – Esse restaurante foi muito bem recomendado, mas, não sabia que estaria tão cheio de estrangeiros.
- São americanos. Você os deixou de boca aberta sabia?
- Notei quando escutei o My God – ela sorrir deixando aparecer os brancos dentes.
- Também achei que fosse um ambiente mais discreto.
- Para tratar de negócios acredito que sirva, não acha?– Goreti ataca, tirando Nirvaldo do transe.
- Ah sim! Sem dúvida.
     Ele já estava bolinando os dedos na caixinha do presente e pensando se a noite sair como ele desejava a surpreenderia. O maitre se aproxima e ele pede um vinho tinto de excelente safra.
- Não se incomoda de beber um pouco antes de jantar comigo?
- Estaria disposta se você primeiro me der à boa notícia. Conseguiu meu engenho?
- Sim consegui. Ele é perfeito.
- Onde fica?
- Na zona da mata. Fica na área rural de Cova da Onça. É um lugar deslumbrante mas...
- Mas? – insiste ela.
- Seu proprietário não consegue se interessar mais por ele devido a uma tragédia familiar.
- E o preço é bom?
- O melhor possível.
- E como se chama o engenho?
- Pau Amarelo. Engenho Pau Amarelo.
- Precisa de reforma ou algo assim?
- Só está descuidado. A casa, o telhado e demais estruturas estão muito bem conservadas.
- Quem é o dono?
- Coronel Machado.
- Coronel? – sorrir Goreti – Ainda tem isso por aqui?
- É uma tradição rara.  Na verdade ele tem um legítimo título de barão. Pode imaginar que todo o engenho é de uma beleza singular, olhar para ele é como uma viagem no tempo.
- Fiquei curiosa. Algo mais?
- O coronel está vendendo tudo com porteira fechada. Além do conjunto casa grande, senzala e moenda, tem um pequeno inconveniente com uma capela que também jazem os restos mortais dos nobres ancestrais da família. Toda a mobília, quadros e equipamentos estão incluídos na venda.
- Que bom! Estou impressionada!
- Mas ainda não acabou. Lembra-se do investimento das tilápias?
- Sim, claro! Foi sugestão sua.
- Por coincidência já existem tanques implantados com peixes engordando. Não é interessante?
- Muito! – responde ela arregalando o olho teatralmente.
     Nirvaldo corrige a postura, ajeita a gravata e diz orgulhoso:
- A senhora teve muita sorte de ter encontrando alguém como eu. Não é fácil conseguir algo assim numa tarde.
- Como eu disse, o senhor foi muito bem recomendado. Mas vamos ao que interessa. Quanto custa esse engenho?
     Sem perder tempo, Nirvaldo retira um pequeno envelope do bolso e entrega a Goreti. Ela olhando para ele, abre e retira um documento de compra e venda com o valor. Fica alguns segundos em silêncio deixando-o a beira do desespero de ansiedade.
- Esse valor é mais alto do que eu esperava.
- É verdade senhora. Mas se conhecer pessoalmente verá que foi um preço justo. É só assinar e transferir o dinheiro para minha conta, quer dizer, para a conta da firma e o negócio é fechado.
     Nirvaldo retira algumas fotos do outro bolso do paletó e deposita sob a mesa. Goreti apanha e passa a olhá-la demoradamente.
- O senhor tem razão. É um belo engenho e atende as minhas ideias de investimentos turísticos.
- Então posso considerar um sim?
- Sua comissão está incluída nesse valor?
- Sim. Mas isso é com o coronel, ele receberá o valor já debitado a minha modesta comissão.
- O engenho é lindo, mas tem algumas melhorias a serem feitas e isso custa muito dinheiro. Sou rica mais não sou boba, deduza 40 % desse valor e fechamos o negócio rapidinho.
     Nirvaldo se decepciona um pouco, mas no fundo reconhece que o valor pedido foi uma extorsão deslavada. Mesmo reduzindo o valor, estaria fazendo um grande negócio.

- Fechado! Vou perder um pouco na comissão, mas como dizia meu velho pai: “Cliente é pra vida toda.”
- Muito bem! Então pode preparar a documentação final. Amanhã logo cedo meu procurador irá busca-lo.
- Sério? – Nirvaldo quase pula de alegria, estava vendendo o engenho e lucrando bem. Levianamente convenceu o proprietário de que ninguém pagaria tanto por um lugar distante e com baixa atividade lucrativa. Ele havia pensado em oferecer ao coronel Manuel Rufão, mas Nirvaldo disse que não seria uma boa aquisição para o amigo vizinho de longas datas.
- Meu tempo em Recife acaba em poucas horas. Pode conferir a transferência pelo celular?
- Estou acessando...perfeito! Depósito efetuado com sucesso! Parabéns!
- Obrigada. Meu avião parte para a Europa no início da madrugada. Meus advogados entrarão em contato com você e tomarão todas as providências finais sobre as pendências desse negócio. Não preciso dizer que se algum detalhe negativo foi omitido em nossa conversa o negócio será desfeito.
- Garanto que não. Toda a documentação está em ordem e disponível nesse cartório. O que não foi dito por completo foi a grande quantidade de beleza e recursos naturais da propriedade. Nesse caso, prefiro que seja uma surpresa para os seus olhos.
- Espero que sim. Podemos jantar?
- Ah sim! – Nirvaldo faz um sinal para o maitre.
     Sem eles perceberem e disfarçado de faxineiro, o detetive Augusto tudo observa de uma pequena janela da cozinha. Seu amigo Jairo confirmou que tudo estava indo bem e que não haveria motivos para se preocupar.
     O jantar é coroado com uma deliciosa sobremesa e ainda não satisfeito, Nirvaldo toma coragem e lamenta sobre a morte do marido dela e tenta insinuar as suas ideias de uma noite romântica com Melissa Silmarem, mas ela o deixa sem graça em se antecipar, dizendo que seu coração já se interessa por um jovem e bem sucedido empresário europeu.
     Definitivamente, Nirvaldo deixa de tocar na caixinha do anel. Não deveria sonhar tão alto em acreditar que poderia levar uma mulher como aquela para a cama.
- Já tirei o que ela tem de melhor...o dinheiro – pensa ele com segurança e já evidenciando seu desinteresse forçado por ela.
     Experiente, Goreti percebe a situação:
- Senhor Nirvaldo. Sou grata pela sua atenção e profissionalismo.
- Também lhe sou grato em procurar nossos serviços.
- Farei sinceras recomendações para alguns amigos sobre o seu trabalho.
- Eu lhe agradeço senhora.
- Se não se incomodar pedirei um taxi e...
- Não precisa – disse ele se levantando – estou de carro e posso lhe acompanhar onde desejar.
- Eu mais uma vez lhe agradeço, mas o senhor sabe que sou uma mulher muito conhecida e sempre existem fotógrafos maldosos de plantão nas ruas.
- Entendo – Nirvaldo baixa a cabeça compreensivo.
- Não que me importe em ser vista com tão agradável companhia – disse ela animando o ego dele e sinalizando e pedindo para Jairo chamar um taxi imediatamente – Mas é melhor evitar problemas com o meu futuro marido.
- Faz todo sentido senhora – Nirvaldo chama o maitre insinuando a conta.
- O senhor é meu convidado, essa conta já está paga – disse ela.
- Mas senhora eu insisto e...
- Você fez por merecer, cumpriu a promessa. Pretendo voltar ao Recife no próximo verão e aceitarei um convite seu para um novo jantar de negócios lucrativos.
- Seria uma honra, caso seu novo marido não se incomode.
- Ele não virá. Quando atravessa o atlântico, no máximo vai até New York.
- Não gosta do Brasil?
- Ela ama o Brasil e a mais bela brasileira – Goreti sorrir – mas ele só respira negócios e mais negócios. Não tem investimentos aqui.
- É uma pena. Temos muito que investir. Mas não se preocupe, aguardarei o nosso próximo encontro.
     Discretamente Jairo se aproxima e avisa para a falsa Melissa que o taxi havia chegado. Ela se levanta e cordialmente tem sua mão direita beijada por Nirvaldo.
     No canto da janela de serviço, o detetive Augusto retira a roupa de faxineiro e ver o taxi saindo. Nirvaldo continuou na mesa e um dos gringos se aproxima e senta-se a sua frente sem ser convidado. Nessas alturas Jairo havia relaxado, sua preocupação era com a mulher e não havia nada demais do Nirvaldo permanecer no restaurante conversando com um dos estrangeiros, era até um bom sinal de que não queria seguir Melissa.
- Algum problema? – pergunta Nirvaldo.
- Muitos problemas – fala o homem em português, caprichando no sotaque e em voz baixa.
- Você fala português?
- Lembra do repórter que te visitou hoje?
- Sim por quê?
- Sou eu! Vitor! Estou disfarçado – fala sussurrando.
- Posso saber o que você deseja? Ainda não agendamos a entrevista.
- Abrir seus olhos! Aquela mulher que saiu daqui!
- O que tem ela?
- Você está sendo enganado! Ela não é quem você pensa!
- Não me interessa o caráter de Melissa Silmarem – disse Nirvaldo com desdém – apenas o dinheiro dela. Acabei de fechar um ótimo negócio.
     Vitor olha para os lados desconfiado.
- Preste atenção no que vou lhe dizer: Procure saber quem pagou, tenho certeza que esse dinheiro não é dela. E outra coisa, o pessoal desse restaurante não gosta de mim, se descobrirem meu disfarce vão me jogar no olho da rua ou coisa pior. Tenho informações sobre essa mulher que acredito que seja valioso pra você. Vou sair discretamente e nos encontramos no drink da esquina.
     Nirvaldo ficou mais curioso do que interessado no que aquele repórter teria a dizer. Pensou no esforço dele de fazer todo aquele teatro para se aproximar e lhe deu algum crédito.
- Você poderia falar comigo no meu escritório amanhã?
- Não! – insiste Vitor – Tem que ser agora! Você vai entender!
     O telefone celular do repórter toca.
- Tais onde?...Sei....Sei onde é! Tocaia aí e fique de olho!
- Algum problema? – pergunta Nirvaldo.
- Se a gente não correr, quem vai ter é você.
     O repórter levanta da cadeira e se infiltra no grupo de turistas. Logo depois sai do restaurante a pé em direção a um bar na esquina. Um afetado travestir passa por ele e pede um cigarro.
- Desculpa! Parei de fumar.
- Arruma um dinheiro pra eu tomar uma! – insiste o traveco.
- Quer cobrar pedágio é?
- Aff Maria! Não homi! É só pra molhar a garganta seca. A noite tá só começando e ainda não descolei.
     Vitor sempre faz uma “amizade útil” com todas as pessoas que possam no futuro ajudar num furo de reportagem.
- Mora por aqui?
- Um pouco. Quem quer saber?
- Sou repórter, posso precisar de informantes.
     O travesti levanta a cabeça e diz abusado:
- Aqui se paga pelo que se usa meu amor!
- Tá aqui o dinheiro da cerveja.
     Ao ver as notas, ele se anima em negociar:
- Sou conhecida com Val.
- Val? Val de Valdete, Valentina, Valdaocu?
- Isso! Val! Não gostou?
- Pois bem Val, se acontecer algo interessante por aqui ligue pra mim certo? – ele entrega um cartão.
- Paga quanto?
- Depende. Mas estou logo avisando, não venha com mortes e violências com travestis e prostitutas, nada contra, é que isso é assunto pra página policial.
- Podia fazer uma reportagem com a gente, aqui nós se lasca todinho, pega em merda.
- Não é minha especialidade. Fique de olho em gente famosa tá certo?
- Você quem manda! – o travesti vai embora rebolando os quadris e contando as notas.
- É cada malassombro que me aparece – pensa Vitor.
     Ainda incomodado com a presença de Nirvaldo no restaurante, o detetive Augusto resolve sair pelos fundos, mas antes teve que parar no banheiro. Ficou tão nervoso com a situação de perigo que Melissa havia passado que seu organismo respondeu com uma caganeira. Ao sair suando e com as bolas dos olhos saltando das órbitas, encontra Jairo:
- Augusto? Tá passando mal meu velho? Tá suando mais que tirador de espírito ruim!
- Dor de barriga!
- Quer remédio?
- Não! Obrigado, vai passar. Cadê o cabuloso?
- Tá lá na mesa, mexendo no celular, pensando e terminando um uísque.
- Eu vou sair pelos fundos.
- Vá com minha moto, encostei de baixo da marquise atrás do combogó.
- Obrigado amigo.
- Só tenha cuidado e não corra.
     Logo depois, Nirvaldo se levanta e recebe um telefonema.
- Diz!...O que?...Mas como?...ah rapariga safada! – falou alto chamando atenção dos turistas.
     Jairo se aproxima.
- Algum problema senhor?
- Não! É...me desculpe. Coisa minha! Já estou de saída.
     Educadamente, Jairo estende o braço apontando o caminho da saída. Ainda nervoso, Nirvaldo para, se volta para Jairo e pergunta:
- Aquela bela mulher que me acompanhou. Qual é o nome dela de verdade?
- Acredito que seja a multimilionária viúva Sra. Silmarem.
- Tem certeza?
- Absoluta! Algum problema?
     Nirvaldo balança a cabeça negativamente e entra no carro saindo apressado e cantando pneu. Ele para na frente do bar da esquina e chama Vitor.
- Se você tem algo pra me dizer sobre Melissa Silmarem diga agora! – Falou rispidamente com o repórter.
- Ela não é Melissa! A verdadeira está na Argentina! Acredite! Fonte segura! O que houve?
- Meu gerente confirmou que o negócio que fiz não foi dinheiro dela.
- Eu lhe disse! E pra quer ficar aperreado? Pelo menos não lhe deu calote.
- É que o dinheiro é da última pessoa que gostaria de fazer negócio, um dos meus piores inimigos.
- Quem?
- Não de sua conta! Agora só quero achar aquela desgraçada.
- Você sabe onde ela está?
- Não exatamente.
     Nirvaldo acelera pra sair e é impedido por Vitor.
- Espera! Eu seu onde ela está? Deixei alguém vigiando.
- Diga o endereço!
- Não é assim que funciona! Quero ir junto!
     Inesperadamente Nirvaldo retira debaixo do banco uma arma e aponta para Vitor.
- O endereço!Agora!
- Mas o que é isso! – Vitor tora um aço.
- Olha só seu repórter mequetrefe e de fuxico! Só não lhe dou um mói de guariba na cara para não sujar minha mão de merda! Vou achar aquela mulher de todo jeito, facilita a coisa e não te meto uma bala nas fuças.
     Vitor cuidadosamente retira com os dedos trêmulos, um papel do bolso com o endereço e entrega a Nirvaldo. No momento em que pega, toma um susto com o travesti atrás dele que o aborda:
- Vai um programinha! Bacana estribado?
     Nirvaldo se assusta pensando que é um assalto e vira a arma para o travesti dando-lhe um tiro. Em seguida, acelera o carro em alta velocidade e liga para o mesmo homem que falou no fim da tarde no estacionamento embaixo do prédio que trabalha e que o detetive Augusto viu conversando quando estava na lanchonete:
- Presta atenção! Vai agora nesse endereço e faz o serviço bem feito!
      Lá na rua, ainda nervoso, Vitor reconhece que o travesti é Val e dá um pinote para ajudar.
- Val! – Ele vira o corpo.
- Ai...ai...aiii....calma aí!
- Onde foi a bala?
- Pegou de raspão na minha cabeça.
     Vitor grita pedindo socorro e ajudando Val a se levantar.
- Pega água pra mim...pega – disse Val baixinho – Eu tô bem!
     O repórter percebe que ninguém veio ajudar o travesti e vai ele mesmo buscar um pouco de água no bar. Quando volta não encontra mais Val, que sumiu nos becos sombrios.
- Pra onde foi ele? – pensou Vitor que também ficou receoso de chamar a polícia – Aí tem coisa!
     Depois da conversa com Nirvaldo, o dono do restaurante ficou preocupado e foi até os fundos do estabelecimento ver se ainda achava o detetive Augusto. Ele encontra o mendigo fuçando o lixo.
- O cara da moto saiu? – pergunta Jairo.
- Ôxe! Agorinha! Saiu com a mulesta dos cachorro!
- Deu a preula! – disse Jairo irritado, pegando o celular e ligando para o amigo Augusto – Deu a bobônica nesse fone que só faz chamar e....alô!
     Jairo reconhece a voz, mas não é o detetive.
- Ôxe é tu é? – o funcionário aparece do lado de fora com o celular de Augusto na mão – Tava onde?
- No banheiro chefe. Seu amigo deixou no chão.
- Deu a bixiga lixa, deu a miséria!
- O que foi chefe?
     Antes de responder os três homens escutam um tiro.
- É bala!!! – grita o mendigo.
     Jairo corre pra ver o que foi e encontra Val no caminho cambaleando.
- Quem é tu? Fosse baleado?
- Foi de raspão!
- Quem foi? – pergunta Jairo estranhando a voz masculina e firme do travesti.
- O bacana que saiu daqui!
     Os dois homens escutam a voz de Vitor gritando e chamando Val pelos becos.
- Por favor. Tire-me daqui! Não deixe ele me achar.
     Pelo canto da parede, Jairo reconhece a voz e a silhueta do repórter.
- Venha! Vou te levar para o meu restaurante – Jairo carrega Val nos ombros.
     Ao cruzar com o mendigo, Jairo faz uma oferta:
- Se você despistar aquele homem te dou jantar de graça até o fim do mês.
     O velho sujo dar uma gaitada:
- Ôxe! Pra quem tá na pindaíba tá bom demais. Deixa comigo que boto essa alma sebosa pra correr.
     Jairo entra no restaurante e seus funcionários ajudam o travesti. Lá fora, Vitor encontra o mendigo:
- Viu uma boneca traveca por aqui?
- Tô vendo uma agora!
- É o que seu peguento! Me respeite!
- Dar um trocado que eu digo.
     Vitor joga uma nota.
- Entrou num carro de um cliente e desceu pro lado do Pina.
- Agora deu! E você tá vindo da onde?
- Dali! - Aponta para o beco do restaurante – tô fugindo dos guabirus!
     Se tem uma coisa que o repórter Vitor tem verdadeira fobia é de ratos.    Ele desiste de procurar Val e segue para o bar, apanha a sua motocicleta que deixou com um cara, o mesmo que levou umas tapas dos seguranças de rua do Jairo e que havia se passado por ele desde que saiu do prédio do Nirvaldo. Ele também conseguiu seguir de taxi a falsa Melissa. Vitor foi para o mesmo endereço que deu a Nirvaldo e com muita pressa, foi tentando chegar mais rápido pelos atalhos que conhecia.
     No restaurante, o travesti havia perdido os sentidos. Jairo arrumou uma cama e tratou dos ferimentos dele. No passado, ele foi auxiliar de enfermagem quando serviu o exército.
- Ele vai ficar bem chefe?
- Vai sim. Foi apenas um tiro de raspão, teve uma sorte da goitana. Quando acordar vai ter uma baita dor de cabeça. Pega logo um analgésico e um copo d’água e deixa aqui perto.
- Essas caras se arriscam muito na noite – disse o funcionário.
     Já outro empregado chega dizendo que o tiro saiu do mesmo carro do cliente que havia jantando no restaurante.
- O que?
- Foi sim!
- Foi por isso que o travesti falou do carro do bacana – comenta Jairo.
     Outro ajudante de cozinha havia trazido água limpa e toalhas pra limpar o enfermo e precisou olhar os bolsos pra ver se ele tinha algum documento.
- Eita!
     Todo mundo olha para o ajudante.
- Que foi? Eita o que? – pergunta Jairo.
- Esse cara não é travesti chefe! Quer dizer pode até ser mas...
- Deixe de enrolar sujeito! Desembucha!
     O funcionário entrega os documentos que achou a Jairo.
- Minha nossa! O cara é agente especial da polícia federal!
- O que? – todos falam ao mesmo tempo.
- Tá aqui escrito: Agente Especial Crisoprásio!
-  Criso o que? Que nome feio da porra! – disse o cozinheiro.
- Eu acho até bonito. Diferente – disse o ajudante.
- Agora lascou a tabaca de xola! – disse o cozinheiro – Tem um cara da polícia ferido na minha cozinha.
- Tá nervoso fio? – pergunta Jairo com ironia.
- Com um nome desse, deve ser especial mermo né patrão?
- Vai buscar alguma coisa com cheiro forte pra acordar ele.
- Bota o suvaco do cozinheiro! – alguém falou.
- O da tua mãe! Fí de rapariga! – respondeu o corpulento e talentoso cozinheiro.
- Pega um pouco de cloro da cozinha! Esse cara tem que acordar logo e deixem de pantim! – disse Jairo.
- Acho melhor chamar os homi! – disse o cozinheiro.
- Ainda não! Alguém tentou matá-lo, quero saber por quê.
- Tá aqui o cloro chefe! – disse o ajudante entregando a Jairo que encosta no nariz do desmaiado fazendo-o despertar.
     Aos poucos o agente especial da polícia federal recobra os sentidos.
- Crisoprásio?
     O policial olha assustado para todos e se levanta rápido pondo a mão na cabeça.
- Calma! Você tá vivo, com muita sorte. Já sabemos que é um policial. Quer que eu chame uma viatura, uma ambulância?
     O policial põe a mão na cintura procurando algo.
- Minha arma! Onde está minha arma?
- Não vimos arma nenhuma – disse o ajudante oferecendo o comprimido com água.
     Uma batida na porta chama atenção e todos ficam tensos.
- Fiquem aqui vou olhar – disse Jairo, que ao abrir a porta encontra o mendigo segurando o cabo de uma arma e oferecendo ao dono do restaurante.
- Entregando isso pode ser janta pra dois mês? Tô com fome. Pode começar a dar comê agora?
- Pode. Espere aqui.
     Jairo avisa pra um dos funcionários cuidar do policial.
- Dar um banho nele, arruma roupas limpas e serve um jantar. A farra dos turistas terminou vou dar um adeus.
     Um micro ônibus de luxo para em frente do restaurante e os turistas embarcam tranquilamente, eles não tomaram conhecimento do ocorrido e nem sequer ouviram o tiro. Jairo agradeceu os elogios e desejou boa viagem em inglês.
     Ao fechar a porta, encontra o policial de roupa trocada e tomando outro analgésico.
- Não era pra você está de pé.
- Eu sei.
- Vestido assim nem lembra o travesti que socorri faz pouco tempo, precisa afinar a voz se quiser se manter no ramo – comenta Jairo.
- Você não imagina como é difícil se passar por travesti – suspira o policial.
- Pois é. Carnaval de Olinda tá chegando. De que mais já se disfarçou?
- Recentemente em técnico de enfermagem, delegado substituto de simpática cidadezinha do interior, camelô e por aí vai – respondeu o policial.
- Já pensou em fazer teatro? Você poderia ser famoso. Imagina uma temporada no Teatro Santa Isabel?
- Gosto da minha profissão. E meus disfarces ajudam a quem pretendo proteger.
- Meu nome é Jairo, sou o dono desse restaurante.
- Sei disso também.
- Ah! Quase esqueci. Vocês sabem tudo ne´?
- Não é sempre. Obrigado pela ajuda.
- Olha só! Eu sei quem deu o tiro em você. Aquele cara estava aqui e alguém corre risco de vida. Preciso sair...
     Jairo anda apressado e pega a chave do carro.
- Eu sei. O nome dela é Goreti e estava se passando por Melissa Silmarem. Quem atirou em mim foi o Nirvaldo e ele descobriu que foi enganado e você está preocupado com seu amigo detetive Augusto.
     Dar pra escutar o barulho no assoalho do freio que Jairo deu:
- Bem informado em policial? Mas ela é amiga do meu amigo e eles correm perigo.
- Já avisei pra eles, ou melhor, pra ela.
- E quando foi isso?
- Liguei do celular.
- Não tinha nenhum celular com você.
     Um dos garçons vem até Jairo e entrega um celular que achou na roupa do mendigo.
- É esse?
- Sim.
- Olha só, não quero me meter em confusão. Tenho um negócio honesto por aqui e gosto muito da minha vida atual. Diga alguma coisa pra me deixar tranquilo.
- Não há como.
- Meu amigo e aquela mulher correm risco de vida e é só isso que você me diz? Você é da polícia! Faça alguma coisa!
     O policial puxa uma cadeira e senta devagar.
- Aquela mulher é também uma agente federal. Antes de você me achar liguei pra ela e alertei.
- A Melissa? Quer dizer Goreti?
- É sim. E uma das melhores. Até participou de operações internacionais.
- É nada? Tô besta! – Jairo se acalma e puxa outra cadeira, ao sentar-se pediu ao garçom pra trazer uma refeição leve pra eles.
- E Augusto? Ele é apenas um detetive particular, nem arma ele tem.
- Ela vai protegê-lo.
- Você não entende. Augusto é cabra macho e vai ele mesmo se meter a besta pra proteger a moça. Eu conheço ele melhor que você.
- Então não temos muito que nos preocupar não é?
- O que você quer dizer?
- Vamos lá Jairo! Conheço sua história!
- Você quer dizer minha folha corrida?
- Não estou aqui questionando seus métodos e não vai ser a primeira vez que você nos ajuda.
- Isso foi a muito tempo, estava na condicional, paguei injustamente pelo que não devia.
- Sabíamos disso.
- E não fizeram nada!
- Não tinha como. As provas contra você foram muito bem feitas.
- Eu tinha uma carreira e gostava dela.
- Não pense que você foi abandonado. Conseguimos a redução de pena e a condicional foi uma vitória. Agora precisamos mais uma vez de você.
- Quem é o Nirvaldo? – pergunta Jairo se mostrando solidário.
- Está envolvido com tudo que não presta. Tráfico de drogas, armas, animais e prostituição. Tem uma empresa de fachada pra aplicar seus golpes e ampliar seus investimentos.
- E por que não pegou logo ele? O cara tentou te matar! Já é um bom motivo.
- Precisávamos de provas e Goreti conseguiu o que foi possível, já é o suficiente para prendê-lo e tentar descobrir quem são os graúdos, mas eles têm boa assessoria jurídica.
- Agora sabe que caiu numa armadilha. Que fizeram ele botar o focinho pra fora do buraco – comenta Jairo.
- Em relação ao tiro, na verdade ele se assustou, pensou que fosse um assalto da Val. Mas com certeza iria assassinar o repórter. Arrisquei em aproximar um pouco para ouvir melhor a conversa.
- Como é que é?
- Isso mesmo. E tem mais Jairo, você se descuidou. O Vitor estava bem aqui disfarçado e em seu restaurante.
- Onde? – Jairo olha para os lados.
- Entre os turistas – revela o policial.
- Mas olha só? – disse Jairo com gozação - Você agora tem um concorrente à altura na carreira artística.
- Foi rápido o suficiente para falar com o criminoso. Você viu?
- Mas que filho de uma jumenta! Era ele que conversava com Nirvaldo?
- E o cara que seus capangas bateram foi uma distração, não foi o repórter.
- Não chame meus meninos de capangas, são seguranças de rua.
- Como queira.
- E o que mais aconteceu?
- Descobriram a farsa. O repórter é bem persistente, deve ter pesquisado e descoberto que a verdadeira Melissa não está no Brasil, e que o dinheiro que pagou pela compra do Engenho Pau Amarelo é do coronel Manuel Rufão, um inimigo menor de Nirvaldo, mas que atrapalhou muito ele no município de Cova da Onça.
- Agora entendo um pouco. Augusto me falou algumas coisas.
- Goreti estava infiltrada como a sobrinha do coronel.
- E ele sabia disso?
- O coronel? Claro que sim! Sempre soube. Eu fiz o primeiro contato com o coronel que nos revelou muitas trambicagens do Nirvaldo na região, mas não tinha como provar. Comprava animais silvestres e contrabandeava.

- Meu pai do céu!
- Pois é. Quando tudo estava indo bem, o coronel Manuel chamou o detetive Augusto para uma investigação de algo que aconteceu no passado.
- Como assim?
- Não era pra ele fazer isso antes de falar com a gente, atrapalhou a investigação de Goreti que procurava provas pra incriminar Nirvaldo. Com a investigação do detetive, o boato se espalhou e alguém infiltrado na cidade deve ter avisado pra ele.
- Mas que balaio de gato – disse Jairo exaltado se levantando e voltando a sentar novamente.
- E bote balaio nisso. Uma coisa terminou se ligando a outra e a agente Goreti teve que se adaptar.
- E que bela agente viu? Tem muita assim por lá?
     O agente Crisoprásio sorriu:
- Poucas.
- Mas então o Augusto corre risco de vida simplesmente por que se envolveu com sua colega?
- Mais ou menos. As investigações do detetive curiosamente levaram até suspeitas envolvendo Nirvaldo.
- E agora o Nirvaldo vai achar que Goreti foi pau mandado do coronel Manuel pra comprar o engenho e que Augusto também está envolvido.
- Ele tem bom faro, chegou fundo numa investigação que pode estragar tudo.
- Estragar tudo? Pelo que você me disse aquilo é um ninho de maribondos e até eu entendo, vocês que estragaram a investigação dele – comenta Jairo.
- Ele corre risco de vida, é verdade. Nirvaldo estava furioso e está disposto a fazer qualquer coisa.
- E qualquer coisa é matá-los!
- Vão ter que pegá-los primeiro. Confie em mim, Goreti não é fácil, saberá o que fazer e o detetive é esperto.
- E se forem capturados serão torturados!
- É possível.
- Não posso ficar aqui parado, desculpe – disse Jairo com honestidade nos olhos.
- Vamos encontrá-los – afirma o policial que escuta o seu fone celular tocar.
     Um clima tenso e silencioso cobre a atmosfera do restaurante.
- Goreti!...Desceu? Ótimo! Escute! Tivemos um imprevisto, o detetive foi de moto tentar achar você, tome cuidado, Nirvaldo e seus capangas estão na área! Se alguma coisa sair errado use o plano B!
- Então? – pergunta Jairo.
- Está do lado de fora do prédio esperando Augusto chegar.
- Lembrei que Augusto falou de um rapaz do engenho que sumiu – comenta Jairo.
- Acreditamos que o pobre rapaz estava no lugar errado e na hora errada. Deve ter visto alguma operação ilegal e foi surpreendido. Pode ser que esteja com eles também, ou na pior das hipóteses, esteja morto e bem enterrado.
- Meu Deus! Que mundo cão!
- Goreti conseguiu algumas provas contra Nirvaldo, que pode nos levar a encontrar o cabeça da operação e se possível o informante em Cova da Onça – revela o policial.
- E o que você quer de mim?
- Quero que use de sua influência e experiência...
- Calma aí meu amigo! – Jairo interrompe a conversa levantando a mão – Eu tinha influência, não tenho mais.
- Não precisa ficar preocupado – acalma o policial – sei que tem bons amigos que podem dar boas pistas ou te ajudar.
- Não sou froxo! Sou cabra de pêia e não quero me envolver com amizades antigas de infância e nem com os negócios deles.
- Não imenda as coisas Jairo! Vai ajudar ou obstruir?
- Se deixar fazer como eu quero, da minha maneira, eu ajudo!
- Preste atenção.
     O agente especial explica detalhadamente seu plano e Jairo fica bastante entusiasmado. Enquanto isso, o detetive Augusto encosta a moto no beco próximo ao seu apartamento. Coloca a mão no bolso procurando o celular para ligar e não acha nada.
- Não acredito pedir o celular! Como vou avisar a Goreti? Essa noite vai ser longa!
     Ele olha para o alto, conferindo que sua janela está aberta e a luz acessa.
- Ela está em casa! Preciso ser rápido.
     O detetive Augusto dobra a esquina indo na direção da entrada do prédio. Do outro lado e escondida, Goreti usando um pequeno binóculo observa tudo. Identifica um capanga na recepção e uma silhueta de outro homem que acende uma luz no apartamento do detetive. Ela desce o binóculo e cerra os olhos pra melhor focar o outro lado da avenida.
- Ah não! Ele veio pelo beco! Mas claro, como não pensei nisso? – disse Goreti, que estava aguardando que o detetive Augusto surgisse pela frente.
     Ela o chama e ele não escuta, chama de novo e não tem resultado. O barulho do trânsito atrapalha. Resolve apelar com um longo assovio e o detetive finalmente olha pra ela que acena os braços. Nesse meio tempo o capanga na janela viu a cena e já passa um aviso pelo rádio e o comparsa que está recepção se agita.
- Corre Augusto! Corre! – grita ela.
     O detetive ver um dos bandidos correndo em sua direção e tirando alguma coisa atrás das costas. Ele não consegue atravessar a rua sem ser atropelado. Nervoso, volta o olhar para o homem e o ver apontado a arma. Instintivamente, o detetive se abaixa e fecha os olhos, entre barulhos de motores, faróis e buzinas, escuta-se um tiro. Ao perceber que não foi ferido, o detetive olha para a calçada e ver o homem caído no chão. Ao virar a cabeça para Goreti, foi grande a sua surpresa de vê-la com uma pistola em punho. Ela salvou sua vida com um tiro certeiro no capanga.
     Imediatamente começa a confusão de gente correndo por tudo que é lado. O capanga que estava no apartamento já aparece na recepção e vai olhar o amigo de bandidagem que jaz morto. Na cabeça do detetive as  cenas parecem se desenrolar em câmara lenta, ele escuta a voz de Goreti insistindo para que ele corra. Nesse momento, um dos bandidos tenta atingir Goreti com uma barra de ferro na cabeça. Ela se esquiva rapidamente, imobiliza o inimigo com um gracioso giro e joga o infeliz quase no meio da Avenida Conde da Boa Vista. Ao tentar levantar, um ônibus o atropela. O coletivo estava tão lotado que o motorista parecia que dirigia em pé e só escutou a porrada.
     O trânsito fecha de vez e um grande engarrafamento se forma até a Ponte Duarte Coelho. Em pouco tempo se escuta sirenes, não se sabe se é de polícia, bombeiro ou de ambulância e, no meio disso tudo, Augusto desperta do transe e aproveita o engarrafamento para finalmente correr em direção à Goreti.
- Que golpe foi aquele mulher! Judô? - pergunta gritando e nervoso.
     Ela pega a mão dele e antes de correr em disparada juntos responde:
- Não! É aiquidô! Corre! Depois explico tudo!
- Vamos pegar a moto?
- Não dar tempo! Tem bandido pra todo lado atrás da gente! – grita Goreti que aperta um botão no celular, avisando ao agente Crisoprásio que o plano B está em ação.
- Tá indo pra onde?
- Confie em mim Augusto!
     O casal entra numa rua e são observados a distância por Nirvaldo, em pé, ao lado do carro com a porta aberta e preso no engarrafamento.

Capítulo 4
O Barão de Pau Amarelo

          A situação de Goreti e o detetive Augusto estavam ficando perigosa, e se dependesse do Nirvaldo ficaria pior. Ele juntou os fatos e agora tem certeza que está sobre investigação cerrada, precisava antes de tudo se livrar do casal, principalmente da falsa Melissa e ganhar tempo pra fugir. Estava com o orgulho ferido, de ter sido enganado por ardilosa mulher, no qual já nutria um ódio incondicional sob um sentimento de macho rejeitado.
- Não posso ir embora sem antes resolver um acerto de contas! – disse ele com os mais fervescentes dos pensamentos de ira.
     Todo o entorno da Avenida Conda da Boa Vista, bairro de Santo Antônio e Ilha do Recife estavam cercados. A marginalidade que era subserviente a Nirvaldo, estava atenta e armada para cumprir apenas uma missão: matar o casal.
     O detetive Augusto continua instintivamente sendo puxado pela mão de Goreti. Eles seguem pela Rua do Hospício e ela fica em dúvida por onde seguir no cruzamento da Rua Imperatriz Teresa Cristina.
- Se você disser para onde quer ir posso ajudar! – disse o detetive.
- Estou decidindo o melhor caminho – responde ela com confiança.
     Ele retira a mão que ainda estava colada na dela e olha bem em seus olhos:
- Eu nasci no Derby e passei minha infância e adolescência por aqui! Conheço bem cada rua, beco ou ponte.
- Precisamos chegar com segurança na Ponte Velha.
- Vamos por aqui! Pela Rua da Matriz! – falou ele decidido.
     Por alguns instantes, Goreti olha para a Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento de Santo Antônio.
- Nem pense em se esconder aí! Tá tudo fechado!
- Não é isso. Ainda não tinha reparado como ela é bonita da última vez que estive aqui.
- É bonita sim, meu irmão se casou aqui. Se tivesse aberta até poderia rezar, mas se quiser fugir tem que ser por esse caminho! – aponta o detetive.
     Um grito a distância denuncia a presença deles:
- Foram por ali!
      O detetive Augusto e Goreti correm com fôlego de adolescente e, se aproximando da ponte, ele insiste em querer mais detalhes da fuga:
- Para onde vamos depois da ponte?
- Não vamos passar pela ponte!
- O que? – O detetive para de correr
- Vamos Augusto!
- Para onde vamos? Eu posso ajudar!
     Goreti respira fundo pra tomar fôlego. Ela segura o rosto suado dele com as duas mãos e olha bem no fundo de seus olhos:
- Você me ama?
- Amava aquela mulher linda e sensual do engenho! Agora não sei quem você é! Amor e confiança... está tudo confuso em minha cabeça. Você derrubou um homem com um tiro certeiro e se defendeu com uma arte marcial que nunca vi na vida, parecia mistura de kung fu, judô e Karatê.
- Preciso que confie em mim Augusto? O que vivemos não foi mentira! Sou uma agente federal!
- O que?
- Isso mesmo! Sou policial. Mas também sou a mesma mulher do engenho! Agora deixe de pantin segure a minha mão! Vamos correr juntos e saltar no rio!
- Não vai dar! A maré tá seca e vamos ficar preso na lama!
- Não tá seca, está quase cheia!
- Você sabe tudo né? O que sabe de mim senhora agente!
- Que é um homem decente, teimoso e muito bonito! – reponde Goreti dando-lhe um rápido e molhado beijo que massageou o ego do detetive. Ele respira fundo tomando coragem.
- Vamos nadar até o outro lado?
- Não precisa!
     Uma sequência de tiros vem do meio da rua e de outros bandidos atravessando a ponte. Um dos tiros atinge um candelabro próximo deles estourando uma lâmpada. O detetive se abaixa se protegendo dos estilhaços.
- Eita porra! É bala! - grita um homem que passava com um saco nas costas.
     Enquanto isso, no canto do beco, mendigos correm e outros que já estavam indo, voltam correndo para o mesmo lugar na esperança de pegar os papelões que lhe serviam de cama. Outro morador de rua, de sono pesado, estava babando e rocando de assoviar em cima da marquise de uma loja, quando escutou o tiroteio. O homem deu um pinote com o susto e desceu numa velocidade que desafiava todas as leis da física e da gravidade.
- É agora! Siga-me! – disse Goreti puxando a mão dele.
     O casal corre e salta no rio.
     Naquela escuridão era difícil achar alguém sob as águas do Capibaribe, a maré estava cheia e a correnteza forte. Alguns bandidos tentavam achar os fugitivos olhando as águas misturadas do estuário. Eles fizeram sinal para os comparsas da ponte, indicando que nada sabiam, mas foram surpreendidos por um barulho de motor.
     O reforço do plano B dos agentes funcionou. Goreti e o detetive assim que saltaram no ponto combinado, caíram na água e foram logo resgatados por dois homens dentro de um bote inflável preto e foram imediatamente cobertos com uma manta a prova de balas. Com uma manobra discreta, o bote se deixou descer o rio e logo na frente fez a volta na direção da foz. Eles passaram mais de 200 metros de distância dos outros bandidos que estavam sobre a ponte.
     Como era de se esperar, a bandidagem não economizou munição tentando acertar o bote que se afastava na escuridão do rio e logo depois, tiveram que enfrentar a polícia militar que já fechava o cerco sobre eles com várias viaturas barulhentas e piscantes. Alguns meliantes mais ousados tombaram sem vida, dando cobertura para fuga de alguns e outros não tiveram opção além de se renderem.
     O bote seguiu tranquilo passando pelas Ponte da Boa Vista e Duarte Coelho e ao se aproximar da Rua da Aurora foram recepcionados por dezenas de policiais federais e estaduais.
- Estamos salvos – respira aliviado o detetive Augusto – Esse bigú no bote foi providencial.
- Por enquanto – responde Goreti com um ar sério.
     O agente Crisoprásio se aproxima e parabeniza Goreti:
- Fez um bom trabalho agente. Também provocou um grande engarrafamento no Recife.
- Não tive escolha – responde ela agradecendo e apertando a mão dele.
- E você está bem?
- Estou melhor, mas não temos pistas do Nirvaldo, acho que dessa vez o perdemos de vez.
     O detetive Augusto saiu do barco e se aproxima do casal de agentes:
- Detetive, esse é o agente Crisoprásio - apresenta Goreti.
- Prazer detetive – apertam as mãos – Você é um homem muito corajoso.
- Obrigado. Mas tenho uma impressão que já nos vimos antes. De onde você é?
- Onde meu trabalho me chama, não tenho lugar fixo.
- Sei – disse o detetive Augusto desconfiado – Já sei! Você era o delegado substituto de Cova da Onça!
     Goreti sorrir olhando para o colega do trabalho:
- Eu disse que era ele bom.
- Meu disfarce não foi convincente detetive?
- O disfarce sim, mas a voz e o jeito que olha para a sua colega de trabalho não.
     O agente Crisoprásio dar uma longa gargalhada:
- Realmente ele não é fácil! E aquele bigode não ficou bem colado. Não se preocupe detetive, não é novidade pra mim que Goreti só tem olhos pra você.
     Goreti dar umas tapas leves de brincadeira nas costas do agente recriminando-o de tocar em assuntos pessoais.
- Tá vendo? Eu só me contento em apanhar - disse o agente rindo e levantando os braços pra se livrar das palmadas.
     O detetive Augusto sorrir com a cena e fica feliz com a confirmação indiscreta do agente de que realmente Goreti tinha sentimentos por ele.
- Sabe detetive – continua o agente Crisoprásio – Todos nós da polícia federal temos muito orgulho dessa menina aqui. Ela é um ser humano extraordinário e enobrece a nossa causa. O olhar diferente que você notou é exatamente isso. Não é só a beleza é o conjunto da obra.
- O que foi querida? Triste com os elogios? – perguntou o detetive.
- Não é isso. Queria muito pegar aquele Nirvaldo e agora perdermos a pista. Ele já pode está longe daqui.
- Perdemos não – disse o detetive entusiasmado – aconteceu algo incrível nesse meio tempo, acho que pode nos ajudar.
     O detetive Augusto contou para os agentes a história de Dona Mocinha que na verdade se chamava Dona Lourdinha e era esposa do Seu Damaceno que foi motorista de Nirvaldo.
- Dona Mocinha de Cova da Onça? – pergunta Goreti.
- Isso mesmo! – responde o detetive – Ela conheceu a mulher que se chamava Zuleica, que na verdade é Lígia e que foi amante do coronel Machado no cortiço de Alzira.
- Do que vocês estão falando? – perguntou o agente Crisoprásio.
- É uma parte da investigação que Augusto fazia a pedido do coronel Manuel – responde Goreti.
- Tudo bem, mas tirando o motorista que trabalhou pra Nirvaldo, qual seria a relação dessas mulheres no caso?
- Preste atenção agente... Crisoprásio. Você não tem um apelido? – perguntou o detetive.
- Pode chamar de Cris, mas não exagera.
- Pois bem Cris – continua o detetive no raciocínio – Uma mulher veio de Cova da Onça e foi parar num drink do Recife com uma criança no braço. É muita coincidência. E a esposa do ex-motorista trabalhava numa farmácia e a conhecia. Alguma coisa aconteceu que tanto ela, a criança e a mãe sumiram por anos. Uma eu descobri, a funcionária da farmácia que vive com dificuldades e sem memória lá em Cova da Onça.
- E o que mais? – insiste o agente.
- O menino pode ser o filho perdido do coronel Machado, herdeiro direto do título de Barão de Pau Amarelo e dono das terras do engenho do mesmo nome.
- Que o Nirvaldo comprou e vendeu a falsa Melissa Silamarem e que agora pertence ao coronel Manuel.
- Exatamente!
- E cuja venda pode ser contestada caso o filho esteja vivo – completa Goreti.
- Aposto que o drink em questão devia fazer parte da rede de prostituição que Nirvaldo comandava – disse o agente.
- É bem possível – confirma Goreti.
- E quem sabe dizer isso é o próprio ex-motorista, que sabia demais e que deve ter comentado com a boa esposa samaritana – conclui o detetive.
- Se o filho está vivo, certamente não sabe que é herdeiro – disse o agente.
- Nem tenho certeza que esteja vivo – comentou Goreti – aquela alma sebosa do Nirvaldo é capaz de tudo!
- E tudo isso nos leva ao engenho? – pergunta o agente.
- Por enquanto não – responde o detetive Augusto – Já exploramos o suficiente as pistas que nos trouxe aqui. Precisamos encontrar o Seu Damasceno e protegê-lo de todas as formas. Ele sim! É uma testemunha importante.
- E depois que souber que sua esposa está viva... – falou Goreti com sentimento.
- Ele não pode saber por enquanto – rebate o detetive – ele pode enlouquecer e querer ir atrás dela e tudo vai por água abaixo.
- Ele tem razão Goreti – confirma o agente.
- Pobre homem, ele tem o direito de saber – insiste Goreti.
- Ele vai saber no momento certo, o que importa é que se Nirvaldo descobrir de alguma forma que seu ex-motorista andou conversando sobre o assunto, ele manda matar na hora – finaliza o detetive.
- Já pensou em trabalhar na polícia detetive?
- Não gosto de armas Cris.
     O agente se entreolha e concorda com essa nova linha de investigação, sugerida pelo detetive, e que mais uma vez se cruzaram:
- Muito bem! – disse o agente – Vamos dar proteção integral ao ex-motorista até o fim do caso e também não chamar atenção. Vou pessoalmente procurá-lo e pedir a sua colaboração no caso do Nirvaldo com a promessa de resolver o caso da esposa, já resolvido pelo nosso amigo aqui.
- Ótimo! Ele vai topar na hora e se vocês puderem mexer os pauzinhos, garantindo um emprego temporário como motorista, numa empresa de locadora de carros antigos, ele vai ficar mais feliz ainda – sugere o detetive.
- Levaremos tudo isso em conta – disse o agente – mas agora vocês é quem devem sumir do Recife até as coisas estarem seguras, os olheiros do Nirvaldo não dormem no ponto.
- Não sei se consigo – disse Goreti inconformada – temos que pensar em algo.
     Enquanto isso, lá na Zona da Mata pernambucana, distante de todas as confusões que aconteciam no Recife, o coronel Manuel Rufão encontra-se pensativo em sua tradicional cadeira de balanço. Pela primeira vez o som da madeira fazendo atrito, o famoso reco-reco, o deixou nervoso. O senhor de engenho estava às voltas com o pensamento em Júnior, que ainda não foi encontrado e de como o detetive estava conduzindo as investigações.
- Seu Antônio!
- Meu patrão! Ainda acordado? - responde o vigia com uma espingarda escorada no ombro e se dirigindo para a escuridão.
- Faz tempo que não sei o que sono homi!
- O coroné precisa de alguma coisa agora?
- Não seu Antônio! Pode cuidar das suas coisas.
- Precisar é só chamar!
     O coronel Manuel acende novamente o fornilho do cachimbo e vai andar pelo terraço. Dona Cecília aparece do nada e lhe dar um susto:
- Vala me Deus mulher! Parece uma alma penada!
- Ó quem fala! Vai dormir não?
- Vou terminar meu fuminho e já vou. Deixe que eu tranco a porta.
- Tranque mesmo! Aquele morcego suja a casa toda vez que o coronel não fecha a porta de noite.
- Vou fechar, agora vá simbora pra sua cripta!
- Pra onde?
- Prá cama mulher!
- E eu lá falo estrangero!
     O coronel deu duas voltas ao redor da casa e nada de sono. Desceu e foi até o quintal escutando os morcegos derrubando as mangas maduras e um bando de insetos arrodeando a lâmpada de um poste baixo na rua de saída.
     Ele se prepara para acender novamente o cachimbo e sente uma frieza metálica na nuca que lhe faz congelar a espinha:
- Quietinho coronel – falou baixinho Nirvaldo segurando uma arma.
- Essa noite não me poupou assombração! – disse o coronel com ironia.
- E daqui a pouco você vai se torna uma se não ficar quieto!
- O que você quer seu urubu de chuteiras?
- Onde está Júnior? – disse Nirvaldo engatando a arma num sonoro click.
- Agora deu! Todo mundo quer saber de Júnior! Eu sei lá! Se preocupe não que minha sombra pequena não tá em casa. Sumiu faz tempo!
- Como sumiu?
- Foi na cidade e não voltou mais, já batemos tudo o que é de lugar e nada. Mas posso saber o interesse? E por que está com essa arma apontada para um homem de costas?
     Nirvaldo empurra o coronel e esse se vira ficando frente a frente com seu agressor.
- Nirvaldo. Oxi! Tá com uma cara nada boa, tá doente? – disse o coronel bem tranquilo.
- Você não me engana coronel! Sei que mandou aquela mulher pra se fazer de outra e comprar o engenho Pau Amarelo.
- Eu mandei?
- Deixe de besteira homem! Tá pensando que sou abestalhado?
- Ela pode até ter comprado, o que disse é que ela tentasse de tudo para descobrir um jeito de comprar. Se ela resolveu comprar o engenho de você vou fazer o que? Ela tem um cheque em branco assinado por mim. E aí? Roubou muito no preço?
     Nirvaldo não responde e se aproxima com a arma.
- Cansei de suas intromissões coronel! Cansei de ter você no meu pé atrapalhando meus negócios por aqui!
- Negócios? Traficar animais e praticar prostituição é negócio? Pensa que não sei? Essas matas eram cheias de aves lindas e ameaçadas de extinção e você só fazia saquear! Aliciava jovens para o puteiro e lucrava em cima delas! É isso seu negócio? A sua sorte é que o coronel Machado não é mais o mesmo homem, se não ele mesmo já tinha dado cabo de você seu maldito.
     O gato da casa passa correndo e miando alto embaixo do pé de Nirvaldo, ele toma um grande susto e dispara a arma sem querer na direção do bicho que corre para o mato ileso. Com o barulho, outros tiros são ouvidos do lado de frente da Casa Grande, que também faz Nirvaldo baixar a guarda e levar um duro coice de um murro do coronel. Nirvaldo deixa a arma cair e sai fugindo cambaleando para escuridão. O Senhor de Engenho apanha a arma no chão e prudentemente se esquiva no pé de manga até entender a situação.
     Assustada, Dona Cecília acende as luzes de dentro e de fora, olha por uma fresta da janela e ver a sombra de Nirvaldo fugindo. O coronel entra em casa, pega sua espingarda e corre para frente do jardim. Ele já encontra Seu Antônio na subida da escada recarregando a arma.
- O coroné tá bem?
- Tô sim! Era Nirvaldo querendo saber de Júnior! Correu para o mato.
- Ele não veio sozinho, trouxe três capangas com ele!
- Esse engenho tá movimentado essa noite! Fugirão também?
- Homi! Só se o senhor Jesus Cristo descer aqui com seu poder infinito e ressuscitar os cabras! Tá tudo ali oi! As bola do ôio tudo aberta, mas tudo mortinho da silva.
- Mas que covarde! Atacar de noite!
- Se o senhor quiser posso ir atrás dele, mas acho que vou precisar de ajuda pra socorrer Seu João.
- O que ele teve?
- Levou um tiro na perna e tá lá no chão gemendo.
- E agora que me diz isso?
- Tô dizendo agora.
     Dona Cecília se desespera e vai tentar avisar a polícia pelo celular.
- Toque o sino Seu Antônio! Acorde o povo! Arrume alguém pra levar Seu João no hospital de Cova da Onça!
     Ao longe, o coronel avista os faróis de um carro em fuga.
- E ele! Aquele safado! Seu Toinho! Arrume minha caminhoneta! Vou na rua!
- Eu vou com o senhor!
- Então venha logo! Quero ver se ainda pego aquele Nirvaldo!
     Apesar da rapidez em sair do engenho, o coronel estava pelo menos uns 20 minutos atrasado. Nirvaldo conhecia bem aquelas estradas e sua pick up era muito arrojada.
     O coronel achou que apenas Seu Antônio estava lhe acompanhando, mas quando olhou o espelho retrovisor, tinha pelo menos uns seis homens armados até os dentes na carroceria, um de frente para o outro.
- Quem mandou esses cabra vir?
- Eu que não fui – responde Seu Antônio secamente.
- Agora o carro vai ficar pesado e nos atrasar mais ainda.
- O povo gosta do senhor coroné! O senhor é o padrinho de tudin aí!
- Tudo isso? – pergunta o coronel que se descuida numa curva e deixa o carro cair num pequeno buraco na estrada.
     Felizmente ninguém que estava em cima caiu, mas com o impacto da queda, os seis homens foram jogados no ar e trocaram milagrosamente de lugar na carroceria.
- Que buraco é esse Seu Antônio?
- Sei não senhor! Acho que foi os capangas de Nirvaldo que cavaram.
- Peste! – fala o coronel, irritado.
     Após 40 minutos, eles chegam a Cova da Onça. A polícia estava na frente do bar de Dodinha e muita gente se aglomerava na rua.
- Agora deu! – disse o coronel.
- É na casa de Dondinha – falou Seu Antônio com ar de preocupado.
     O coronel escuta um som de lamúria e dor:
- Que é isso?
- É Seu João! Veio deitado na carroceria!
     O dono de engenho não se aguenta:
- Homi! Eu mandei trazer em outro carro! Pelo amor de Deus! Acabei de matar Seu João!
- O carro do coroné é mais rápido do que perdiz – justifica Seu Antônio – O fusca é ligeirinho também, mas arriou a bateria.
- Leva ele no hospital! Manda os meninos guardar as armas! Ninguém vai pra guerra não! Na volta passa aqui!
     O fiel vigia obedece e segue para o hospital dirigindo o carro e levando a escolta. O coronel anda um pouco e vai até o policial:
- O que houve aqui?
- Boa noite coronel!
- Desembucha Alcides!
- É que mataram Dona Dondinha?
- O que?
- Quem foi?
- Ninguém viu! Só escutaram os tiros! O que o coronel faz por aqui essa hora?
- Tentaram me matar também!
- O que? E quem foi o ensandecido?
- Acho que o mesmo que matou Dondinha – disse o coronel aprumando um revolver 38 de cano longo na cintura – Alguma testemunha?
- Ninguém viu nada! – responde o policial desolado e pensando se aquele era o momento certo ou não pra convidar o coronel pra ser padrinho do filho dele que nasceu.
- Cadê o delegado Cordeiro? – pergunta o coronel.
- Já voltou para o Recife.
- Já? E Soares?
- Disse que tá voltando, mas não falou o dia. Quem tá tocando as coisas aqui só eu – disse o policial.
- Muito bem! Se precisar de reforço é só pedir! – acrescentou o coronel.
     A polícia recolhe o corpo até o hospital. As pessoas curiosas retornam murmurando para a suas casas, sem acreditar no que aconteceu.
     Sentado no canto de um degrau de calçada e com a cabeça baixa, o marido viúvo de Dondinha suspira em lágrimas. O coronel pensa em ir até lá dar uma ajuda, mas um homem encostado ao lado de uma árvore faz sinal pra ele e chama seu nome discretamente. Nesse momento, Seu Antônio já retorna do hospital. O coronel pede pra ele ter uma prosa com o viúvo, encanto falaria com o cavaleiro desconhecido.
- Tá escondido homi? Quem é você?
- Sou amigo de Goreti. Na verdade sou mais amigo ainda do detetive Augusto.
- Ôxe!!!
- Tenho algo importante pra lhe dizer e preciso da sua ajuda.
- Todo ouvido!
- Meu nome é Jairo e eu vi quem matou aquela senhora!
- Nirvaldo não foi?
- Ele mesmo!
- E por que ele mataria uma mulher como ela?
- A coisa é mais complicada coronel!
- Descomplique!
- Vou dizer, mas antes o senhor precisa saber o que ela me disse antes de morrer.
     O coronel se aproxima.
- Ela revelou onde Júnior está? – disse Jairo.
- Júnior! Tá vivo! – o velho se emociona e arregala os olhos.
- Ela queria proteger ele de Nirvaldo e escondeu o rapaz na casa de uma irmã na Paraíba.
- Mas como ela fez isso?
- Sequestrando o rapaz. Ele está bem, mais não pode sair do sítio em que vive.
- Meu pai do céu! Vamo buscar ele!
- Era essa a ajuda que eu queria!
- Mas por que danado ela fez isso?
- Só disse o nome do sítio e onde ficava. Depois suspirou antes de morrer.
- Mas por que ela foi morta? Isso que não entendo? – se altera o coronel.
     Jairo sai do canteiro e anda em direção do coronel no meio da rua.
- O coronel já pode tirar a mão da arma? Por favor?
- Ah sim! Pode vir rapaz! – disse o coronel gesticulando com o braço.
- Obrigado.
- Mas me diga...Seu Jairo, ela falou alguma coisa a mais?
- Foi tudo muito rápido. Ela disse queria proteger o rapaz, mas não disse nada.
- Aquele safado do Nirvaldo perguntou por ele também?
- É bem provável que o Júnior também sabia de alguma coisa. Mas o motivo de vir aqui foi outro. Descobri que Dona Dodinha era o contato de Nirvaldo em Cova da Onça e que a polícia federal procurava.
- Você é da polícia?
- Não sou mais, estou aqui a pedido de um agente.
     O coronel atrapalha o pensamento de Jairo e pergunta se ele pode ir naquele momento viajar com ele e buscar Júnior. Sem demoras, Jairo confirma que sim e que precisava avisar ao agente o que acontecera em Cova da Onça. Seu Antônio chega com o viúvo:
- Coroné!
- Seu Antônio! Fique e ajude esse pobre homem com o bar. Vou na Paraíba pegar Júnior. Passo aqui na volta.
     O olhar de Seu Antônio se ilumina com a notícia:
- Fico sim patrão! Fico sim!
     Pouco tempo depois, o coronel e Jairo se perdem pelo início da madrugada em direção ao Cariri Paraibano.
- Vamos chegar ao amanhecer – disse Jairo.
- Não importa! Quero achar meu afilhado e trazer ele de volta pra casa. Agora me conte Seu Jairo! Me conte tudo o que o senhor sabe até a hora de chegar aqui. Sou todo ouvidos.
- Como queira. Eu sou dono de um restaurante no Recife Antigo e conheço Augusto faz um tempo, na verdade somos amigos de infância e quando...
     Sem quase parar de falar, Jairo passa metade da viagem relatando tudo o que sabia e dos perigos e investigações do detetive Augusto e Goreti.
     Enquanto isso, Nirvaldo já estava longe, seguindo para o sertão pela BR 232 quando escuta no rádio uma notícia que lhe faz frear e aumentar o volume:
“É sem dúvida um grande dia para nós meus ouvintes! Está confirmado! A socialite Melissa Silmarem chega amanhã a capital pernambucana! Ela vem para uma exposição no Museu do Estado e um jantar beneficente que vai reunir a nata da sociedade!”
     Nirvaldo pensa um pouco e seus olhos transbordam de ódio e obsessão:
- Ah safada! Peguei você! Acha que vou cair na sua armadilha? Vamos ver quem é mais esperto!
     Ele faz uma volta rápida no carro, deixando um rastro no asfalto e fazendo um bando de anu-preto voar no acostamento. Ele parte a toda velocidade para o Recife, onde pretende executar a sua vingança insana.
     Enquanto isso no Sertão do Cariri na Paraíba, uma senhora de meia idade varre o quintal com uma vassoura de palha, enquanto Júnior limpa uma gaiola com um galo de campina dentro.
- A senhora sabia que eu gosto muito desse passarinho?
- Quem gostava era meu finado marido. O bicho arrastava a asa na paleta da gaiola toda vez que escutava a voz dele.
- Lá no engenho eu gosto é da guriatã, conhece?
- Só conheço os bichos da caatinga. É bonito?
- Oxi! E apói! Amarelinho e preto puxando pra um azul escuro.
- E canta?
- Canta sim! Ele tem um canto só dele e imita pra mais de 14 passarinhos.
- Olha mentira menino!
- Tô falando! Esse aqui só tem um canto e ainda fala mal da mulher.
- Deixa de estória Júnior! Galo de campina fala mal de mulher onde?
- No canto dele! Olha só o que ele diz: “Mulher é cão...mulher é cão...por causa de mulher...lascaram minha cabeça...olha o sangue...olha o sangue!
- Eu vou meter essa vassoura na sua cabeça e você vai ver o sangue seu desaforado!
     A senhora dar uma pequena carreira ameaçando Júnior e ele se esquiva sorrindo:
- Eu gosto da mulher tia! É o passarinho que canta assim!
     A mulher para e fica imóvel segurando a vassoura:
- Que foi tia? Vai avoar feito bruxa?
- Pera! Tem carro chegando!
- Onde?
- Vai se esconder Júnior!
     Todo desconfiado, Júnior corre para dentro de casa simples e com paredes de barro. Ele ainda não sabe as razões de está ali. Apenas disseram pra ele que o coronel Manuel Rufão havia pedido e que ele obedecesse. O rapaz não sabia onde estava, não tinha contato com ninguém e nem que rumo tomar na caatinga árida.
     O carro se aproxima perto da cancela. Jairo desce e grita:
- Oh de casa!
- Quem chama? – responde a senhora – Procurando quem?
- Eu me chamo Jairo e vim trazer o coronel Manuel pra pegar o menino Júnior!
- Tem nenhum Júnior aqui não senhor! Vá embora!
- Vou não minha senhora! Lamento o que tenho a dizer, mas a sua irmã Dona Dondinha morreu!
     A senhora se encosta na mureta de uma cacimba e quase cai dentro devido o impacto da notícia ruim. Júnior que observava de longe, corre ao seu socorro:
- Tia! O que foi? Quem tá aí? – grita Júnior
     Abrindo a porta bem devagar, o coronel sai do carro e abre os braços sorrindo:
- Sou eu seu abestalhado da memória ruim!
- Coroné! Coroné!
     Sem perder tempo, Júnior encosta a mulher sentada no muro da cacimba e corre na direção do coronel, passando veloz entre as galinhas e causando um alvoroço na bicharada. Eles se abraçam e o coronel assoreia o cabelo do rapaz:
- Menino treloso! Achei você!
- E eu estava perdido era?
- A cidade toda procurou por você!
- E foi? Dona Dondinha me disse que o senhor tinha pedido pra eu vim pra cá, que era importante e que vinha me buscar. O que o senhor queria coroné?
     O coronel olha para Jairo e ele faz um sinal positivo. Em seguida foi ajudar a mulher se levantar.
- Nem eu sei Júnior, nem eu sei. Mas vou lhe fazer uma pergunta e quero sinceridade.
- Eu nunca mentir para o senhor coroné.
- Pois bem. Sabe daquele homem ruento, o Nirvaldo?
- Aquele cabra trancoso? O que tem ele?
- Ele esteve no engenho e tentou me matar.
- O que? Mas avia!
- Escute! Preste atenção. Ele perguntou por você.
- Por mim?
- Você sabe de alguma coisa da vida dele? Coisa ruim mesmo, coisa errada.
- Não coroné! Juro por Deus! Só sei que ele trabalha para o coroné Machado e só isso! E que história é essa que mataram Dona Dondinha.
- Foi Nirvaldo!
- Meu Deus, Jesus e Maria Santíssima!
     Já recuperada, a mulher vem em prantos para junto do coronel:
- Eu disse pra minha irmã que aquele homi não prestava! Eu disse!
     Com calma, Jairo ampara a mulher:
- O que a senhora sabe?
- O que sei é que ele fazia coisas erradas e dava dinheiro pra ela. Eu disse! Mulher esse homi não presta! Mas ela precisava de dinheiro pra reformar o bar e me buscar pra morar com ela.
- Esse sítio é seu? Qual é sua graça? – pergunta o coronel.
- Aparecida, Maria Aparecida. Esse sítio é meu e do finado marido – responde a mulher aflita.
- A senhora quer vender pra mim e voltar com a gente pra Cova da Onça? Seu cunhado está sendo cuidado por meu funcionário e não vai conseguir tocar o bar sozinho.
     A mulher olha para Júnior:
- Vende tia! Vamos com a gente! A senhora vai gostar de Cova da Onça!
- Eu vendo sim senhor, mas se aquele homi ruim voltar e me matar?
- Ele não vai voltar minha senhora! Eu garanto!
- Então tá certo – a mulher enxuga as lágrimas com o pano de avental.
     O coronel olha ao redor da casa e pergunta:
- Tem quanto de terra aqui?
- Tem 6 hectar, dar pra plantar o que comer e palma pros bicho – responde ela.
- Não vou plantar nada não, mas achei bonito. Pegue suas coisas e vamos passar no cartório dar fé de ofício na compra.
- Sim senhor! Mas antes vamos comer, tem coalhada, pão de forno, queijo de cabra e café.
- Eita coisa boa! Vou aceitar! – disse o coronel já babando de fome.
- Coroné! Posso levar meu galo de campina?
- Mas tem tanto passarinho lá menino! E que mania nova de gaiola é essa? Você nunca prendeu bicho? Solta o coitado!
- É mesmo coroné, já pensei em soltar, mas a tia disse que era a única lembrança do finado marido.
     A senhora escuta a conversa:
- Pode soltar Júnior, tá na hora dele seguir seu caminho também.
     Feliz da vida, Júnior solta o passarinho e ele voa direto para um pé de algaroba e canta nervoso.
     Enquanto a mulher e Júnior vão se organizar para botar o café e arrumar as poucas coisas pessoais, Jairo se aproxima do coronel:
- Viu? Júnior não sabe de nada.
- Eu sabia! Conheço esse menino, ele jamais se meteria em confusão.
- Acredito no senhor, mas ainda não explica por que Dona Dondinha o trouxe pra viver tão longe, aos cuidados da irmã.
- O que o amigo está querendo dizer? Desembuche homi!
- Tem alguma coisa muito séria nessa história. Que motivos teria Dona Dondinha deixar de proteger a própria vida e se preocupar com um rapaz que nem da família é?
     O coronel pega o cachimbo e enche meio fornilho.
- Não sou besta Jairo! Que tem coisa tem, mas tô pagando muito caro pra seu amigo detetive investigar pra mim. Deixa ele fechar um caso e depois mando ele ver esse.
- Como queira coronel.
- Quando volta para o Recife?
- Assim que chegar em Cova da Onça. Deixei meu carrinho surrado lá.
- Não precisa! Depois que sair do cartório lhe dou um carro novo de presente e siga a sua viagem daqui mesmo.
- Mas coronel eu...
- Mas nada! Vai recursar um agrado meu?
- Não é isso, é que fiz sem intenções...
- Eu sei meu bom homi! Mas eu mesmo fiz uma promessa que daria um carro novo ao primeiro cabra que me desse a notícia do paradeiro de Júnior.
- Tudo bem, aceito. Mas se fosse uma mulher?
- Daria um marido com direito a lua de mé e tudo – dispara o coronel numa gargalhada acompanhada de Jairo.
     No quarto, Júnior escuta com saudades a gargalhada do coronel e uma lágrima de felicidade corre em sua face em saber que voltará para o engenho e rever as pessoas que gosta.
     Dias depois, Jairo se encontra com o amigo detetive Augusto num lugar discreto lá no Alto da Sé em Olinda.
- Carrão bonito hein amigo? Finalmente abriu a carteira e se livrou daquela fubica velha!
- Foi seu chefe que deu?
- O coronel?
- Ele mesmo. Ficou tão grato por te lhe contado sobre Júnior que teve pagar uma promessa.
- Esse é o coronel Manuel Rufão!
- É um homem interessante, raro eu diria.
- Raro mesmo – concorda o detetive – Mas me diga, que mistério é esse de Júnior com Dona Dondinha e Nirvaldo?
- O coronel disse que quando você resolver um caso, ele lhe contrata pra resolver esse. Mas não descobri nada que ajudasse.
- E a irmã? Não sabe de nada?
- Dona Dondinha era boca piu, como dizem por lá. Sabia da vida de todo mundo, mas nunca ninguém sabia da dela, além do bar e do marido serviçal.
- É estranho. Talvez Nirvaldo ache que Júnior tenha sido testemunha ocular de alguma coisa e queria limpar os rastros?
- Pode ser! Quem sabe? Mas meu trabalho é no restaurante e as férias forçadas acabaram. Precisa de alguma coisa meu amigo? E Goreti?
- Estamos bem. Ela está impaciente e inconformada. Quer apanhar Nirvaldo de todo jeito.
- Imagino – Jairo aperta a mão do detetive entra no carro e ao sair freia para uma última notícia:
- Quase que me esquecia!
- O que foi?
- Escutei no rádio vindo pra cá, a verdadeira Melissa Silmarem está no Recife. Vai participar de um evento daqui a pouco lá Museu do Estado. Já pensou se ela viesse e encontra-se a Goreti disfarçada dela?
- Eita! Já imaginou?
- Abraço amigo! Vou nessa!
     Jairo segue rápido e o detetive Augusto sente fome e vai comprar uma tapioca. Resolve que iria comer no batente do mirante e admirar a noite do Recife de longe. Pensa em tudo o que passou até o momento e no caso ainda não concluído para o coronel e do seu envolvimento emocional com Goreti. Olha para o horizonte e quando vai dar a primeira mordida na tapioca, uma imagem de Melissa Silmarem vem à tona.
- Meu Deus! A verdadeira Melissa corre perigo! Nirvaldo vai tentar contra a vida dela!
     O detetive Augusto desce desembestado pela ladeira da Misericórdia e quase não teve freio nos pés para segurar as pernas. Ele se joga na frente de um taxi, assustando o motorista e entrando rápido no veículo:
- Meu amigo! Vá rápido para a Rua da Aurora no Recife! É caso de vida ou morte!
     O motorista segue em disparada enquanto o detetive tenta falar com Goreti no telefone que está fora de área.
- Não acredito!
     Ele liga para Crisoprásio:
- Cris! É Augusto! Goreti está aí?
- Não! Ela disse que iria com você pra Olinda. O que houve?
- A verdadeira Melissa está na cidade! Deve está no Museu do Estado!
- Não brinca!
- Tô falando sério! Vocês não sabiam disso?
- Claro que não! Por que deveríamos? Não corre investigação sobre ela.
- Mas aposto minha vida que Goreti sabe e se conheço ela bem, deve está nesse momento no Museu do Estado tentando pegar o Nirvaldo.
- Você acha que ele vai se arriscar assim por uma vingança?
- Você vai apostar a vida de sua colega de trabalho nisso? Goreti está sem dormir por uma chance de pegar Nirvaldo.
- Onde você está?
- Num taxi! Iria para onde vocês estão, mas como ela não está aí vou direto para o museu.
- Tudo bem! Tenha calma! Nos encontraremos lá.
     O taxista escuta a conversa:
- É pra mudar o destino?
- Sim! Por favor! Museu do Estado! Eu pago o dobro da corrida! Mas por favor vamos logo!
     No Recife, o evento no Museu do Estado estava acontecendo. A entrada principal toda iluminada e decorada com requinte e bom gosto. Inúmeros carros chegam e seus motoristas descem e abrem as portas para as autoridades e convidados famosos. Os repórteres se acotovelam entre os fotógrafos que não param de disparar flash de suas máquinas fotográficas e tentam conseguir um ângulo melhor.
     Quando a notícia de que Melissa Silmarem estava chegando, o grupo da imprensa corre pra abordar o carro. A porta se abre e a bela mulher desce do carro espalhando sorrisos e simpatia. O cheiro do perfume caro envolve os que conseguiram se aproximar um pouco e romper alguns centímetros da barreira de seguranças. Ente eles estava o repórter Vitor.
- Nossa como ela é parecida! Um pouco mais magra e festiva, nada haver com a imitadora.
     O tumulto durou alguns segundos. O repórter Vitor levou um chega pra lá de um segurança que botou uma daquelas caras feias que só corrige com cirurgia plástica. Vitor insistiu e o segurança o ameaçou com palavras duras. Infelizmente, ele não recebeu credenciais para entrar no evento e foi o máximo que conseguiu.
- É! O jeito é ficar aqui fora mesmo dando uma volta – pensou ele tirando uma caixa de cigarrilha e botando a mão no bolso procurando um isqueiro:
- A não! Esqueci.
     Vitor retornou para a sua lambreta para apanhar o isqueiro. Ele acende a cigarrilha e levanta a boca para cima puxando o cheiroso fumo e soltando uma fumaça espessa. Quando a vista abaixa, reconhece o carro de Nirvaldo parado em baixo de uma árvore do outro lado da rua.
- Ele trocou a placa! Mas reconheço bem o carro! É o mesmo! Nirvaldo está aqui!
     O repórter ficou tão avexado com a situação que num instante fumou a cigarrilha e por pouco o filtro. Tirou um lenço vermelho do bolso e olhando desconfiado de um lado para outro, amarrou no para-choque do carro e caminhou ao redor do museu. Ele não encontrou nenhuma possibilidade de invadir o lugar.
- Tá difícil entrar aqui! Aposto que até o esgoto tem vigilância.
     Ele continuou observando e notou que não havia policial ou segurança particular nas ruas, tudo se concentrava dentro da área do museu.
     Os convidados já haviam entrado e pouco depois aconteceu um pequeno tumulto na rua da frente. Um motorista que dirigia uma ambulância tentou romper o pequeno engarrafamento e terminou sendo atingida de lado por outro veículo.
- É agora!
     Rapidamente, Vitor não pensou duas vezes e subiu numa arvore cuja visão permitia uma boa visibilidade lateral de algumas janelas do prédio.
- Centenas de anos de evolução e estou eu aqui de novo subindo árvores – disse ele resmungando.
     Depois de alguns minutos, encontrou uma posição confortável numa das bifurcações e montou a câmara fotográfica utilizando uma lente de longo alcance. Vitor passeava com as lentes, focava e desfocava, procurava alguma coisa mais não encontrava nada. As janelas são de serviços e a única coisa que ele via eram profissionais da limpeza, garçons e garçonetes.
     Uma garçonete em especial lhe chamou atenção. Ele foca a imagem e quase cai da árvore com o que ver:
- Não acredito! Ôxe! Não é doida da imitadora de Melissa? E tá botando um pano na cabeça! Tá de garçonete é? Mas olha!
     Pela segunda vez, quase que o repórter caía de novo. Os galhos fizeram um movimento chamando a atenção de um dos vigilantes que passava a ronda e afastou um mendigo curioso do gradil.
     Estava confirmado: Goreti conseguiu entrar no museu e se infiltrar entre as garçonetes para achar Nirvaldo e proteger Melissa Silmarem. Não demorou muito pra Vitor montar o quebra cabeças da situação:
- A imitadora e Nirvaldo juntos no mesmo lugar da Melissa Sil....Meu Deus!
     Dessa vez não teve jeito, Vitor escorregou e caiu de mau jeito no chão. A queda só não foi pior devido a alça da máquina fotográfica que enganchou num galho forte antes de quebrar:
- Que morrer rapaz! - Gritou o vigia.
     Todo desajeitado, Vitor recolhe seus pertences e sai mancando sem responder. Foi exatamente nesse instante que se escuta um estrondo e toda região fica sem energia. Com dificuldades de andar na escuridão, Vitor vai em direção a sua lambreta. As luzes de emergência do museu acedem e, mais uma vez, fica tudo escuro de novo. Um tumulto acontece dentro e do lado de fora. As pessoas acendem seus celulares pra ter um pouco de luz enquanto outras, tentam retornar aos seus carros e ligarem os faróis.
     Um carro passa a toda velocidade perto de Vitor e          quase o atropela na calçada. Ele olha para trás na intenção de soltar um palavrão e ver o lenço vermelho.
- É ele! – diz nervoso.
     Ao chegar ofegante a sua lambreta, liga rapidamente e segue por um atalho, pois ele sabia que Nirvaldo não conseguiria pegar a contramão naquele horário.
- Lá está ele! – Vitor consegue localizar o carro que segue no sentido leste.
     Todos os bairros do entorno do museu estavam apagados. Mais uma vez a influência criminosa de Nirvaldo estava se mostrando poderosa e influente. Ele contratou vândalos com altas somas em dinheiro para danificar as redes elétricas e tinha bandidos infiltrados dentro do evento que também danificaram o gerador de emergência do museu. Tudo isso pra poder raptar Melissa Silmarem. Ele teve toda cobertura e facilidades para fugir e quando deram por conta dela já era tarde demais.
     Vitor fazia malabarismos para acompanhar o carro, via a silhueta de uma mulher querendo se desvencilhar do sequestrador e este lhe batia várias vezes no rosto deixando-a atordoada.
- Será que ele pegou a Melissa errada? – pensou Vitor.
     O carro estava indo em direção ao Marco Zero e a cidade continuava apagada, o estrago foi grande. Vitor reduz a velocidade e encosta a lambreta. Ele segue andado cautelosamente e ver Nirvaldo descendo uma pequena escadaria próxima ao canal marítimo e apontando a arma para um canoeiro que se ajoelha. Covardemente, ele dar uma coronhada na nuca do pobre homem que desaba inconsciente no piso áspero. Sem perder tempo empurra a mulher dentro da canoa e amordaça sua boca, mas não antes de empreender novas agressões e palavrões.
- É a verdadeira Melissa! – confirma o repórter.
     Vitor tenta se aproximar, mas de repente observa que na carroceria do carro de Nirvaldo sai a falsa Melissa, engatando uma pistola e correndo ligeiro, abaixada e pelo canto.
- Eita! Agora deu!
     Ele tenta fazer algum sinal, mais ela não escuta e termina desistindo, achando que até poderia levar um tiro. Diante de tantas indecisões, resolve abrir sua bolsa para câmara à prova d’água e retira o celular. O repórter liga para a polícia, se identifica e conta toda a situação. Enquanto isso, o detetive Augusto e Crisoprásio se encontram em frente ao museu e naquela confusão não conseguem achar Goreti. Um policial com uma lanterna na mão os reconhece e comunica o sequestro da Melissa Silmarem e que foram vistos pela última vez no Marco Zero. O agente solicita um helicóptero e segue com o detetive para a ponte da Rua Amélia que começa a ser interditada para o pouso da aeronave.
     Do outro lado do canal, Nirvaldo sobe para a área do Parque das Esculturas Francisco Brennand e chega ao extremo leste, onde se encontra o Oceano Atlântico e a arrebentação.
     A ideia de fazer com que a falsa Melissa saiba da sua presença, Vitor se enche de coragem e vai novamente em sua direção mas chega tarde. Goreti já havia arrastado outro barco e seguia para onde Nirvaldo estava, com sua assustada e machucada vítima.
- Agora lascou tudo! – disse Vitor procurando uma canoa que não mais existia – Só tinha duas? Eu mereço!
     Mas uma vez, Vitor se encheu de coragem, certificou-se que sua bolsa estava bem fechada e nadou nas águas escuras do canal. Com muito sacrifício, chegou do outro lado se tremendo de frio. Tenta se recompor como pode e vai devagar, subindo pelas pedras. A correnteza havia levado ele para mais adiante. Escuta uma conversa alta e ao mesmo tempo longe, ocultado pelo vento e som das ondas, entre Nirvaldo e Goreti. O repórter estava tenso e com medo, ele seria testemunha ocular de um provável homicídio, mas a ideia de está cobrindo um furo de reportagem o animou.
- Pare Nirvaldo! Polícia federal! Acabou pra você! – grita Goreti com firmeza e apontando a arma de certa distancia.
- Quem é você empregadinha! – disse ele com a arma apontada na cabeça de Melissa.
     A mulher do restaurante que comprou o engenho, a falsa Melissa Silmarem grita de volta!
- Sula!!!!
- Sula?- Indaga Nirvaldo que ver Goreti tirando o pano da cabeça e mostrando melhor suas feições.
     Com esforço, Nirvaldo reconhece a voz e aparência com Melissa.
- Sou eu que você quer se vingar! Eu sou a falsa Melissa! Solte essa mulher! Ela é inocente!
- Ah quenga safada! – Nirvaldo dar dois tiros em direção de Goreti e ela se protege ao lado de uma escultura, resistindo ao impulso de não revidar e ferir a refém, ela tem excelente pontaria, sabia que poderia atingi-lo.
     Goreti suspira e se concentra sentindo uma forte dor no ombro, ao por a mão, a mesma volta suja de sangue e pela primeira vez, ela é baleada no cumprimento do dever.
     Nirvaldo vai andando de costas usando Melissa Silmarem como escudo. O tempo todo, ele olhava para o lado sul onde terminava uma pequena estrada e aguardava seus comparsas que iriam resgatá-lo como o combinado.
     Goreti fica em silêncio observando discretamente ele se afastar, queria dar a impressão que tinha sido atingida e poupar a vida de Melissa, uma vez que, nessas alturas, Nirvaldo sabia que cometeu um erro e assassinar uma mulher famosa milionária e só iria complicar a situação. Em todo caso, era uma garantia até sua fuga está segura.
    Sem perceber que cada vez mais se aproximava de Vitor, o repórter dar um grito:
- Polícia! Largue a arma!
     Ao se virar, Nirvaldo atira em direção ao som e uma sequencia de flash o desnorteia afrouxando o braço e dando condições para Melissa correr para o outro lado e se esconder entre as pedras.
- Maldição! – grita Nirvaldo que toma outro susto ao ver o sinal luminoso do farol de um carro que chega ao seu socorro a uns 300 metros de onde ele estava.
- Finalmente! – ele olha para frente se certificando que ninguém o ameaçava.
     O bandido esquece tudo e corre em direção ao carro que se aproxima em alta velocidade. Nirvaldo levanta os braços se identificando e com um sorriso de vitória no rosto. Ainda pensa que poderia conferir se estava viva e matar a policial que se passou por Melissa de uma forma mais dolorosa, a altura do seu ódio, mas se dava por satisfeito se estivesse morta ou ferida, afinal, ele que se deu bem.
     Mas a sorte dessa vez, não estava mais do lado do Nirvaldo que se assusta com a rápida investida de um helicóptero da policia que desce bem na sua frente. Entre as fortes luzes, o barulho ensurdecedor e o vento provocado pelas hélices, ele tenta voltar correndo de onde veio e agora, ver uma mulher na sua frente com uma pistola apontada em sua direção.
- Vai pra onde cabra! – Disse Goreti, com o ombro ferido e sangrando, mas firme como uma rocha segurando a pistola.
     Nirvaldo, por incrível que pareça, encontra no meio de todo o tormento de sua perturbada mente, achar alguns segundos para perceber que de fato, aquela policial se parece muito com a Melissa Silmarem e, mais do que isso, é sensivelmente mais bonita. No momento que iria completar o  pensamento com a palavra “gostosa”, sentiu a pegada violenta de Crisoprásio desarmando-o e o imobilizando no chão com a ajuda do detetive Augusto que logo depois, corre em direção a Goreti e a abraça feliz.
- Ai!
- O que foi? Está ferida?
- Foi de raspão! Arranhou a pintura e a lataria – disse ela com humor e realizada por ter capturado Nirvaldo.
- Desculpa amor – disse ele.
     Os dois se viram e observam Crisoprásio levantando Nirvaldo do chão. O agente olha para a parceira:
- Parabéns!
     Ela balança a cabeça agradecendo.
- Olha só isso! Você conseguiu pegar ele! Estou orgulhoso de você. Vamos ao hospital! O helicóptero está logo ali!
- Não podemos! Melissa ainda está lá trás! – Goreti rasga a camisa e pressiona o ferimento.
- Onde?
     Novos tiros são ouvidos e dessa vez, são de submetralhadoras. As rajadas vinham do carro que tentava resgatar Nirvaldo. Foram abordados por viaturas da polícia, a troca de tiros era grande e os bandidos pareciam levar alguma vantagem com artilharia pesada. Atento a situação, o piloto do helicóptero subiu um pouco e virou para a direção do carro, enquanto outro policial rodava uma metralhadora ponto 50 em cima dos bandidos, não deixando nenhuma opção para eles, além de morrer ou se entregarem. E foi o que aconteceu, pelo menos, com a maioria.
     Quando a situação se normalizou, Goreti e o detetive Augusto retornaram procurando Melissa, enquanto Crisoprásio já encaixava Nirvaldo na mala de um camburão da policia.
     Mais desesperada do que de costume, Goreti grita o nome de Melissa. O detetive percebe um tom nervoso e quase de choro em sua voz.
- Será que ela está arrependida de ter colocado a vida da milionária em risco? – pensou ele.
     As luzes do Recife retornam. O Parque das Esculturas se ilumina fazendo aparecer as graciosas obras.
- Estamos aqui! – Grita Vitor.
- Eu conheço essa voz – comenta Goreti que ver o repórter saindo ileso amparando Melissa Silmarem que grita em direção de Goreti:
- Sula!!!!
     Sem perder tempo, Goreti corre em direção da mulher e abraça com saudades e lágrimas nos olhos. Sem entender nada, o detetive Augusto pergunta:
- Sula? Quem é Sula?
- Sou eu – responde Goreti sorrindo e tirando uma mecha de cabelo dos olhos misturado com lágrimas e suor.
- Não entendi nada.
- Meu nome é Goreti, mas minha família me chama de Sula.
- Nome interessante – disse o detetive ainda confuso – Então Melissa conhece você?
- Mas do que isso Augusto! Melissa é minha irmã gêmea.
- É o que?
- Ela é um minuto mais velha do que eu, sendo assim, sou a caçula, daí vem o apelido de Sula.
     O detetive põe a mão direita na boca sem acreditar e curiosamente tem os mesmos pensamentos de Nirvaldo em relação a incrível beleza das duas, mas no coração do detetive Augusto, ele sabia onde estava a diferença e era no grande amor que ele sentia por Goreti Silmarem.
     Diante de tantas emoções, quase ninguém dava conta da presença do repórter Vitor que apanhava sua câmara fotográfica e guardava na bolsa com as mãos ainda trêmulas.
- E você? – pregunta o detetive – Não dorme no ponto né?
- Esse homem salvou a minha vida – disse Melissa agradecida e Goreti confirma com a cabeça.
- Bom! Temos um novo herói na cidade – disse o detetive.
- Eu tive sorte, muita sorte – disse o repórter que via muitas sirenes e luzes do outro lado do canal. Ficou aliviado ao ver o canoeiro ser removido com vida numa maca pelo SAMU.
     Eles escutam Crisoprásio gritando e perguntando se alguém quer uma carona de helicóptero. Goreti faz um sinal respondendo que sim e todos seguem para a aeronave em direção ao hospital. Do alto, eles observam o engarrafamento que a confusão provocou.
- Goreti! – disse Crisoprásio gritando – Você já foi responsável duas vezes pelos maiores engarrafamentos que essa cidade já viu.
- Prometo que não faço mais – responde ela.
    Ainda em voo, Goreti pergunta para Vitor como foi que ele conseguiu aquela proeza de enfrentar Nirvaldo e não ser baleado.
- Eu sabia que ele logo chegaria onde eu estava escondido. Imaginei que ele primeiro iria atirar pra depois ver quem era. Protegido pela escuridão, posicionei minha câmara fotográfica em cima de uma pedra e liguei o disparador automático. No momento em que gritei e ele se virou, apertei esse botãozinho aqui e me abaixei, o resto a máquina fez sozinha.
- E saiu alguma foto boa? – perguntou o detetive Augusto.
- Veja você mesmo! – Vitor entrega a máquina.
     O detetive, Goreti e Melissa observam admirados as sequencias de imagens que aparece Nirvaldo atirando com Melissa ainda se desvencilhando dele.
- Incríveis! – disse o detetive.
- Podemos juntar como provas na sentença – comenta Goreti – Podemos ter a sua colaboração Vitor? Sabe que tem uma longa história pra contar em seu depoimento?
- Estou à disposição policial – responde Vitor – Mas não esqueçam que sou repórter fotográfico, eu vivo disso e tenho outra grande história pra contar ao público.
    Melissa põe a mão na perna do repórter e se diz muito agradecida pelo o que ele fez e que em breve iria procura-lo com uma proposta. Vitor esboçou um sorriso e respirou fundo, ele sabia que seu gesto heroico lhe renderia a fama que tanto almejava.
     Durante vários dias, as mídias sociais não falavam em outra coisa. A operação conjunta da polícia, o heroísmo de um repórter que ganhou fama nacional e internacional, virulizava na internet e que depois, a convite de Melissa Silmarem, tornou-se seu fotógrafo particular e assessor de imprensa. A prisão de um bandido importante que era uma peça fundamental no desmanche de uma quadrilha antiga e perigosa, mudou o rumo das investigações e, naquela mesma semana, muita gente chegou a ser presa.
     Longe de toda essa confusão, Goreti e o detetive Augusto já haviam retornado à Cova da Onça. Dessa vez, levando Seu Damasceno para um passeio inesquecível. Ele iria rever a sua esposa desaparecida depois de tantos anos.
     O coronel Manuel e Júnior estavam lá também. Eles prestigiaram a inauguração do novo bar que foi de Dona Dondinha e agora, pertence a sua irmã que também já havia se apossado do viúvo e ex-cunhado. Pelo sorriso e olhares, já indicavam que havia um chamego entre os dois.
     Quando Goreti e o detetive chegaram, foram direto para a casa de Dona Mocinha. Foi tanta emoção que  não teve aquele que ficou com os olhos cheios de lágrimas quando prontamente, ao ver o marido e escutar a sua voz, a doce senhora teve sua memória imediatamente reparada.
     O coronel Manuel estava tão feliz que chamou todos para ir ao engenho Pau Amarelo, que agora é de sua propriedade, no fim de semana. Faria uma grande festa para comemorar a volta de Júnior e o retorno da paz na cidade e região.
- O coronel está muito feliz – disse Goreti abraçada com o detetive Augusto e ainda com uma tipoia no ombro.
- Mais ou menos – responde ele.
- Mais por quê? Júnior finalmente apareceu.
- Ah! Quanto a isso também estou feliz, gosto muito daquele maluquinho, apesar de ainda não entender a razões dele ter ido para a Paraíba.
- O coronel disse pra mim que você não precisa mais investigar se não quiser.
- Por que ele disse isso? Já sei! Assinei meu atestado de incompetência em não resolver o caso do filho do coronel Machado.
- Não isso seu bobo! É que eu falei pra ele que iria tirar umas férias com você e ele nos deu esse cheque de presente.
- Nossa! É muito dinheiro!
- E tem mais, o coronel disse que apesar de não ter resolvido o caso principal, a gente o deixou muito orgulho de ter acabado com Nirvaldo e muito em breve com toda a rede de bandidagem que ele se envolveu na região.
- Ele é homem e tanto não é?
- É sim. O coronel é um homem raro mesmo. Um pouco ultrapassado no tempo, mas de uma generosidade como poucos.
- Ouvir dizer que o povo deseja ele como prefeito a muito tempo e parece que dessa vez ele vai aceitar.
- Seria bom que todo município tivesse a sorte de ter um prefeito como ele.
- Sabe no que eu estava pensando? – disse o detetive.
- Hummmm...não sei, mas deve ser muito gostoso – responde ela com aquele jeito safado que o deixa louco.
- Aquela cachoeira ainda está no lugar?
- No mesmo cantinho – responde ela mordiscando os lábios e puxando a sua mão indo em direção ao carro.
     Sem que eles percebessem, Dona Mocinha escutou sem querer a conversa e sorriu meio envergonhada, lembrando-se do tempo em que tinha esses momentos com seu marido. Mas algo ainda mais importante na conversa que ela escutou mudaria o destino de outras pessoas.
     Os dias se passaram rápidos, o engenho e região estavam ansiosos, o dia da grande festa tinha finalmente chegado. No Engenho Pau Amarelo tudo estava pronto, limpo, bonito e decorado. Quem chegava já sentia o cheiro de churrasco e ouvia o som dos forrozeiros.
- É festa pra dois dias! – gritou o coronel Manuel para seu vizinho, o coronel Machado, que descia de sua charrete. Ele no início relutou o convite, mas depois aceitou, vendo como uma boa oportunidade para se despedir do povo da região que tanta amava.
     Já passava do meio dia quando o coronel Manuel percebeu que Dona Mocinha e o marido não haviam chegado, notou que Augusto também havia sumido mas, ao olhar a estrada, viu o carro chegando. Goreti se aproxima:
- O coronel estava sentindo a falta de alguém? Vi olhando para os lados?
- Oh meu amor! Eu sabia que você estava por perto! Meus olhos seguem seu rastro.
- O coronel está ficando muito safadinho – disse ela ajeitando o colarinho de sua camisa.
- Eu tô é feliz! É o detetive que tá chegando ali?
- É sim! Foi buscar Dona Mocinha, o marido e uma surpresa para o meu coronel preferido.
- Surpresa? Vixe! Mandava Seu João buscar! Mas se é surpresa!
     O carro entra na propriedade e circula um canteiro com uma fonte no meio que foi reativada para a alegria dos passarinhos.
     Descem do carro o detetive Augusto, Dona Mocinha, o marido Damasceno e uma mulher desconhecida.
     O coronel Machado até então estava distraído com a banda de forró, ele se vira para os recém chegados e fixa o olhar na mulher estranha e a reconhece:
- Zuleica!
- Quem? – disse o coronel Manuel atônito.
     O detetive Augusto pega delicadamente na mão da bela senhora e sobe os poucos degraus até onde eles estão.
- Detetive! Achei que a surpresa fosse para mim – disse o coronel Manuel disfarçando as palavras.
- Ainda não é a sua coronel – disse o detetive com um leve sorriso.
     Com um olhar doce de saudade, Zuleica olha para o coronel Machado:
- Ainda lembra de mim?
- Nunca esqueci esses olhos – responde ele.
     O coronel Manuel olha pra ela:
- Pelo amor de Deus mulher! Onde é que tu andava?
- Escondida.
- Mas por quê?
- Nirvaldo queria me matar.
- A não! Aquele cabra ruim de novo nessa história? Valei-me minha Nossa Senhora!
     O coronel Machado se aproxima e segura as suas mãos:
- Por que ele queria te matar?
- Para eu não revelar meu filho – Zuleica baixa a cabeça e olha para o outro coronel – Nosso filho Machado.
- Tivemos um filho?
     Ao escutar essa declaração, o coronel Manuel olha pra o céu disfarçando que não sabia de nada. Enquanto isso, o coronel Machado se aproxima mais ainda de Zuleica e a ampara.
- Por Jesus! Zuleica! Diga que é verdade! Temos um filho? Ele é vivo? Onde ele está?
- Ele está...
     Antes de Zuleica terminar a frase, Júnior entra no meio da conversa na correria que lhe é peculiar e extremamente animado:
- Coroné! Seu Antônio perguntou se já pode matar outro garrote!
     O coronel Manuel olha pra Júnior:
- Menino pelo amor de Deus! Quantas vezes já te disse pra brecar a carreira faltando dois metros! Tu quase que derruba a gente!
- Desculpa coroné! – Júnior olha para Zuleica e sente algo estranho, um sentimento muito próximo ao amor. E por ela ser uma desconhecida, o deixou confuso por alguns segundos.
     Quem olhava para os dois percebia a semelhança física dos traços dos rostos.
     Zuleica sorrir pra ele e olha pra o coronel Machado:
- Ela é tão rápido como pai.
     O coronel Machado olha pra Júnior:
- É ele? Júnior?
     Zuleica sorrir confirmando rapidamente com a cabeça e sorrindo nervosamente. O coronel Manuel encosta no ouvido do detetive e pergunta:
- Essa a minha surpresa?
- É sim coronel! Comunico que o caso que o senhor me contratou está oficialmente resolvido.
- Mas que leseira minha! Se eu tivesse prestado mais atenção iria descobrir sozinho que era Júnior o filho dele!
- Pela aparência? – pergunta o detetive.
- Não! Pela carreira e pressa.
     Júnior fica nervoso e pela primeira vez a sua voz fica calma e pausada:
- A senhora é minha mãe?
- Sim meu filho, sou sua mãe – e eles se abraçam.
     O momento foi tão surpreendente e emocionante que ninguém percebeu que as falas, burburinhos, a música e as danças pararam. Todos estavam atentos escutando aquele momento.
     Para quebrar o gelo daquele silêncio ensurdecedor, o coronel Manuel grita a pleno pulmões:
- Pessoal! Júnior encontrou a mãe dele!
     Uma gritaria misturada com aplausos tomou conta do engenho. Goreti chegou perto do coronel Manuel e deu um beijo em seu rosto. Deu piscada de olho para ele e disse:
- Seria tão bom se ele como herdeiro do pai assumisse o engenho.
     O coronel Machado pigarreou limpando a garganta e disse de supetão:
- O amigo coronel Manuel não gostaria de vender o engenho para o meu filho?
- Vendo sim! Mas só se for pelo preço que comprei!
- Negócio fechado! Já tá vendido por antecipação. Júnior!
- Senhor Coroné! - disse todo desconfiado.
- Venha aqui!
     O coronel Manuel se aproxima com Júnior no último degrau da escadaria, onde uma multidão se aglomerava lá em baixo:
- Meu povo! Dou a minha palavra e com vocês de testemunha que esse engenho volta para as mãos dos donos legítimos. E tem mais! Como herdeiro não só do engenho e das terras dele até onde a vista alcança, declaro e dou fé que sua nobreza de família o faz assumir por direito vitalício. Dou fé que ele ostente e seja conhecido de hoje em diante como Júnior! O Barão de Pau Amarelo!
      Os convidados ovacionam, reconhece e aplaude. Um novo barão assume o seu lugar. Júnior é abraçado e beijado pelo coronel, por seus pais, por Goreti e o detetive Augusto.
     Durante a festa, tudo é explicado de como o caso do filho do coronel Machado foi resolvido. Quando teve uma oportunidade, o coronel Machado se aproxima do detetive:
- Tenho a impressão que te conheço de algum lugar.
- Eu coronel?
- Sim. Ah não! É maluquice minha! Você me lembra dum doutor que veio no meu engenho com Goreti. Falando nisso! Onde ele tá?
- Ouvi falar que foi transferido coronel!
- Foi mesmo? Que pena, parecia uma boa pessoa.
- Ah! Ele era sim! – responde Goreti sorrindo com olhos para o detetive que suspira aliviado.
     A história toda começou quando Dona Mocinha, que na verdade se chama Lourdes e esposa do Seu Damasceno, ex-motorista de Nirvaldo, certo dia escutou sem querer uma conversa entre dois capangas dizendo que já estava tudo preparado para simular um acidente em que Zuleica, cujo nome verdadeiro é Lígia, morreria com seu filho. Os detalhes sórdidos da conversa quase fez a pobre mulher denunciar a sua presença, foi então que ela confirmou que se tratava da prostituta cliente da farmácia e principalmente o seu filho, que era herdeiro de um coronel importante e rico no município de Cova da Onça.
    Sem perder tempo, a “Dona Mocinha”, que nessa época era mais nova, contou tudo a “Zuleica” que fugiu com a criança, mas antes, deixou o menino com Dona Dondinha, que sabia do caso e deixou na porta do puteiro de Alzira. Não sabia Zuleica, que ela, Dona Dondinha, era a informante de Nirvaldo, mas mesmo assim não teve coragem de fazer maldade com a pobre criança.
- Fiz de tudo para que ela contasse a verdade para o coronel Machado, mas se recusou com medo que ele fizesse o mesmo com o filho bastardo – disse Dona Mocinha.
- Eu jamais faria isso! – rebateu o coronel – mas entendo seus medos.
- E, além disso, Nirvaldo poderia fazer depois. Ele queria se apossar de tudo mesmo! – disse o coronel Manuel.
- Também acho – confirmou Goreti.
     Dona Mocinha respirou fundo e continuou:
- Ofereci um emprego numa casa de família de uma cliente amiga da farmácia que eu trabalhava. Foi lá que ela passou todo esse tempo até eu procurá-la essa semana.
- Fiquei escondida – disse Zuleica – E com o tempo descobri que ele estava sendo cuidado pelo coronel Manuel e Dona Cecília. Sabia que ele estaria seguro se eu não aparecesse.
- E como foi que você veio parar aqui Dona Mocinha? Desculpe! Dona Lourdes! – perguntou o coronel Manuel.
- Não me conformei com a situação absurda – disse ela – aproveitei que meu marido havia viajado pra longe com Nirvaldo e vim até Cova da Onça contar tudo para o coronel Machado, tinha certeza que ele protegeria seu filho, mesmo longe dele. Peguei uma condução e desci antes de chegar na cidade e do outro lado da pista, fiquei esperando uma outra condução pra me deixar perto do Engenho Pau Amarelo. O tempo passou e o sol estava quente, era época cana-de-açucar alta de um lado e do outro, só que do lado contrário tinha um pé de jaca com uma boa sombra. Eu estava muito cansada e com sede. Quando resolvi atravessar me distrai e senti a pancada 
de um caminhão que carregava cana que bateu em mim de lado. Rodei para o lado e cair no chão, acho que bati a cabeça. Agora lembro que duas vezes eu despertei e não havia ninguém pra me socorrer. O resto da história vocês já sabem, perdi a memória todo esse tempo.
- Minha Nossa Senhora! Que história mais triste! - disse o coronel Manuel se compadecendo - Bom! E agora? Vai fazer o que da vida?
- Ainda não sei. Passei tanto tempo longe do meu filho que pareço mais uma estranha do que uma mãe.
     Dona Cecília se aproxima:
- Nada disso! Júnior sempre soube que a mãe gostava dele e que ninguém sabia como ela desapareceu. Por que não fica com seu filho? Ele agora é o barão de Pau Amarelo. Né Júnior?
- É sim mãe! E tenho certeza que meu pai não vai fazer questão! Vai coroné? Quer dizer, pai!
- Sou viúvo, não tenho mais ninguém na vida. Se sua mãe aceitar casar comigo vamos juntos formar uma nova família.
     Um pouco tímida, Zuleica disse que nunca esqueceu  dele e que aceitava o pedido.
- Eita! Vai ter outra festa! – disse Júnior que abraça o pai, beija mãe e olha para o coronel Manuel – Vai matar outro garrote?
- Vai Júnior, vai! Manda matar! – disse o coronel e todos observam a ligeireza de Júnior.
     De noite ainda havia gente se divertindo. Goreti e o Detetive Augusto foram para a casa do coronel Manuel e decidiram que entrariam de férias para uma viagem de lua mel, eles também resolveram em segredo que se casariam e só contariam a novidade quando voltassem. E foi o que aconteceu, meses depois, eles retornam ao engenho e contam a novidade ao coronel Manuel e a Dona Cecília que ficam muito felizes. Depois resolvem fazer uma visita a Júnior, o barão de Pau Amarelo, que agora aprendia tudo sobre como cuidar do engenho com o pai.
- Bom dia barão! – disse o detetive.
- Vocês voltaram! – Júnior demonstrava muita alegria e corre para abraçá-los.
- Bom dia coronel!
- Bom dia detetive! Com bons olhos lhe vejo. O que devemos a honra?
- Temos duas novidades – disse o detetive Augusto – a primeira é que nos casamos e a segunda é que Goreti agora participa de palestras sobre segurança e prevenção de sequestros. É também minha sócia no negócio de investigação particular. Temos convite até para o estrangeiro.
- Mas que notícia boa! – disse o coronel Machado com entusiasmo.
- Nem me avisou da festa do casamento! – disse Júnior um pouco decepcionado.
- Não teve festa meu lindo, quer dizer, só a nossa particular – disse Goreti dando um beijo suave no rosto de Júnior.
- Ah sim! Entendiiii – comenta ele com o rosto corado – Mas quando eu casar um dia quero vocês aqui.
- Não se preocupem, sempre que for possível lhe faremos uma visita – confirma o detetive Augusto.
     Júnior ainda um pouco avexado, pergunta pra Goreti se poderia ter um particular com o marido. Ela prontamente diz que sim e fica de conversa com o coronel Machado enquanto eles se afastam.
- Então Júnior? Que mistério é esse?
- É que faz tempo que pensei em entrar nesse negócio de detetive, mas sua esposa chegou primeiro pra ser sua sócia.
     O detetive não se contem numa risada curta:
- Júnior me querido amigo! Você é um barão, tem um engenho pra cuidar e pessoas que dependem de você.
- É eu sei disso sim – baixou a cabeça e ficou riscando o chão com o pé.
- Mas não fique triste com isso.
- Não estou triste, é que tinha um caso num engenho que fica umas duas hora daqui e que eu queria resolver com você.
- Sério! Que caso?
- Sobrenaturá! Coisa de estória de trancoso!
- Mas não é minha especialidade. Sei de profissionais que desenvolvem trabalhos muito interessantes e usam aparelhos sofisticados e sensíveis para captar sinais de alma penada e...
     Júnior imediatamente vai num canto do muro e abre uma gaiola tipo viajante e retira um gato.
- Olha aqui meu equipamento!
- Um gato? Espera aí! Esse gato é o que vivia na casa do coronel Manuel?
- É sim!
- Mas esse gato tem medo até dos peidos que o coronel dava?
- Confie em mim detetiiiive! Esse gato é muito esperto e ver muita coisa!
     Para não magoar Júnior com a sua fértil imaginação e lembrando-se da promessa que fez ao coronel de não tê-lo como parceiro, o detetive Augusto segura o sorriso e dar um estímulo para o rapaz.
- Vamos fazer o seguinte: Você será o meu parceiro de investigação aqui em Cova da Onça aceita?
     Júnior dar um pulo de alegria:
- Mas claro que sim! Nem precisa me pagar que eu sou rico e nem vou cobrar das pessoas, vou ajudar elas!
- Tô gostando de ver – disse o detetive – E toda vez que você resolver um caso, escreva pra mim contando tudo e quando eu vier lhe visitar conto os meus.
     Júnior abraça o detetive e depois retornam para junto do coronel e Goreti. Eles percebem a felicidade do rapaz, só não entendem o motivo. Após almoçarem e passar uma agradável tarde pelo engenho, o detetive Augusto e Goreti retornam para o Recife, a pedidos dela vão namorar no cais do porto.
- Da última vez que viemos aqui quase te perdi – disse ele.
- Mas não perdeu, estou aqui inteirinha pra você César.
     O detetive se surpreende:
- Achei que tinha esquecido meu nome.
- Nunca me esqueço de você.
     Os dois se beijam e semanas depois recomeçam seus trabalhos e novas investigações.
          Passada algumas semanas, Júnior finalmente visita a fazenda assombrada e convida alguns amigos para acompanhá-lo, mas infelizmente ninguém aceita. O medo das estórias é grande e todo mundo abandonou o lugar. A coisa é tão grave que nem os proprietários conseguem vender. Pensando em ajuda-los, Júnior resolve fazer a sua primeira investigação.        Queria saber com os próprios olhos e se convencer de que é verdade o que o povo fala ou era alguma invenção maldosa de alguém querendo prejudicar os donos. Júnior já estava pegando o jeito em pelo menos em raciocinar os fatos. Ele resolve ir sozinho, à cavalo e com o seu gato de estimação.
     Ao chegar à entrada da casa grande da fazenda, Júnior amarra o cavalo num galho de árvore perto da porteira aberta. Vai andando com devagar com o gato no braço até a entrada da varanda da frente. Ele olha ao redor e não ver nada. Vai em direção à porta e a encontra destravada, entra na casa e olha os poucos móveis que restava. Cheio de coragem vai até os quartos e demais cômodos e não ver nada.
- Oxe! Oh povo besta! Aqui não tem assombração nenhuma! Só coisa da imaginação. Nem meu gato se arrepiou! Vamo embora bichano!
     Ao sair da varanda em direção ao cavalo, Júnior escuta uma voz masculina, cavernosa e arrastada perguntando:
- Achou o que procurava Seu Cabra?          
     Júnior sentiu um frio gelado descendo pela espinha, o pobre do gato subiu todos os pelos do corpo que parecia mais que levava um choque elétrico. O bichano olhou para ele e parecia que as bolas dos olhos iriam saltar das órbitas, Júnior o segura com força. Ele viu que o cavalo também estava assustado e dava popa e coices no ar tentando se livrar da corda amarrada.
     Júnior sabia que precisava se virar, ele tinha que ter coragem e encarar os fatos e ao fazê-lo, dar de cara com uma figura humana disforme, escura, aparentemente descarnada e gosmenta.
- Valeime Nossa Senhora! Sangue de Cristo! – disse ele aos berros, soltando o gato no ar que mal cai em pé.
     E a cena que assombração ver é a carreira desenfreada de Júnior, o gato e logo atrás o cavalo que conseguiu se soltar arrastando um galho.
- Que povo medroso...eu só queria pedir uma reza – disse a pobre alma penada, que desolada, desaparece lentamente atravessando o chão encharcado pela recente chuva.

Fim



    

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